Narrativa fantasmagórica

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Por CRISTIANO ADDARIO DE ABREU*

A realidade virtual já compõe grande parte do mundo econômico e social: ou os países latino-americanos e europeus criam algum leque de plataformas digitais, ou perderão soberania

Há um debate nas redes sociais suscitado por uma entrevista de Vladimir Safatle que afirma que a “esquerda morreu”. Tal afirmação, conforme se escuta a fala do professor, vai se cristalizando num argumento retórico inicial, cuja estratégia seria chamar a esquerda como um todo para uma reflexão “refundadora” dela: quase ambicionando fazer um reset geral, em uma situação que ele vê como de derrota total, tanto das bases como das táticas e estratégias, no horizonte até hoje compartilhado por este campo político.

O assunto é evidentemente por demais ambicioso, e por mais que argumentos retóricos possam ser revitalizantes no debate público, em busca de polêmicas gerais, confesso um incômodo com a estratégia ali lançada, não alcançando convencimento real, após ouvir as argumentações do professor.

É curioso como há tanta verborragia para criticar “a esquerda”, mas não há a mesma sanha crítica contra esse “novo”, e crescente, campo da direita… Ou “nova direita”. Confesso não concordar com a velha argumentação de que “a esquerda se compromete, então pode ser cobrada”, diferentemente da direita… Tal double standard em políticanão colabora para uma melhor leitura da realidade, ao contrário: piora a compreensão, e piora os problemas.

Para entender o que ocorre com a esquerda é preciso olhar o quadro geral. A esquerda morreu? E a direita: o que ficou dela? Lembremos que o partido que no Brasil hegemonizou a liderança política da direita nacional, desde os anos 1990, foi o PSDB: partido oriundo do PMDB, oposicionista ao regime militar, com pontes na universidade, além de vias expressas com a mídia oligopólica coorporativa. As reincidentes derrotas do PSDB em retornar ao Palácio do Alvorada desde 2002, culminou na indigestão política da campanha do Aécio Neves, neto de Tancredo Neves, e cuja recusa mimada do “Neves Neto” em reconhecer a derrota eleitoral de 2014, atirou o Brasil no precipício golpista, encerrando a “Nova República” organizada desde 1985.

Toda a tragédia é bastante conhecida, com a operação Lava jato destruindo as empresas nacionais de forma neocolonial, sob orientação do departamento de Justiça dos EUA, com o coro anti-industrialização da mídia oligopólica apoiando, com toda uma campanha de destruição política/institucional/industrial do Brasil. Mas ao final dessa verdadeira guerra civil contra os governos do PT, o que resultou? O PT foi o partido que, isoladamente, fez a maior bancada em 2022, além do presidente! E o PSDB: foi o partido que morreu neste processo golpista iniciado em 2013/2014.

Logo, muito cuidado com as decretações de falecimento.

Quem morreu, no Brasil, e cada vez mais no mundo, é a antiga direita dita civilizada, caindo as fantasias e escancarando uma extrema direita internacional, conservadora em costumes, mas histericamente neoliberal em economia. O que difere do fascismo “clássico”: há nessa “nova extrema direita” um direcionamento externo unificado. Logo, nisso esse neofascismo difere do nacionalismo das experiencias dos anos 1920/1930: pois já é uma Internacional fascista.

No caso brasileiro, abrindo caminho para este fenômeno neofascista, quem morreu, no Brasil, foi o antigo tucanato, o PSDB, e a direita que restou da eutanásia tucana é uma direita antipolítica: golpista em tudo, contrária ao diálogo e ao debate, à leitura e ao direito. No limite, contrária até mesmo à Política, que é a arte de contrapor discordâncias, princípios e interesses (o interesse é legítimo!), e que ao longo destas contraposições na Pólis constrói o acordo possível. O que na cultura política dos EUA chamam de compromise: as partes cedem em pontos secundários e acordam num centro amplo. Isso é política! Poder negociar os projetos discordantes, criando um resultado de equilíbrio geral temporário. Que não é nunca um resultado perfeito para as partes, mas que responde aos anseios principais dos grupos mais representativos.

Mas o que se encaminha é a impossibilitação de qualquer acordo, com essa impossibilitação da política. Pois a direita que restou, após a Guerra Civil de destruição do Brasil, iniciada em 2013, é quase elogiada pelo professor Safatle, que vê coerência nela (diz ele: “ela entrega o que diz que entregará…”), nessa que é uma direita antipolítica, bem diferente de quando representantes da direita eram figuras como Jarbas Passarinho, ou mesmo um Magalhães Pinto…

Mas o que emerge no campo político da direita atual é um festival pornográfico de bestialidade, com o privado tomando conta do público, o individual do coletivo, com o absurdo sendo usado de forma espetaculosa para desqualificar tudo o que é público, tudo o que é político, e celebrar de forma celerada e desonesta o ultraliberalismo econômico a qualquer custo. A fala é rebaixada e a violência erotizada sempre por essa “nova direita”, resultado de adultos infantilizados.

A pauta, nada escondida, da antipolítica dessa extrema direita é guiada pela agenda única do ultraliberalismo à la TINA (there is no alternative), que mata e castra qualquer política, que é a arte de contrapor interesses, gerando no atrito novos resultados: mas como qualquer outro caminho está proibido pelos adeptos das seitas antipolíticas/ultraliberais (em economia) dessa “nova” extrema direita, a política foi assim assassinada!

Como não pode haver outro caminho, na verdade, não pode haver política: que é a arte da negociação de interesses, usando as fendas das contradições nos conflitos para cavar, sim, novas alternativas coletivas!!!

Óbvio está que essa “nova direita”, nova (sic) extrema direita, são roupas novas para o dogma neoliberal: a neoescolástica do neoliberalismo[i] é uma dogmática anticientífica, pois vive num dedutivismo pseudo-lógico que nega a história e os fatos, as experiências e os eventos. Logo, não é científica uma tal visão econômica, pois a ciência precisa balizar o dedutivismo com o indutivismo, os fatos históricos e o empirismo, junto com as deduções lógicas. E não defender a sacralidade de velhas deduções lógicas petrificadas. Esse dogmatismo da escolástica neoliberal nega os fatos e a realidade: é o negacionismo histórico militante, que grita que se os fatos negam suas teorias, que se explodam os fatos históricos.

Essa direita é negacionista histórica, (logo) negacionista científica, e assim ela emerge, orwellianamente, como um resultado político negacionista da própria política.

Que direita vive e que esquerda morreu?

O mundo entrou num período de crise sistêmica, de transição sistêmica entre o ciclo de acumulação capitalista norte-americano para um ciclo de acumulação capitalista (???) chinês (Giovanni Arrighi). Usa-se aqui a obra do pensador italiano como base deste texto: em sua obra fulcral, O longo século XX, Giovanni Arrighi constrói um arrebatador trabalho histórico/analítico de interpretação do capitalismo histórico.

O uso sintetizado de Giovanni Arrighi aqui é feito não para tratar de seu trabalho imenso, mas para desenhar o pano de fundo geral deste quadro de “morte da esquerda” que o presente artigo trata. Pois o que o mundo vive nesta terceira década do século XXI é uma crise sistêmica que ameaça culminar numa guerra generalizada: como costumam ser as guerras de transição sistêmica entre os ciclos de acumulação capitalista: uma “guerra de 30 anos” emerge no horizonte histórico do atual conflito hegemônico entre EUA e China.

Como foi a transição do “ciclo genovês” para o “ciclo holandês”, com a Guerra dos 30 anos “original” (1618-1648), encerrada no Tratado de Westphalia (1648), que deu origem ao mundo de soberanias políticas estatais, equilíbrio diplomático, e liberdades religiosas submetidas à soberania dos Estados: os Estados tinham soberania para impor sua religião nos seus territórios.

Todo este edifício westfaliano compõe os alicerces políticos das soberanias nacionais que compuseram o mundo político como conhecemos pós Tratado de Westphalia (1648), assim como após as guerras napoleônicas que geraram uma relativa paz de 100 anos no quadro estritamente europeu, e tal tradição westfaliana também está na raiz das instituições do pós-Segunda Guerra, como ONU, Bretton Woods, que criaram as vias diplomáticas após a “guerra dos 30 anos” (1914-1945) entre Alemanha e EUA no século XX. Sendo esta tradição westfaliana o caminho da valorização da política e da diplomacia, da negociação e do equilíbrio, logo, da multipolaridade.

Nesta “nova guerra de 30 anos” que emerge no horizonte histórico, há o caminho imperial dos EUA, da OTAN, e seus aliados, desenhando algo análogo no séc. XXI ao o que a Espanha tentou nos séculos XVI/XVII: a saída imperial.

E há a solução westphaliana, política, diversa e plural, nos obrigando a dialogar com soluções políticas que muitas vezes discordamos, mas que existem pelo planeta, com as diversas faces das lideranças locais e regionais emergindo no palco da história central, sempre disputada.

Obviamente que a solução aqui chamada de westphaliana é a solução que valoriza o diálogo político e a própria Política: logicamente com discordâncias, é preciso dialogar e achar compromises possíveis no horizonte. Recolocando assim a história no centro, com os Estados como base gestoras dos povos, assim como dos capitais e dos mercados.

Mas o que ocorre no quadro político mundial é um verdadeiro assassinato da Política para a entronização da “solução” imperial: uma ONU completamente esvaziada, num mundo de “soberanias nacionais” rebaixadas (modelo levado ao cúmulo pela União Europeia), com os Estados engessados sob a doutrina TINA, submetidos aos mega conglomerados financeiros do capitalismo monopolista (Big Tech à frente).

Logo, “a morte da esquerda”, neste quadro, é sinal de uma morte maior: é a morte da própria política, dentro de um sistema mundo que caminha celeremente para um totalitário capitalismo monopolista, sobretudo sob o domínio naturalizado das Big Tech, com seu hipercapitalismo das plataformas monopolistas/monopsônicas.

