Lulismo: unidade e crítica

Foto de Hamilton Grimaldi
image_pdf

Por DURVAL SIQUEIRA SOBRAL*

As forças progressistas e revolucionárias devem aceitar a possibilidade de apoiar Lula, sob a condição de que ele defenda um programa mínimo antineoliberal

Com os últimos acontecimentos políticos abriram-se novos dilemas, alguns são relativamente fáceis de encarar, outros nem tanto. Com a anulação dos julgamentos de Lula e a recuperação de seus direitos políticos, reaparece na conjuntura a possibilidade de termos um candidato capaz de enfrentar e vencer Bolsonaro em 2022, e de ser um vocalizador dos interesses das classes populares nesse momento. Entretanto, para aqueles que militam em prol da Revolução Brasileira e também lutam por uma nova estratégia para a esquerda, sabe-se que essa novidade traz também seus desafios.

Lula neste momento é inegavelmente o melhor candidato e aquele que reúne as melhores condições de enfrentar Bolsonaro em um pleito eleitoral. Todas as forças progressistas e revolucionárias devem aceitar a possibilidade de apoiá-lo desde já, sob a condição de que ele defenda um programa mínimo antineoliberal e que enfrente a atual política de ajuste fiscal. Contudo para aqueles que militam pela revolução brasileira, sabe-se que o Lulismo e o Petismo já tiveram a oportunidade de apresentar os contornos dos seus limites, mas nunca é demasiado cansativo ou inconveniente reiterar que a estratégia do PT está atravessada de um reformismo que não pretende tomar o poder e nem realizar reformas estruturantes profundas. E que por isso, foi uma estratégia derrotada, incapaz de enfrentar a ofensiva que foi deflagrada em meados de 2015.

Dito isso, cabe afirmar que se coloca diante daqueles que reconhecem os limites do Petismo e do Lulismo, a percepção de que a unidade é necessária e de que hoje ela também perpassa por um apoio eleitoral a Lula, ao mesmo tempo em que essa posição não pode representar a uma renúncia ao direito de crítica e de disputa da direção política com o Petismo. A unidade enquanto um fenômeno político na história da esquerda é sempre atravessado por uma convivência entre as forças de esquerda, que combinam ações e tarefas entre si, mas também é marcada por disputas entre essas forças.

Nunca as divergências, as avaliações e os embates ficam “guardados em uma gaveta”, esses elementos são uma constante, pois, cada organização política traz em si suas convicções estratégicas e políticas. Tratando sempre de, convenientemente e de maneira oportuna, trazer à tona a sua linha política a fins de disputar a sociedade. Essa constante, com toda certeza traz riscos a eventuais tarefas unitárias, pois pode-se delegar o papel de divergir, discordar e demarcar, uma função mais relevante do que aquela de construir a unidade em torno de uma tarefa específica em uma conjuntura concreta. O que pode ser extremamente prejudicial, como bem conta a história da invasão de Constantinopla, em que os soldados discutiam os sexos dos anjos enquanto a capital estava sendo saqueada e destruída.

Creio que esse perigo não se apresenta hoje. Por dois motivos. O primeiro é que o PT enquanto organização e Lula enquanto liderança política, guardam em si força suficiente para estabelecer um vetor de força e influenciar a maioria das organizações da esquerda brasileira, devemos levar em conta que a política hegemônica no PT é reformista e que a atual geração de militantes do Brasil é bastante influenciada por esse conjunto de ideias,  logo, nossa doutrina sobre o estado, classes sociais, poder e os papéis das organizações da classe trabalhadora está contaminada por novos paradigmas que antes de tudo, não visam romper com o capitalismo e nem enfrentar a dominação estrangeira frontalmente.

O segundo ponto é que os reflexos no dia a dia da estratégia derrotada do PT são constantemente apresentados e já demonstraram ser ineficazes nos embates frente à ofensiva que nos encontramos. Esses reflexos concretos já vêm desde o início de 2015 e tanto enquanto direção de governo, candidatura e atualmente oposição, a estratégia petista tratou de se equivocar e pecar diversas vezes.

Para ilustrar este segundo ponto, bastaria rememorar que entre 2015-2016 existia uma vasta crença de que o problema do golpe político que enfrentávamos poderia ser resolvido por um acordo, um recuo programático, a nomeação de um novo ministério, uma ação judicial perante o STF. Após o golpe de 2016, guardou-se a expectativa de que nas eleições de 2018, com Lula, teríamos a oportunidade de vencer e reverter o cenário já instaurado.

E por fim, nos dias atuais, os novos reflexos e manifestações dessa estratégia se apresentaram na subordinação da esquerda a representações da direita tradicional, na tentativa de construir uma frente ampla contra Bolsonaro, o que nos levou pelo menos a dois fatídicos episódios desastrados. Sendo um a quebra da unidade da esquerda no 1° de Maio de 2020, quando abriram espaço de fala para Rodrigo Maia, Wiltzel, Fernando Henrique Cardoso e João Dória. E sendo o outro, o recente apoio no 1° turno da maioria da esquerda eleitoral à candidatura de Baleia Rossi, renunciando ao direito de disputar e aprofundar a denúncia contra Bolsonaro. O que se demonstrou naquele caso específico foi um erro de cálculo e de concepção, pois, já se tinham elementos suficientes para perceber que a centro-direita não tinha compromisso e acordo com nossas tarefas básicas: impeachment, vacinação geral e auxílio emergencial.

Logo, ao final dessa ilustração e da apresentação desses dois pontos, cabe afirmar que sim, não devemos renunciar ao direito e críticas que já temos acumuladas. Visto que, a renúncia à crítica e combate dessas concepções é nada mais que aceitar o ‘seguidismo’ cego. Portanto, o grande risco hoje que atravessa a vida de diversos militantes, é justamente o de reabilitar uma concepção estratégica derrotada, do que romper uma unidade em torno do nome de Lula.

O problema de uma convivência com o Lulismo nesse momento perpassa também pela influência que essa liderança exerce na esquerda. Já é extremamente prejudicial e ilusório crer que um indivíduo guarda a capacidade de alterar a correlação de forças que estamos imersos e de que por si só, este poderia reverter todo o esquartejamento do Estado Brasileiro e dos direitos do povo, em uma eventual vitória em 2022. Uma tese um tanto quanto curiosa, visto que, Lula foi libertado e inocentado (ao menos por enquanto) pelas mãos do STF, e não pelas mãos do povo brasileiro, o que é bastante sintomático. E que uma provável eleição de Lula, teria que ser fixada sobre ampla mobilização popular, o que não temos há um algum tempo.

A grandiosa tarefa do momento é estancar a sangria e os recordes de mortes que estão ocorrendo, através da vacinação geral e do retorno do auxílio emergencial. Mas, outra tarefa também se interpõe nesse instante: a de reconstruir a capacidade do movimento sindical, popular e estudantil, a fim de representarem e vocalizarem de fato, os interesses de suas bases e da classe trabalhadora. Ou seja, retomar o vínculo perdido. O retorno de Lula ao jogo político via o restabelecimento de seus direitos políticos com certeza poderá ajudar nessa tarefa, mas também poderá atrapalhar.

A dinâmica disso se dá em que o lado ‘positivo’ de Lula é ser uma liderança ligada a processos de distribuição de renda e a implementação de um programa neodesenvolvimentista, guardando até hoje certa ligação e memória com o povo brasileiro. O seu lado negativo se apresenta no seu desenvolvimento enquanto uma liderança que exerce o paternalismo, que coloca o estado enquanto um aparelho neutro e provedor de políticas sociais e que, sobretudo, enquanto liderança, não se dispõe a ser um organizador.

Sendo hoje, uma das lacunas mais perceptíveis dos governos Lula e Dilma a falta de um elemento de organização e participação dos trabalhadores, assim como a falta da politização (instrução constante sobre quais interesses de classes estão em jogo em cada embate político) daqueles que foram seus beneficiários. O que culminou no atual sujeito, infelizmente identificado por alguns, como “pobre de direita”. Ou seja, aquela pessoa pertencente a classe trabalhadora, que muitas vezes foi beneficiada pelo Prouni, Minha Casa Minha Vida, Bolsa Família e outros, mas que se mantém sempre com uma postura anti-esquerda e antipetista, quando não alinhando-se ao bolsonarismo.

É aquela velha história, se você plantar feijão não vai poder colher milho. Logo, mesmo muitos trabalhadores sendo beneficiários dos programas do PT voltam-se contra todo o legado desses governos, e não é possível culpabilizá-los por essa postura, a ideologia burguesa e neoliberal é a dominante, cabia à esquerda ter organizado essas pessoas e ter elevado sua consciência de classe.

Para isso, não tem receita fácil e nem atalho, somente trabalho de base e o recrutamento paciente permitirá reconstruir esse corpo. É pressuposto geral da formação de uma nova geração de militantes a presença de um programa e uma estratégia que sejam capazes de demonstrar a sua capacidade de enfrentar a ordem burguesa brasileira e desenvolver esses embates em favor da classe trabalhadora.

A esquerda vai ter que lutar contra o neofascismo e debater no dia a dia, nas trincheiras dessa guerra, a eficácia e a justeza da estratégia que nos guia nesse confronto. E a habilidade de continuar lutando e desenvolvendo novas soluções, verdadeiramente justas e acertadas, será extremamente necessária.

Infelizmente, ainda não contamos com um ambiente constituído de uma Frente Popular Antifascista. Duas plenárias entre centrais, frentes e coletivos foram feitas neste ano de 2021, mas nenhum desses encontros firmou a posição em torno de um programa emergencial mínimo e de tratos organizativos quanto ao funcionamento dessa articulação. É tudo ainda muito artesanal, o que só serve para atrasar uma articulação superior das lutas e da disputa contra o neofascismo. É extremamente urgente a esquerda se reagrupar em um Frente Popular Antifascista, que tenha como compromisso o combate ao neoliberalismo, ao imperialismo e ao bolsonarismo. Sem esse ambiente perdemos parte de nossa capacidade de ação, discussão e encaminhamento. Dispersamos as forças em iniciativas fracionadas e as oportunidades se vão.

Por último, o retorno de Lula não é garantia de sua candidatura, ao que tudo indica o STF obedecendo aos interesses de parte da burguesia brasileira e sob uma nova correlação de forças, está utilizando a anulação das sentenças condenatórias para forçar um recuo do bolsonarismo, não por que o STF tenha profundo compromisso com a democracia etc. e tal. Mas, por que a falta de vacinação e as intervenções em duas das principais empresas públicas de capital aberto -Petrobrás e Eletrobrás- renderam a Bolsonaro um grande desgaste com seu principal fiador, o Capital Financeiro. Portanto, para se ter Lula candidato a primeira coisa que a esquerda brasileira terá que abrir mão, será as suas ilusões, pois, as eleições de 2018 demonstraram, que não temos garantia nenhuma de que ele realmente poderá concorrer. Daqui até lá, o papel de Lula deve ser vocalizar as tarefas e as palavras de ordem de um programa antiliberal, antifascista e anti-imperialista.

*Durval Siqueira Sobral é militante da Consulta Popular.

 

 

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES