Por FLÁVIO AGUIAR*
Sessenta anos atrás o povo se deixou vislumbrar
Será que o povo existe? Será que ele é como o monstro do Loch Ness, na Escócia, que quanto mais se deixa vislumbrar em fotos fugidias, mais se levantam as dúvidas sobre sua existência? Dizem as constituições que o povo é soberano e que os poderes serão exercidos em seu nome, mas a gente sabe que isto é uma quimera.
As esquerdas, em geral, não gostam de o povo, vendo nele uma artimanha das classes dominantes para manter o jugo sobre as classes subalternas. Mas as esquerdas, em geral, também não gostam das palavras “nação” e “nacionalismo”. No entanto, elas existem, e mobilizam. Claro, podem mobilizar à direita, com xenofobia e outros preconceitos. Mas também podem mobilizar à esquerda, junto com a luta anti-imperialista.
São palavras que podem mudar de sentido, conforme a latitude e a longitude em que estejam. Na Europa, em 90% dos casos, “nacionalismo” aparece nos discursos da direita, com “xenofobia” e “autoritarismo” em conexão. Porém, ao cruzar o Atlântico, a palavra foi mudando de cor, se avermelhando, até florir na América Latina junto com as lutas de libertação contra o jugo colonial e imperialista.
Aqui e ali, o Povo, de fato, se deixa vislumbrar, num alumbramento, para quem o viu e ouviu. Um destes momentos foi o do final de agosto de 1961, sessenta anos atrás. Eu tinha 14 anos e meio. Um belo dia, 25 de agosto, como um raio em céu de brigadeiro, estourou a notícia: o presidente Jânio Quadros renunciara.
Por que ele fez aquele gesto? Para dar um auto-golpe, dizem uns, esperando que o Povo aparecesse e o reconduzisse ao poder com poderes excepcionais, descartando a Constituição Federal. Mais ou menos como o atual usurpador do Palácio do Planalto quer fazer, sem recorrer a renúncia. Há uma diferença entre ambos: Jânio queria mesmo que o Povo, assim com maiúscula, o reconduzisse. Já a usurpador de hoje, cada vez mais acuado, espera que o “seu povo” o reconduza, essa arraia miúda composta pela soldadesca, oficiais de ou sem pijama, por milicianos, bandidos, motoqueiros da segunda e da terceira idade, a escória empresarial, os ruralistas e caminhoneiros de cabeça quente e arma debaixo do casaco, a lumpen-burguesia, os negociantes dos templos em nome de Jesus, a ralé, a escória e quejandos. A ver.
Mas há também quem diga que Jânio renunciou porque faltou alguém que o trancasse no banheiro. Provavelmente ambas as versões têm sua dose ou ponta de razão. Hoje se sabe que Jânio padecia de momentos de profunda depressão. Sobretudo a partir de quinta ou sexta-feira à tarde, quando todo o mundo político saía de Brasília, até segunda ou terça-feira, quando o mesmo mundo voltava. O presidente tinha de ficar em Brasília, sozinho. Há relatos pungentes – não confirmados, também como o monstro do Loch Ness – de que o presidente, nas noites de sexta-feira e sábado, sentava-se na sala de cinema do Palácio do Planalto com uma garrafa de uísque ao lado e ficava assistindo um faroeste até que ambos – o filme e a garrafa – terminassem. Vá se saber.
O fato que se sabe é que, para provável surpresa do presidente, o Congresso Nacional aceitou a renúncia. E outro fato que se sabe é que os ministros militares – Odylio Denys, da Guerra (hoje se diz do Exército), Grum Moss (da Aeronáutica) e Silvio Heck (da Marinha) – vetaram a posse do vice João Goulart, que se encontrava em viagem à China, a mando do presidente Jânio Quadros.
Para muitos isto corrobora a hipótese da auto-conspiração janista: que no momento da renúncia o vice se encontrasse num país comunista, o que aumentaria a suspeita de que ele quisesse instaurar um regime revolucionário e sindicalista. Logo Jango!, sempre hesitante, timorato e conciliador.
Entretanto, o inesperado aconteceu. O governador Leonel Brizola não aceitou o golpe, mobilizou a Brigada Militar (a PM do Rio Grande do Sul), entrincheirou-se no Palácio Piratini, sede do governo estadual, requisitou a rádio Guaíba e deu começo àquilo que entraria para a História como o Movimento e a Rede da Legalidade.
Insatisfeitos com a pregação do governador, os ministros militares deram ordem para que ele se calasse. Consta que o general Costa e Silva telefonou para ele, exigindo que interrompesse as emissões radiofônicas da Rede da Legalidade. “Ninguém vai dar o golpe pelo telefone”, foi a resposta que o general recebeu.
Depois de momentos excruciantes, o comandante do III Exército, sediado em Porto Alegre, então o maior e mais bem armado do país, aderiu ao movimento de resistência contra o golpe. O ponto mais dramático desta expectativa foi a chegada da notícia de que uma coluna de blindados saíra do seu quartel, no bairro da Serraria, e vinha para o centro da cidade. Para onde apontariam os tanques? No final, um alívio: os tanques ocuparam o cais do porto, onde navios da Marinha ali estacionados, com comandantes favoráveis ao golpe, ameaçavam bombardear o Palácio Piratini. Mas outros momentos dramáticos se seguiriam.
Desesperados diante do sucesso da resistência, os ministros golpistas deram ordem para que os aviões da 5a. Zona Aérea, sediada em Canoas, na Grande Porto Alegre, levantassem voo e bombardeassem o Palácio. A senha era: “Tudo azul em Cumbica”, porque os jatos Gloster Meteor deveriam executar a ordem e rumar para São Paulo, pousando na Base Aérea assim chamada, em Guarulhos. Um rádio-amador captou a ordem e avisou o governador Leonel Brizola, que fez uma despedida histórica pela Rede da Legalidade, dizendo que resistiria até o fim e pedindo a todos que ficassem em casa. Aconteceu o contrário.
Pois foi no meio deste torvelinho que o Povo entrou em cena. Quando o carro do general Machado Lopes chegou à Praça da Martriz, em frente ao Palácio Piratini, a multidão compacta deteve o veículo. E começou a cantar o Hino Nacional. O militar saiu do carro, se perfilou e cantou junto. Foi o sinal dado de que ele vinha para aderir ao movimento, não para sufocá-lo.
Na sequência, chegou um jipe da Aeronáutica. A multidão, que nesta altura era calculada em 100 mil pessoas (Porto Alegre, na época, rinha uns 650 mil habitantes), bloqueou-lhe o caminho, aos brados de “golpistas” e “assassinos”, pois já sabia da ordem de bombardeio, mas não recuava. Começaram a tentar virar o veículo. Desesperado, o sargento que dirigia o carro, com um acompanhante, gritou (mentiu) que era primo do governador Brizola, e que vinha lhe pedir ajuda. A multidão deixou os dois passarem.
Nova notícia: durante a madrugada os sargentos da Base Aérea rebelaram-se, e, armados, cercaram o alojamento onde os oficiais se preparavam para levantar voo e cumprir a ordem assassina.
A situação era tensíssima. Alertado, o general Machado Lopes enviou um destacamento para ocupar a Base de Canoas. Os oficiais golpistas fugiram para São Paulo, em aviões desarmados. Assumiu o comando o tenente-coronel aviador Alfeu de Alcântara Monteiro, legalista.
Era o dia 28 de agosto de 1961. Ali estava, sem dúvida, deixando-se vislumbrar, o Povo mobilizado. Por que o Povo? Porque não há estatística que cubra aqueles 100 mil, e os demais que passaram a se espalhar pela cidade, levando bandeiras, panfletos e palavras aladas conclamando a defesa da Legalidade. Qual o percentual de trabalhadores ali presentes? De estudantes? De classes médias? De médicos, engenheiros, advogados, funcionários públicos, aposentados, professores, etc.? De jovens e velhos? De homens e mulheres? Até de militares à paisana, além dos da Brigada Militar, armados até os dentes nas trincheiras de sacos de areia improvisadas ao redor do Palácio? É impossível saber. Não só porque não se fez esta estatística, mas porque o que ali estava era o resultado de uma transubstanciação, uma mudança de identidade e de natureza, mesmo que fugaz e momentânea. A massa de gente dispersa e acomodada pusera-se de pé e transformara-se em “o Povo”.
Paulo César Pereiro, inspirando-se na Marselhesa, compôs a música e a poeta Lara de Lemos a letra do Hino da Legalidade: “Avante, brasileiros, de pé,/Unidos pela Liberdade./Marchemos todos juntos com a bandeira/Que prega a Lealdade.//Protesta contra o tirano/Que prega a traição,/Que um Povo sé será grande/Se for livre sua Nação!”. Nas manifestações, tornou-se o complemento do Hino Nacional e do Hino Riograndense, que relembrava os legendários Farrapos e Garibaldinos de antanho.
O que se seguiu depois foi a série atribulada de movimentações militares, de negociações palacianas, com a adoção provisória do regime parlamentarista (desativado pelo plebiscito de 1963). Houve uma decepção generalizada quando, já de retorno ao Brasil, ainda em Porto Alegre, João Goulart aceitou a chamada emenda parlamentarista, desarticulando o Movimento da Legalidade. O Povo, novamente reunido na Praça da Matriz, vaiou-o sem dó nem piedade, jogando-lhe um rosário de palavrões impublicáveis aqui. A tal ponto chegou a fúria da multidão que Brizola decidiu tirar dali o vice-presidente, fazendo-o sair pelos fundos ou pelos subterrâneos do Palácio até um ponto seguro de onde ele pudesse tomar rumo.
Ainda houve outros momentos trepidantes, como aquele em que um grupo inconformado de oficiais da Aeronáutica decidiu derrubar o avião em que Jango seguiria de Porto Alegre para a capital, na chamada “Operação Mosquito”. Uma complexa “Operação Tática” de resposta àquela foi montada a partir de Porto Alegre, garantindo o voo e o pouso em segurança no aeroporto de Brasília.
Nos anos que se seguiram os conspiradores de 61 tornaram-se os vitoriosos golpistas e canalhas de 64, quando o Povo perdeu e se desarticulou, para reaparecer, apenas nas manifestações pelas Diretas, em 83/84, com ganhos e perdas, até os funerais de Tancredo Neves, em 1985.
O antes mencionado tenente-coronel Alfeu de Alcântara Monteiro, já promovido a coronel aviador, foi assassinado em 4 de abril de 1964, na mesma Base Aérea de Canoas, cujo comando assumira em 1961, como oficial legalista. Naqueles dias logo depois do golpe de abril, as luzes das ruas de Porto Alegre não eram acesas à noite. Lembro de uma dessas noites, em que eu estava à porta de nossa casa, e meu pai me falou: “entra, meu filho, hoje anoiteceu mais cedo”. Acho que era a noite deste mesmo dia 4 de abril.
De qualquer modo, as imagens e o canto de o Povo permanecem indeléveis nos olhos e nos tímpanos de quem O viu e ouviu, ainda que estejam um tanto desgastados pelo tempo.
P S Para quem não viu, recomendo o filme (ficcional e histórico) Legalidade (2019), dirigido por Zeca Brito. Uma surpresa: o pai do diretor atua como o Leonel Brizola já ancião, ao final do filme. Sua parecença com o ex-governador é tamanha, que houve quem pensasse que o próprio Brizola tivesse encenado seu papel, no fim da vida.
*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).