Justiça climática

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Por MARIANNA ALBUQUERQUE*

Mudanças climáticas atingem de formas e intensidades diferentes grupos sociais distintos

O último relatório do Painel Internacional de Mudança do Clima (IPCC), publicado em 2021, trouxe dados alarmantes sobre a irreversibilidade das mudanças climáticas. Apesar das conclusões do documento indicarem a universalidade dos impactos, há elementos que indicam, também, a desigualdade dos efeitos do aquecimento global. Há regiões atingidas de forma mais premente, como as pequenas ilhas, e há também grupos que se encontram em situação de maior vulnerabilidade aos efeitos das alterações de clima.

A mudança do clima não implica apenas em impactos ambientais, como também afeta as dimensões sociais e econômicas da nossa existência, por exemplo, ao ameaçar direitos humanos, em especial de grupos historicamente mais vulneráveis. O termo justiça climática indica que mudanças climáticas atingem de formas e intensidades diferentes grupos sociais distintos. A mudança climática levanta várias questões éticas e políticas (para além das ambientais) como, por exemplo, o aprofundamento das desigualdades de gênero.

Entre os grupos mais vulneráveis à mudança do clima, especialistas destacam as mulheres. Alguns efeitos são biológicos: em processos como a gravidez e a amamentação, por exemplo, as mulheres possuem necessidades nutricionais que as tornam particularmente sensíveis a situações de insegurança alimentar, já que as alterações do clima interferem diretamente no ciclo produtivo de alimentos. Outros efeitos são culturais, como a dependência econômica, que resulta na dificuldade de abandonar residências em áreas de risco e interfere na possibilidade de recolocação profissional após desastres climáticos, associado aos níveis de escolaridade mais baixos de mulheres em diversos países.

Além disso, são comuns e recorrentes os abusos sexuais a mulheres em abrigos pós-desastre, bem como a atuação das redes de tráficos de pessoas em contextos de migrações forçadas por furacões, tsunamis ou grandes queimadas. Além disso, esses impactos não são uniformes para todas as mulheres: aquelas com outras formas de vulnerabilidade associadas, por exemplo, ao preconceito racial e menor acesso a oportunidades econômicas, costumam sofrer primeiro e mais. Ainda há, entretanto, poucos estudos e iniciativas que integram as agendas de gênero e clima. Em entrevista, a especialista Cecília Sorensen afirmou que tal desconhecimento e falta de conexão acontece, inclusive, nas comunidades médicas, que ainda são pouco capacitadas para propor modelos de saúde que integre gênero, raça, classe e mudança do clima.

Entre as estratégias que mulheres têm encontrado para enfrentar esta situação está a formação de comunidades de mulheres. Por meio do compartilhamento de conhecimento, técnicas e trabalho, as mulheres conseguem, conjuntamente, diminuir a vulnerabilidade coletiva e aumentar sua prosperidade econômica. Algumas estratégias para essa estratégia são a construção de capacidades, a cooperação estratégica e as redes de advocacy, a sensibilização e divulgação de informações sobre o tema, e a capacitação para atuação na prática.

Algumas iniciativas que podem contribuir para esse esforço são o treinamento e a mentoria para candidatas a cargos políticos, de forma a transformar projetos em políticas públicas de longo prazo, como políticas de redução de riscos e desastres, orçamento, planos municipais e estaduais setoriais, planos de governo e planos plurianuais. O advocacy com órgãos públicos para a disponibilização de dados desagregados por gênero e diversidade também é ferramenta útil para informar políticas climáticas e de redução de risco e desastre com foco em meninas e mulheres vulneráveis.

Pela importância do tema, já há iniciativas e redes se articulando para promover políticas responsivas ao gênero e ao clima, como a Women lead climate, a Women climate, a Em Power e a Women’s Environmental Network. Esses exemplos nos mostram que a presença internacional das organizações de mulheres na mobilização pelo clima contrasta com o relativo vácuo de movimentos no Brasil e na América Latina. Portanto, a região precisa de uma agenda ampla, que conecte os desafios e soluções em uma estratégia mais robusta de planejamento e ação em clima e gênero.

A crise climática não é neutra para gênero. O desafio da justiça climática envolve, de um lado, o reconhecimento da interseccionalidade das vulnerabilidades climáticas (gênero, raça, classe social, etc.), e de outro, da persistente baixa representatividade feminina nos espaços de poder. Para além do reconhecimento da iniquidade, começaremos a reduzir a justiça climática na América Latina quando assumirmos um compromisso sério de colocarmos em espaços de poder e representatividade, pessoas comprometidas com a agenda de clima em todas as suas nuances, inclusive a de gênero.

*Marianna Albuquerque é doutora em ciência política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ.

Publicado originalmente no blog do Monitor do Novo Debate Econômico (MNDE).

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