Pelé e a história

image_pdf

Por LEONARDO SACRAMENTO*

Por que Pelé é a nossa maior figura da história social brasileira?

Pelé foi a nossa maior figura da história social brasileira, de difícil reprodução porque uma figura social se mede não apenas pela técnica ou pelos números, como tentam fazer hoje em mesas redondas e discussões intermináveis em canais de televisão e de redes sociais. A importância de alguém ou de algo se mede pelo impacto na área de atuação e nas relações sociais.

Pelé surgiu após a derrota de 1950 para o Uruguai no Maracanã, na qual Nelson Rodrigues diagnosticou as emergências de duas ideologias existentes que ganhavam uma organicidade perigosa na sociedade brasileira. A primeira era uma ideologia antinacional, da qual chamou de “viralatismo”. Essa ideologia dizia, aprofundando as políticas de Estado até então, que a Europa deveria ser copiada em tudo, inclusive no futebol – qualquer semelhança com o estágio atual dos debates futebolísticos não é mera coincidência.

O segundo era uma espécie de racismo organizado e pulverizado direcionado ao goleiro Barbosa, produzindo a ideia reinante até hoje no futebol que negros não são confiáveis para serem goleiros. A recriminação a Barbosa coroava a ideia segundo a qual negros deveriam desaparecer da vida social brasileira. Cinco anos antes, Getúlio Vargas, dando prosseguimento às políticas de embranquecimento iniciados em 1890, promulgara o Decreto-Lei 7.967, o qual autorizava a entrada de estrangeiros desde que respeitasse a “necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência europeia, assim como a defesa do trabalhador nacional”. Esse dispositivo só seria revogado em 19 de agosto de 1980.

Importante lembrar que Pelé vem de uma linhagem bastante peculiar, já que estamos a falar de realeza. Em muitos sentidos, Pelé descende de Arthur Friedenreich e Leônidas da Silva, esse apelidado de Diamante Negro (o chocolate é em sua homenagem). O primeiro apelido de Pelé foi Pérola Negra para contrastar com Leônidas, a primeira grande rivalidade entre jogadores alçados a gênios do futebol.

Pelé é uma síntese dos dois jogadores negros que o antecederam em um país cuja maioria dos clubes ainda se recusava a aceitar jogadores negros. Quando aceitavam, não deveriam ultrapassar a quantidade de jogadores brancos. As exceções Ponte Preta e Vasco passaram a ser acompanhadas por um time até então irrelevante do litoral paulista. A aposta do Santos de trabalhar com jogadores negros o alçou a maior clube do planeta.

Com a tão sonhada Copa do Mundo de 1958, vencida por uma seleção capitaneada pelo elegante e genial Didi, o Brasil ganhou nova perspectiva, coroando a década chamada de Anos Dourados. A vitória com o protagonismo do adolescente Pelé enterrou por longas décadas alguns dos fantasmas de 1950. Garrincha enterrou ainda mais em 1962. Verdade que volta e meia são exumados, mas Pelé os enterrou por longas décadas e criou um contraponto, quando surgem: a excelência do futebol brasileiro vinculado à africanidade (semba), ou o tal do “futebol moleque”, “futebol bonito” ou “futebol espetáculo”.

O futebol brasileiro seria a expressão de um espírito nacional fundado na africanidade, no samba, na roda, no candomblé, na capoeira e no corpo que não se dissocia da inteligência e da alma. Um contraponto à mecanização da relação entre corpo e inteligência feita pelo eurocentrismo, o capitalismo e o tal futebol europeu, esse bastante flexibilizado pela grande entrada de jogadores de ascendência africana e sul-americana. O time é o Barcelona, mas o seu melhor ataque foi Messi, Suarez e Neymar, três representantes de escolas não europeias. A sua transição ao futebol de hoje dependeu de um cara apelidado de bruxo, Ronaldinho Gaúcho. O grande time de hoje é o PSG, mas seu ataque é Messi, Neymar e Mbappé.

Pelé foi o grande responsável pela universalização do futebol, sobretudo em países que não tem o esporte entre os mais praticados. Se hoje há um mercado mundial do futebol, deve-se a Pelé e às viagens do Santos ao redor do planeta, o que explica a quantidade pequena de conquista da Libertadores. As viagens e os torneios davam mais grana e projeção. Os mercados chinês e estadunidense, sonhados pelos outrora péssimos times ingleses e pelos dois gigantes espanhóis, seriam impossíveis sem a atuação de Pelé a partir de 1970. É plenamente razoável concluir que sem Pelé não existiriam os atuais grandes times europeus. As grandes ligas não vivem apenas do mercado nacional, mas sobretudo do mercado internacional.

É possível também concluir tranquilamente que o Brasil de 1958 em diante impôs um tipo de futebol que entraria em crise apenas em 1990, no qual o parreirismo da seleção de 1994 foi a sua expressão. Sem Pelé e os seus companheiros de Santos e seleção o futebol seria bem diferente do praticado hoje. Os sistemas táticos da década de 1960 em diante surgiram em grande medida para tentar impedir Pelé e seus companheiros de jogar. Quase sempre se baseavam pancada, pois não havia cartões amarelo e vermelho.

Foi o que aconteceu na Copa de 1966, fazendo Pelé anunciar em 1967 que não serviria mais a seleção – julgava não possuir sorte nas copas e na seleção, sentimento reproduzido por Messi em 2016. Aliás, sem Pelé, sem Maradona e sem Messi. Sem Romário, sem Ronaldo, sem Gaúcho, sem Zico, sem Reinaldo, sem ninguém. Futebol é escola, não uma fábrica de “dons”.

Como o Brasil era conhecido no mundo antes de Pelé? Carmen Miranda, que nem brasileira foi? A representação que o mundo faz do Brasil passou para o Pelé a partir de 1958 – não é o tal brasileiro que se vê europeu, que preferiria uma Carmen Miranda. A representação nacional e internacional do Brasil é o Pelé. Uma das poucas vezes que a representação nacional e a internacional se misturam. Pelé é uma derrota da política de Estado do embranquecimento. A principal representação do Brasil foi, é e será um negro.

*Leonardo Sacramento é pedagogo no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo. Autor do livro A Universidade mercantil: um estudo sobre a Universidade pública e o capital privado (Appris).

 

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES