1956, os jovens queriam mudar o mundo

Chila Kumari Singh Burman, Revoltas vermelhas em papel indiano, 1981
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Por SAMUEL KILSZTAJN*

A partir de 1956, jovens socialistas brasileiros, indignados, recusaram alinhar tanto aos stalinistas como aos revisionistas soviéticos

Em meio à Guerra Fria, após o falecimento de Stalin em 1953, ao final do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética – PCUS em 1956, Nikita Khrushchov denunciou o culto à personalidade de Stalin, sua intolerância, brutalidade, abuso de poder e crimes hediondos, com destaque aos expurgos de militantes comunistas, à política de controle dos registros históricos e da memória da Revolução Russa e à mistificação de seu próprio papel durante a Segunda Guerra Mundial.

As denúncias dos crimes de Stalin causaram mal-estar, ataques cardíacos, suicídios, protestos, deserção em massa de membros dos partidos comunistas em vários países ocidentais e o rompimento das relações políticas entre a China e a União Soviética no final dos anos 1950. Os militantes do Partido Comunista Brasileiro – PCB, a princípio, consideraram que as denúncias dos crimes de Stalin foram forjadas pelos Estados Unidos e só se convenceram de que eram do PCUS depois de serem confirmadas pelos partidos comunistas europeus.

Stalin, à frente dos soviéticos por ininterruptos 30 anos, cinicamente, foi apontado como o único responsável por todos os crimes perpetrados pela máquina do PCUS. Em 1934, por ocasião do XVII Congresso, todos os trotskistas, zinovievistas e bukharinitas já haviam sido politicamente liquidados. Mesmo assim, 1.108 dos 1.966 delegados do XVII Congresso foram presos sob a acusação de crimes contrarrevolucionários; e 98 dos 139 membros do Comitê Central foram fuzilados. No decorrer de 1937 foram presas 936.750 pessoas na União Soviética, 779.056 por crimes contrarrevolucionários, 353.074 das quais foram fuziladas após julgamentos que não duraram mais do que vinte minutos.

A partir de 1956, jovens socialistas brasileiros, a grande maioria em torno de seus 20 anos de idade, indignados, recusaram se alinhar tanto aos stalinistas como aos revisionistas soviéticos, reunindo-se em algumas pequenas associações, com o objetivo de mudar o mundo. Esta irrequieta rapaziada congregou-se na Liga Socialista Independente – LSI em São Paulo; Juventude Socialista do PSB no Rio de Janeiro e em São Paulo; Mocidade Trabalhista do PTB em Minas Gerais; e em um grupo de jovens socialistas na Bahia. Na Universidade de São Paulo, no mesmo período, formou-se um grupo para o estudo de O capital de Karl Marx.

Seguem os nomes de alguns desses jovens irreverentes que queriam mudar o mundo, futuros consagrados intelectuais, que foram formados nas barricadas e nas trincheiras revolucionárias, fazendo de sua atividade intelectual uma militância (alguns dos listados participaram de mais de um dos agrupamentos). Da LSI participaram Alberto Luiz da Rocha Barros, Eder Sader, Emir Sader, Gabriel Cohn, Hermínio Sacchetta, Luiz Alberto Moniz Bandeira, Michael Löwy, Milton Tacolini, Renato Caldas, Renato Pompeu e Rubens Glasberg.

Da Juventude Socialista/PSB, Aluizio Leite Filho, Artur Mota, Erich Sachs, Luiz Alberto Moniz Bandeira, Mauricio Tragtenberg, Paul Singer, Piragibe de Castro e Ruy Mauro Marini. Da Mocidade Trabalhista/PTB, Arnaldo Mourthé, Carlos Alberto Soares Freitas, Guido de Souza Rocha, Herbert de Sousa/Betinho, Inês Etiene Romeu, Jair Ferreira de Sá, Juarez Guimarães de Brito, Maria do Carmo de Brito, Otavino Alves da Silva, Simon Schwartzman, Theotônio dos Santos Junior, Vânia Bambirra e Vinícius Caldeira Brant. Da Bahia, Amilcar Baiardi, Hermano Peralva, José Luís Pamponet Sampaio e Raimundo Aras.

Do Grupo de leitura de O capital/USP, Bento Prado Jr, Boris Fausto, Fernando Henrique Cardoso, Fernando Novais, Francisco Weffort, José Arthur Giannotti, Juarez Brandão Lopes, Michael Löwy, Octavio Ianni, Paul Singer, Roberto Schwarz, Ruth Cardoso e Ruy Fausto.

Em 1961, a maior parte desses jovens da LSI, Juventude Socialista, Mocidade Trabalhista e socialistas da Bahia fundou a Organização Revolucionária Marxista Política Operária – ORM-Polop, objeto de estudo de Lineker Noberto. A Polop defendia a revolução socialista, em oposição à política do PCB, que defendia a aliança dos trabalhadores à burguesia nacional para enfrentar o latifúndio e o imperialismo. Em 1962 foi criada a Ação Popular – AP; o PCB, alinhado à União Soviética, perdeu parte de seus militantes que formaram o Partido Comunista do Brasil – PCdoB, que se aliou à China.

A tomada do poder pelos militares brasileiros em 1º de abril de 1964, orquestrada pelos Estados Unidos em meio à Guerra Fria, constituiu um duro golpe para o processo de construção de uma democracia no Brasil após a Segunda Guerra Mundial. Em 1966, várias dissidências estaduais romperam com a direção do PCB; no mesmo ano, uma dissidência do PCdoB formou a Ala Vermelha. Em 1967 a Polop perdeu relevantes quadros que formaram a COLINA (de Dilma Rousseff) e a VPR (de Carlos Lamarca).

Cerceada toda e qualquer forma de expressão pacífica de oposição à ditadura dos militares que ilegalmente se auto constituíram em autoridade, vários contingentes da esquerda brasileira radicalizaram-se e resolveram pegar em armas. Ao lado das dissidências do PCB e do PCdoB, engrossados por novas levas de militantes que se engajaram na luta contra a Ditadura Militar, os jovens da LSI, Juventude Socialista, Mocidade Trabalhista e socialistas da Bahia, dez anos mais velhos, intelectuais armados, deram origem às inúmeras organizações políticas da extrema esquerda no país que enfrentaram militarmente a ditadura, recrudescida em 13 de dezembro de 1968 com o Ato Institucional nº 5 – AI-5.

Foi em 1968 que, aos dezessete anos de idade, me deparei com Eder, Emir, Eric e Otavino, fundadores remanescentes da Polop, que se juntaram à Dissidência Leninista do PCB do Rio Grande do Sul e formaram o Partido Operário Comunista – POC. Passada uma semana do começo da Greve de Osasco de 1968, eu tinha a sensação de que anos haviam se passado desde o início do movimento.

Literalmente, depois de vivenciar e ser contaminado pelo espírito de solidariedade e generosidade humana, eu não era mais o mesmo adolescente da semana anterior. Em 1970, Eder e Eric deixaram o POC e retomaram a sigla “nova Polop”. Em 1971, já na saída da jogada, fui capturado, com direito a férias penais. Depois, por obra do destino, perambulando pela academia, me encontrei professor titular em economia política, leia-se, Karl Marx.

Não há forma mais exemplar para se entender a dinâmica da economia, por suposto capitalista, do que a leitura de O capital de Karl Marx. No padrão monetário do século XIX, os preços das mercadorias, mensurados em dinheiro, efetivamente caíam com o aumento da produtividade, atravancando e atrofiando o processo de acumulação do capital. Mas, com o abandono do padrão-ouro no século XX, a lei de tendência à queda da taxa de lucro deixou de vigorar e limitar o desenvolvimento do sistema capitalista, questão desconcertante e deveras cara para os economistas marxistas. Apesar de Engels, o socialismo continua mais utópico do que antes, mais utópico do que nunca.

Entre lutas, prisões, torturas, assassinatos, derrotas e vitórias que se esvanecem como sombras, assistimos hoje aos desdobramentos de um capitalismo selvagem e distópico, que vem revogando as conquistas trabalhistas do século XX e segue transformando em mercadoria tudo o que encontra pela frente. Vende? O mundo está na palma de sua mão!

Em relação às profecias não concretizadas de Marx, uma das que eu mais me ressinto é a extinção da pequena burguesia e a homogeneização da classe operária. Submetidas ao reino da mercadoria, as atuais múltiplas camadas da estrutura social florescem arrivistas, cada uma delas esticando o pescoço para se imiscuir na camada imediatamente acima, enquanto pisa na cabeça da imediatamente abaixo.

Nos vários momentos de júbilo socialista, mesmo que efêmero, enquanto todo mundo é visto como um igual, pode-se vivenciar a solidariedade, a justiça, o desprendimento, a liberdade e a alegria de viver. Sigo acreditando na generosidade humana, na ideia de igualdade, sem lugar para a vaidade e o esnobismo, para a ganância, para a hierarquia, poder, privilégios e o servilismo. Mas isso é uma utopia, é messiânico, é apenas um sonho. Será que seria melhor eu cair na real, ser realisticamente apático, cínico ou simplesmente mesquinho?

*Samuel Kilsztajn é professor titular em economia política da PUC-SP. Autor, entre outros livros, de 1968, sonhos e pesadelos. [https://amzn.to/46zWlyv]


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