Sob o impacto da segunda revolução industrial, os países retardatários usaram dos mecanismos das empresas estatais para alcançarem soberania em áreas estratégicas da indústria de base e de energia (México de Cárdenas, Brasil de Vargas…), e assim salvarem sua independência. Já faz tempo que a revolução digital nos impõe uma solução análoga: sobretudo pelo controle comunicacional que ela impõe aos povos[ii]: ser de esquerda é defender abertamente a solução de estatais em áreas estratégicas, como é cada vez mais o realíssimo mundo digital.

Inclusive, sobre a “liberdade de expressão” nas plataformas do capital monopólico concentrado no Vale do Silício, o tão propalado sucesso dos produtores de conteúdo da extrema direita nas redes, obviamente, não é um acaso, não é mérito do talento deles: tais plataformas digitais usam seus escondidos algoritmos para alavancarem os propagadores da agenda dessa extrema direita: isso é cada vez mais perceptível.

Mas o público em geral naturaliza tais plataformas comunicacionais, e confunde (são induzidos a confundir) os conceitos: tais plataformas, associadas ao Estado dos EUA (na China suas empresas lá estão associadas ao seu Estado), pois no caso de Europa e América Latina, estamos completamente sob controle comunicacional das BIG Tech dos EUA, que já são meios de utilidade pública no mundo atual, e que assim precisam, não apenas de regulação, mas de contrapartes nacionais: só haverá saída para os países que criem algumas plataformas digitais próprias.

A realidade virtual já compõe grande parte do mundo econômico e social, mas estão fora dos controles sociais e políticos dos países latino-americanos e europeus: só respondendo ao Congresso dos EUA. Ou os países criam algum leque de plataformas digitais, ou perderão soberania.

Mas para fazer isso a esquerda precisa invocar, e positivizar, uma entidade esquecida (propositadamente), mas que cerca todos os problemas (e soluções) invocados pelos povos, uma entidade recalcada pela “esquerda race and gender”, pelos “modernos”, mas que ronda a esquerda como o fantasma invocado por Marx e Engels em torno da Europa em 1848: a entidade Estado.

Ressuscitar a política, e a esquerda, é ressuscitar o Estado-nação

A tão “viva” extrema direita cresce porque fala em nacionalismo! Mesmo sendo ela totalmente neoliberal em economia (vide Meloni na Itália, para não falar de Tarcísio em SP, ou Milei na Argentina). A esquerda precisa voltar a falar alto em estado, em estatais, para propor uma real solução aos problemas deste capitalismo monopolista das plataformas. O quadro histórico que se ergue no horizonte clama e exige mais e mais Estado, à revelia dos dogmas liberalóides, o vento da história impõe a solução Estado, para todo o cenário que emerge hoje: crise e catástrofes climáticas, guerras se alastrando, cibersegurança, soberania comunicacional, soberania energética, soberania alimentar….

A extrema direita no século XXI, por mais que arrote defender “o nacionalismo”, “os valores nacionais”, e toda verborragia nacional, ela é de fato completamente colonial/internacionalista em economia. Mas só a fala (mentirosa) dela, de defesa da nação já lhes dá voto. Logo, ser de esquerda no século XXI, exige assumir uma fala aberta de fortalecimento de estruturas do Estado-nação, defesa de estatais estratégicas, e de um nacionalismo econômico, em defesa de empregos e indústrias. Inclusive para que a entidade Estado possa reverter e minimizar as causas e efeitos da crise climática: esta crise internacional crônica, até ela, exige maior presença e soberania dos Estados nacionais na ação contra ela.

A esquerda precisa roubar o nacionalismo (fake) da direita, e defendendo um nacionalismo estatista, intervencionista, regulador, da economia e seus monopólios. Recuperando o poder de fazer políticas públicas dos Estados, políticas industriais dos Estados e assim recuperando a política para os povos.

Já ensinou Clausewitz que a guerra é a política por outros meios, pois o que se desenha no mundo é um bloco do capital monopolista central decidido a fazer a guerra a qualquer custo contra as forças em ascensão. Por isso tais forças monopolistas buscam exilar a política do planeta: para imporem o caminho da guerra sobre um mundo sob o totalitarismo neoliberal. Ou a humanidade resgata o fazer político, ou cairá no precipício da guerra, que caminha para ser uma guerra total. A morte da política, imposta pelo neoliberalismo inquestionável, é o beco impositivo levando o mundo para a guerra total. O silenciamento da política, imposto cada vez mais aos povos do mundo, é o grito de guerra do imperialismo.

*Cristiano Addario de Abreu é doutor em história econômica pela USP.

Notas


[i] https://gmarx.fflch.usp.br/boletim-ano2-09

[ii] https://www.brasil247.com/blog/a-inteligencia-artificial-e-a-estrada-da-servidao-voluntaria

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