Por que tantos ataques a escolas no Brasil?

image_pdf

Por JULIAN RODRIGUES*

Por qual motivo tais tragédias estão se tornando mais frequentes nos últimos anos?

Os números variam um pouco. Mas é fato que em 2022 e 2023 a quantidade de ataques nas escolas brasileiras foi maior do que o registrado nas duas décadas anteriores!

Tem algo muito errado aí. É bom desconfiar de “especialistas” que venham a nos oferecer análises peremptórias – muito menos receitas milagreiras. O ministro da Justiça, Flávio Dino, anunciou que vai instituir um grupo de policiais para monitorar a deep web e ameaças na internet. Boa iniciativa.

Nos acostumamos com as notícias vindas dos EUA – onde esse tipo de desgraça é trivial. Os números são impressionantes. Ano passado aquele país bateu o recorde de tiroteios em escolas (193 casos, contra 62 o ano anterior). Entretanto, apenas os massacres com muitas vítimas e fortes imagens ganham atenção da mídia.

Os Estados Unidos enfrentam uma epidemia de ataques em massa nas escolas. A organização Gun Violence Archive registra mais de 300 crimes desse tipo em 2022. Só este ano houve 131 ataques! Sim, sim: 131! Barbárie.

Lá nos istaitis as armas de fogo são vendidas como se vende um refrigerante. Estão em todos lugares – qualquer criança ou adolescente pode acessar um revólver (ou coisa pior) em casa. Há 20 anos, Michael Moore filmou o já clássico “Bowling for Columbine” (Tiros em Columbine) quando Eric Harris e Dylan Klebold mataram 13 pessoas de forma espetacular numa escola do Colorado (e depois suicidaram-se).

Difícil fugir da tentação de proclama juízos superficiais. O histórico, clássico, paradigmático, estruturante e nunca totalmente equacionado debate natureza x cultura “grita” em um caso assim. O rapaz era doente ou foi adoecido pela cultura de massas estadunidense? As duas coisas, mas qual o peso de cada fator? Pessoalmente, eu tendo a suspender o juízo e apego-me ás minhas convicções filosóficas. Sou discípulo de Carminha (personagem icônica da Adriana Esteves na genial novela Avenida Brasil): “o ser humano é uma coisa que deu errado; deus? Deus fez errado. – errou, essa mania foi querer criar o mundo em seis dias… coisa de homem mesmo, lambão, lambão!”

Esse tipo de crime era quase exclusiva marca dos EUA, né. Mas até na civilizadíssima Suécia, agora em março, um moço de 18 anos matou duas mulheres numa escola de ensino médio.

Desde 2011 foram ao menos 12 ataques em creches e escolas brasileiras. Há algo muito errado. Não dá para fugir do óbvio. É muito evidente o peso do neofascismo, do bolsonarismo, dos discursos de ódio tão panfletados nos últimos anos. Muita misoginia, racismo, homofobia divulgados maciçamente.

Mensagens diretas para o macho hetero, branco de classe média – que andava ressentido pelo avanço da luta feminista, dos pretos, das LGBT – sujeito que foi acalentado, mimado, empoderado (e agora está meio perdido de novo).

Jair Bolsonaro abriu as portas para reorganização de grupos de extrema-direita, neofascistas, nazistas, supremacistas. Deu voz e vez à milicaiada saudosa da ditadura. Cativou todo tipo de fascistinha Brasil afora.

Os algoritmos são reacionários – algo que maioria de nós não tem a menor noção de como se estruturam e para que servem. Difícil entender o funcionamento dessa joça e todas engrenagens maléficas, onipotentes (oniscientes-onipresentes) do Zuck – e as da dupla Larry/Sergey (Google).

Precisamos cuidar dos nossos meninos. Construir novos paradigmas de masculinidade. Garotos podem chorar, ter dúvidas, ter vaidade, experimentar brincar com o coleguinha sem ter medo de ser rotulado como o viadinho da turma. Canta Leoni: ”garotos, como eu, sempre tão espertos, perto de uma mulher (ou de outro garoto, ué), são só garotos”.

O patriarcado, o machismo, a cisheteronormatividade não oprimem só as mulheres, as gays, sapas e trans. São estruturas que “treinam” os homens para exercer um papel opressor, do super-provedor, gostoso, infalível, frio, forte e sensual – acima de tudo imbroxável.

Não estou aqui necessariamente levantando a hipótese de que os assassinos eram enrustidos ou gays/bissexuais –  nem nada disso. Mas com certeza uma cultura avançada, somada a educação sexual libertária, livre, diversa e feminista faria um bem danado a eles. Os nossos moleques com certeza seriam bem menos inseguros – estaríamos criando adolescentes centrados. Muito mais felizes. Canta Leoni: ”garotos, como eu, sempre tão espertos, perto de uma mulher (ou de outro garoto, ué), são só garotos”.

Alguém poderia retrucar: ah, lá vem as militantes viadas querendo lacrar e levar tudo para o tema de gênero e sexualidade! Facílimo responder a tal suposta objeção: existe algum caso em que uma menina pegou uma arma e assassinou um monte de gente? Por que só meninos fazem isso? Já pararam para pensar? Tudo está relacionado à cultura patriarcal, machista, cis-heteronormativa.

A masculinidade tradicional, quase sempre além de autoritária também tóxica, precisa ser redesenhada, redefinida. Não é tarefa simples. Há sempre o fantasma de uma possível gayzice rondando as cabecinhas dos rapazes.

Os massacres são protagonizados por adolescentes de 14-16 anos na maioria das vezes. É uma idade difícil para os meninos, muito hormônio e muita pressão social, muito tesão, muita insegurança na cabecinha. E agora muito vídeo game, muita maluquice na deep web, o ressurgimento de um orgulhoso masculinismo: os red pill, chad e afins.

Mas, afinal, por qual motivo tais tragédias estão se tornando mais frequentes nos últimos anos? Parece-me que essa é a pergunta chave que devemos tentar responder para construir ações efetivas para que nunca mais aconteçam coisas assim no Brasil.

Receita de bolo ninguém tem. Atrevo-me, todavia, a dar alguns palpites. No longo prazo é preciso construir não só o socialismo, mas também um país com diversidade e liberdade (isso é Rosa Luxemburgo, by the way).

De imediato, focar na educação, na cultura, na formação dos meninos, não apenas na emancipação das meninas. Difundindo cada vez mais o feminismo e trazendo os caras para dentro do feminismo – procurando mostrar que eles também são oprimidos em algum grau pelo machismo. Romper com a ideia de que cada garoto, cada homem é um ser do mal, per si. Entender que as estruturas é que são nefastas – as pessoas são apenas uma parte de um contexto geral.

Prevenir novos ataques em escolas passa por não divulgar os crimes na grande mídia. O protocolo deveria ser o mesmo adotado para os casos de suicídio. Talvez seja uma tese controversa. Mas, quanto maior for a visibilidade dada a tais tragédias, muito mais rapazes vulneráveis se animarão a fazer a mesma coisa, acho eu. São os tais 15 minutos de fama, ou os 15 segundos com chuva de likes, nesses tempos de redes sociais viciantes.

A ampliação do acesso às armas de fogo operada por Jair Bolsonaro tem esse efeito colateral. Facilita que os meninos peguem o berro do pai, do tio, do padrasto e se dirijam às suas escolas causando, atirando, gritando, ferindo, matando.

Esse ataque de Blumenau parece ser de outra natureza: o sujeito não é adolescente – tem 25 anos, histórico criminal e já havia tentado assassinar o próprio padrasto.

Por último, queria chamar a atenção para um tema quase sempre ignorado, subestimado, desprezado. Trata-se da questão da saúde mental. O capitalismo neoliberal nos adoece a todos – cada vez mais. E há enorme preconceito envolvendo o assunto. Doença mesmo parece que são só aquelas que têm efeitos no corpo, que afetam nossa saúde física.

A cultura hegemônica não apenas ignora o sofrimento psíquico como discrimina quem assume suas fragilidades. Os números são muito diversos, variam demais – mas há um consenso: milhões de brasileiras e brasileiros sofrem com algum tipo de transtorno mental (ansiedade, estresse, depressão).

Então, vamos dar atenção especial à saúde mental das nossas crianças e adolescentes. Principalmente dos meninos. Pode parecer contra-intuitivo, quase uma heresia – mas eles são bem mais frágeis, agressivos e bobos do que as meninas (elas nunca pegam armas de fogo para sair atirando e matando gente).

A direita, não só a bolsonarista, vai defender que as escolas sejam cada vez mais militarizadas – repletas de policiais fardados. É o conhecido fetiche por machos de uniforme – a propósito.

Quem disser que tem solução fácil está mentindo. Enfrentar e derrotar a extrema-direita é um pressuposto. Levantar as bandeiras do feminismo, dos direitos humanos, das LGBTI, das pretas e pretos, dos pobres, dos trabalhadores.

Disputar corações e mentes, focar nessa juventude assediada cotidianamente pelos fascismos que nos sufocam. Precisamos de escolas cada vez mais democráticas, mais progressistas, mais feministas, mais antirracistas, mais radicalmente transformadoras.

 E também de uma regulação forte dos meios de comunicação, sobretudo da internet. Mas esse é outro debate – urgentíssimo, por sinal.

*Julian Rodrigues, jornalista e professor, é militante do PT e ativista do movimento LGBTI e de Direitos Humanos.

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES