Começamos bem!

Gabriela Pinilla, Arenga, Pintura Mural. Diorama de 2 X 2 metros, 2020, Museo de arte Moderna, Medellín, Colombia
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Por PLÍNIO DE ARRUDA SAMPAIO JR.*

Sigamos o exemplo dos trabalhadores chilenos e colombianos

Com manifestações expressivas em todas as grandes cidades do Brasil, os Atos do dia 29 de Maio foram uma importante vitória dos trabalhadores. A história mostra que o povo na rua é o único antídoto contra a tirania do mercado e a ameaça autoritária.

Abre-se uma brecha para a deposição de Bolsonaro e Mourão, a precondição para que os trabalhadores consigam vacina no braço e comida no prato. É vital aproveitá-la com firmeza e determinação, não apenas para livrar a sociedade das perversidades do capitão-miliciano, mas, sobretudo, para interromper a ofensiva permanente do capital sobre o trabalho e reorganizar de baixo para cima a economia e a sociedade brasileira. A urgência é máxima. A situação da classe trabalhadora é calamitosa.

Com a circulação de coronavírus a pleno vapor, a campanha de vacinação em marcha lenta e o sistema nacional de saúde em colapso, o Brasil registra uma das piores taxas de letalidade por Covid-19, sendo responsável por aproximadamente 13% de todos os óbitos – quase cinco vezes superior à sua participação na população mundial (2,7%). Nos primeiros cinco meses de 2021, foram mais 265 mil mortes por Covid-19. Sem mudanças radicais na política sanitária, o Instituto de Métricas de Saúde e Avaliação da Universidade de Washington estima que, até o final de agosto, mais 143 a 317 mil pessoas (no pior cenário) perderão a vida. Isto é, o país chegará à marca de 815 a 990 mil mortos (oficiais + subnotificados) desde o início da pandemia.[i]

A pandemia de coronavírus agravou a crise de desemprego. A modesta recuperação do crescimento econômico, cuja expansão anual deverá ficar abaixo da queda verificada em 2020, não veio acompanhada de uma recuperação do mercado de trabalho. No primeiro trimestre de 2021, as taxas de desocupação, desalento e subutilização do trabalho continuaram em franca deterioração. Desde a eclosão da crise de coronavírus, 6,6 milhões de postos de trabalho foram destruídos, e o número de trabalhadores desempregados, desalentados e subutilizados aumentou em 5,6 milhões, alcançando mais de 33 milhões de pessoas, praticamente um terço da força de trabalho.[ii]

Não bastasse a crise de desemprego, os trabalhadores enfrentam uma escalada no custo de vida. Mesmo com a inflação oficial estabilizada no patamar de 5% ao ano, pesquisa do DIEESE mostra que, em 7 das 17 principais capitais do Brasil, a cesta básica de alimentos sofreu um reajuste de quase 20% nos últimos doze meses. Em consequência, em abril de 2021, nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Florianópolis, Porto Alegre e Vitória, o valor da cesta básica passou a consumir mais de 60% da renda dos trabalhadores que ganham o piso nacional (há dois anos praticamente congelado).[iii]

O agravamento da crise social provocou um expressivo aumento da população em situação de pobreza. Em 2020, o Auxílio Emergencial evitou que o problema se manifestasse. No entanto, em 2021, mesmo com o novo Auxílio Emergencial, estima-se que mais de 9 milhões de pessoas entrarão na pobreza, em relação a outubro de 2020, das quais 8,4 milhões na pobreza extrema. O contingente em estado de pobreza e pobreza extrema deve alcançar 28,9% e 9,1% da população brasileira, respectivamente, o equivalente à população da França e do Chile.[iv]

O aprofundamento da crise social provocou um recrudescimento da fome. Um trabalho da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional calcula que, apesar da transferência de renda determinada pelo Congresso Nacional, nos últimos três meses de 2020 117 milhões de pessoas sofreram algum grau de insegurança alimentar e 19 milhões passaram fome, 55,2% e 9% da população brasileira respectivamente – uma elevação considerável em relação a tais indicadores em 2018: 36,6% e 5,8%, respectivamente.[v] Com o agravamento do desemprego e a significativa redução do Auxílio Emergencial, o problema se agravou dramaticamente.

A deposição de Bolsonaro e Mourão é uma urgência nacional. O genocídio sanitário, as negociatas permanentes, o desrespeito sistemático às instituições republicanas, a corrupção a céu aberto e a violência de Estado como solução para a crise política tornam sua permanência no Planalto uma ameaça inaceitável à cidadania e ao meio ambiente. Seria uma irresponsabilidade imperdoável deixá-los sangrando até 2022 na esperança de uma solução eleitoral extemporânea pela linha de menor resistência. Essa é, no entanto, a aposta da oposição dentro da ordem, inclusive de sua ala esquerda. Não surpreende que a direção nacional da CUT, MST, PT e até mesmo algumas regionais do PSOL, em total dissonância com o sentimento de sua militância, tenham se omitido vergonhosamente de convocar e mobilizar a população para o 29M. Espera-se que isso não se repita na manifestação marcada para o próximo 19 de junho.

Na luta contra Bolsonaro e Mourão, é importante não perder de vista a perspectiva de classe. A aposta na imunidade de rebanho, nas reformas liberais, na austeridade fiscal e na solução autoritária para a crise política nacional não é uma exclusividade do governo Bolsonaro. São políticas que atendem ao interesse do grande capital. Bolsonaro representa sua dose máxima. A dose mínima apenas reduz o ritmo e a intensidade do avanço da barbárie capitalista.

Bolsonaro deve ser deposto já, por uma intervenção popular, embasada num programa de mudança imediata no modelo econômico e político. Sigamos o exemplo dos trabalhadores chilenos e colombianos. Ocupar as ruas, paralisar as fábricas, derrubar o governo e conquistar a vacina como primeiro passo para uma refundação da sociedade, tendo como norte a igualdade substantiva e o respeito à natureza. É hora de organizar a contraofensiva do trabalho sobre o capital.

*Plínio de Arruda Sampaio Jr. é professor aposentado do Instituto de Economia da Unicamp e editor do site Contrapoder. Autor, entre outros livros, de Entre a nação e a barbárie – dilemas do capitalismo dependente (Vozes).

Publicado originalmente no site www.contrapoder.net .

Notas


[i] Ver https://covid19.healthdata.org/brazil?view=daily-deaths&tab=trend

[ii] Dados da PNAD-Contínua, maio de 2021. https://ftp.ibge.gov.br/Trabalho_e_Rendimento/Pesquisa_Nacional_por_Amostra_de_Domicilios_continua/Mensal/Quadro_Sintetico/2021/pnadc_202103_quadroSintetico.pdf

[iii] Ver https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/2021/202104cestabasica.pdf

[iv] Seguindo classificação do IBGE, considera-se a população em situação de pobreza e pobreza absoluta aquela que tem uma renda mensal de, no máximo, R$ 436 e R$ 151 por pessoa de domicílio, respectivamente. O trabalho mencionado é “Gênero e raça em evidência durante a pandemia no Brasil: o impacto do Auxílio Emergencial na pobreza e extrema pobreza”, Notas de Política Econômica, No. 10, MADE-USP, de autoria de Nassif-Pires, Luiza; Cardoso, Luisa; Oliveira, Ana Luíza Matos, de 22/04/2021. IN: https://madeusp.com.br/wp-content/uploads/2021/04/NPE-010-VF.pdf

[v] Ver Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. In: http://olheparaafome.com.br/VIGISAN_Inseguranca_alimentar.pdf

 

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