Poesia marginal da esquina atlântica

Lubaina Himid, Três arquitetos, 2019
image_pdf

Por MARCOS SILVA*

Comentário sobre o livro de Alexandre Alves

O livro Poesia marginal da esquina atlântica, de Alexandre Alves, contribui para pensar mais amplamente sobre a produção poética no Rio Grande do Norte e no Brasil, ao abordar sua problemática a partir de uma nomeação mesclada a “Geração alternativa”.

Valeria a pena explicitar os critérios dessas designações: À margem de valores estéticos dominantes, em termos de estilos? À margem de instituições de consagração e divulgação dominantes, no que se refere a entidades como Academias de Letras e Imprensa, além de políticas culturais de governo? À margem do mercado editorial dominante? À margem de hegemonias culturais regionais? A uma mescla dessas formas de estar à margem, no que diz respeito a estilos, instituições, mercado e hegemonias regionais? Qualquer que seja a resposta, estamos diante de disputas pelo poder poético.

Problemas similares se manifestam em relação a “Geração alternativa”. Que significa uma geração? Suponho que ela se refere a traços de estilo, consagração e divulgação em comum e no tempo. Isso remete a datas de nascimento dos Poetas, a simultaneidade no lançamento e na recepção de obras? A produção poética se vincula mais a mistura entre tempos (Homero, Dante, Camões, Bocage, Dias-Pino) que a sua segregação: o passado é referência para o presente, o presente interpreta o passado através de suas experiências e projeta futuros; nenhum presente, passado ou futuro é homogêneo, antes abriga disputas por aqueles poderes – Políticas.

Qualquer resposta remeterá a relações de poder no campo literário e cultural, bem como na sociedade mais amplamente considerada. Num país como o Brasil, nomes e obras que se tornaram clássicos estiveram ou estão à margem de múltiplas formas – Joaquim de Sousândrade, Afonso de Lima Barreto, Orides Fontela… Quem garante que muitos outros Autores de igual grandeza não estão entre nós, ainda à margem? E que mais alguns, hoje prestigiados, percam espaços de poder no futuro?

Há uma faceta dessa problemática que merece destaque: a chamada Poesia Marginal, no Brasil, foi assim designada no contexto da ditadura de 1964/1985, juntando-se a imprensa alternativa, partidos políticos de oposição e outros núcleos críticos àquela ditadura. Embora livros e poemas avulsos de tal universo marginal possam ter alcançado boas tiragens e até vendas expressivas, quantos poetas brasileiros, até hoje, vivem de sua produção literária? Quais políticas editoriais para poesia vigoram nas grandes empresas que lançam livros no Brasil e em órgãos culturais e artísticos governamentais do país, inclusive universitários? Toda poesia tem algo de marginal, no Brasil e no mundo? Mas é importante preservar a historicidade de uma poesia que foi designada e se designou como marginal.

O clássico estandarte de Hélio Oiticica, com o dístico “Seja marginal, seja herói”, sugere outro título para a obra de Alexandre Alves: Poesia heroica, diante daquelas múltiplas marginalizações sofridas por diferentes Poesias. Estar à margem não é simples opção dos poetas, é também ser marginalizado por diferentes instâncias de poder, é também evidenciar o poder dos marginais.

Seria possível refletir mais sobre Arte Postal, uma produção na confluência entre poesia marginal e vanguardas poéticas, brevemente citada no livro, que enfrenta certa resistência nos estudos literários – alguns críticos universitários evitam sua discussão, alegam não dominar seus recursos de linguagem, argumento surpreendente daqueles eruditos estudiosos.

Cabe recordar que a poesia marginal e as vanguardas formaram suas instâncias próprias de divulgação e consagração, como se observa, por exemplo, com o Poema Processo, que teve em Moacy Cirne um importante teórico e analista.

Dirigido mais para a experiência potiguar, editado em Natal, RN, por uma editora chamada Sol Negro (outrora, Natal foi rebatizada, para fins turísticos, como Cidade do Sol…), o livro de Alexandre carece de mais reproduções de poemas para que o leitor que não teve acesso anterior a obras comentadas entenda mais o que está sendo apresentado e responda reflexivamente às indagações que ele suscita. Ao invés disso, a obra se excede no arrolamento de nomes de autores e títulos de obras, com exceção de alguns poemas de João Gualberto Aguiar, Carlos Gurgel, Jóis Alberto, João Batista de Morais Neto (João da Rua) e Antonio Ronaldo, adequadamente reproduzidos e comentados.

Esse vasto panorama sugere que a poesia marginal se distingue das vanguardas ao pensar sobre retaguardas, sem perda de seu presente, perturbadora caracterização, por Haroldo de Campos, de um estar à margem da margem, correndo riscos de uma perigosa homogeneização do fazer poético que esse livro consegue evitar.

Alves é um exemplo de crítica e história literária que se volta para esse universo menos canônico da literatura (poesia marginal de um estado pouco visível, em termos culturais), importante conquista do trabalho acadêmico, merecedor de continuidade.

*Marcos Silva é professor do Departamento de História da FFLCH-USP.

 

Referência


Alexandre Alves. Poesia marginal da esquina atlântica. Natal, Sol Negro, 2019, 68 págs.

 

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES