Alemanha – novos atores em cena

Imagem: Francesco Ungaro
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Por EDUARDO J. VIOR*

Uma torrente que pode desconstruir o Estado liberal e ameaçar a dominação norte-americana sobre a Alemanha

Ao expulsar a histórica líder da corrente marxista do partido A Esquerda (Die Linke), a direção partidária fez-lhe antes um favor que um dano. O grande prejuízo, ao contrário, foi infligido sobre si mesmo e, paradoxalmente, a seu equivalente no outro espectro do sistema político alemão: a Alternativa para Alemanha (Alternative für Deutschland – AfD). Rompendo todos os diques do esclerosado sistema político germânico, Sahra Wagenknecht tem um discurso pacifista, socialista e popular, que lhe granjeou a simpatia simultânea de eleitores de esquerda e conservadores. Se agora conseguir construir uma força transversal, desatará uma torrente que pode desconstruir o Estado liberal e ameaçar a dominação norte-americana sobre a Alemanha.

O partido A Esquerda (Die Linke) pediu no sábado, dia 10 de junho, à sua antiga líder, Sahra Wagenknecht, que renunciasse ao seu mandato no Bundestag (a câmara baixa do parlamento alemão). Sahra Wagenknecht e outros esquerdistas não mencionados por seu nome deveriam devolver seus mandatos, disse o comunicado da direção nacional do partido. Mas conforme a Constituição alemã, Sahra Wagenknecht não está obrigada a entregar o cargo, ainda que permaneça desvinculada do partido.

A dirigente de 54 anos, filha de um iraniano (daí “Sahra”) e uma alemã, começou militando na Juventude Socialista, da Alemanha Oriental, para, depois da reunificação, integrar-se ao Partido da Democracia Socialista (PDS), sucessor do antigo Partido Socialista Unificado (SED, por sua sigla em alemão), da já dissolvida República Democrática Alemã (DDR). Na nova estrutura, presidiu por vinte anos a Plataforma Comunista, uma corrente interna ortodoxamente marxista. Em distintos períodos, fez parte também da direção nacional do partido e, desde 2009, é deputada federal. Durante sua carreira, teve muitos choques com a maioria dos dirigentes do partido, a quem considera “por demais acomodados” à democracia liberal.

Não obstante, foi depois das eleições gerais de 2021 para o parlamento, em que A Esquerda perdeu metade de seus votos, que a convivência se tornou quase impossível. Enquanto a corrente majoritária, acompanhando a deriva identitária da esquerda europeia, segue uma agenda centrada na política de gênero, no ecologismo, no europeísmo, nas fronteiras abertas sob a pauta do multiculturalismo guetificador, bom como no discurso de afirmação racial, a minoria de esquerda, por seu turno, acentuou sua luta pelos direitos sociais, pelo pacifismo, pela boa vizinhança com a Rússia e pela integração dos imigrantes à sociedade.

Após a eclosão da guerra na Ucrânia as diferenças tornaram-se ainda mais agudas, porque a maioria partidária seguiu o caminho antirrusso da maior parte do sistema político europeu, enquanto os setores mais à esquerda manifestaram-se em favor da busca imediata de negociações com a Rússia, ao mesmo tempo que denunciaram os Estados Unidos como o efetivo instigador da conflagração na Europa Oriental.

Ainda que Sahra Wagenknecht sempre tenha se chocado com a linha dominante do partido, sua direção, até pouco tempo atrás, se conteve, porque a líder é muito popular. No entanto, a confluência, de fato, de Wagenknecht com algumas posições defendidas pela Alternativa para a Alemanha (AfD), francamente de direita, foi o que extravasou o copo. Em março passado a dirigente lançou, junto com a histórica feminista Alice Schwarzer, um “Manifesto pela Paz”, que recolheu numerosas assinaturas de personalidades (inclusive de líderes da AfD) e convocou a um ato pacifista massivo em Berlim. A partir de então, sucederam-se declarações suas e de dirigentes da Alternativa que concordavam em pedir negociações com a Rússia e condenar a política econômica e social da atual coalizão de governo.

Já em março passado, uma pesquisa da revista Der Spiegel indicou que os eleitores conservadores, sobretudo os partidários da AfD, apoiariam um possível partido que Sahra Wagenknecht viesse a fundar. No geral, 25% da população poderia “definitivamente” ou “muito provavelmente” se reconhecer votando em um partido liderado por Wagenknecht. Se a líder de esquerda entra no ringue com uma formação própria, ela poderia se tornar uma perigosa concorrente para a AfD, porque goza de grande popularidade entre os eleitores de direita e, com a combinação de sua crítica à política de imigração não administrada e sua consciência de vida comum, toca-lhes em uma corda sensível.

Visto em perspectiva, esse parece ser o único desdobramento que poderia frear o crescimento da direita nacionalista na Alemanha. Uma sondagem de YouGov, publicada na sexta, 16 de junho, informou que 20% dos eleitores alemães daria seu voto à AfD, convertendo-a no segundo maior partido, atrás da centro-direitista CDU (28%) e à frente do SPD do chanceler Olaf Scholz (19%). Não cabe dúvida de que se trata de um terremoto político.

Após tão apenas um ano e meio no poder, a atual coalizão “semáforo” (por conta das cores que identificam os partidos que a compõem), estabelecida entre SPD, Verdes (15% de intenção de voto) e Democratas Livres, o FDP (com 7%), já não goza mais de sustentação para governar. Nas eleições gerais de 2021 o SPD tinha obtido 25,7% dos votos; o FDP, 11,5%; e o Partido Verde, 14,8%. Sua incapacidade para resolver a crise econômica e baixar a inflação, sua insistência numa transição ecológica impopular, sua imperícia para administrar o aluvião de solicitantes de asilo que ingressa no país e sua subserviência à lógica da guerra norte-americana contra a Rússia lhe retiraram toda a legitimidade. Essa queda abrupta da coalizão deixa um vazio que a direitista AfD supunha poder ocupar.

20% já é uma marca significativa num sistema político fragmentado como o alemão, e há inclusive observadores políticos que situam o potencial limite da AfD em torno a 30% de votos. Até agora, uma coalizão com a AfD foi um tabu para os dois partidos majoritários, a CDU e o SPD. Na situação atual, entretanto, a CDU se vê diante de uma disjuntiva: voltar à paralisante “grande coalizão” com o SPD, da época de Angela Merkel, ou formar governo com a direitista AfD.

A questão é que a AfD está no auge, e, uma vez superada a barreira dos 20%, vai ser mais difícil excluí-la de uma coalizão de governo. A recessão na Alemanha se insinua duradoura e vai favorecer as alternativas antissistema. Também o crescimento descontrolado da imigração contribui para o crescimento da AfD. Segundo cifras oficiais, o número de solicitações de asilo na Alemanha aumentou 80% entre janeiro e março de 2023, em comparação com o mesmo período do ano anterior.

Num contexto de crise e guerra, esse aumento se deve, sem dúvida, à posição central do país, mas também à solidez da sua estrutura de acolhimento. No entanto, como destacou Sahra Wagenknecht em uma entrevista, o problema não reside tanto na quantidade de refugiados que o país aceite, mas sim na falta de políticas de integração voltadas para aprimorar a convivência entre residentes e recém-chegados.

Ademais, o SPD, os Verdes e os liberais gastaram uma fortuna para apoiar a Ucrânia. A AfD, que é eurocética e advoga por melhorar as relações com a Rússia, está consequentemente tirando proveito do fato de que cerca de um terço dos alemães não está de acordo com a guerra contra a Rússia. Por exemplo, só 28% de entrevistados na última sondagem apoia a entrega de aviões de combate alemães à Ucrânia, e 55% diz que se deveria intensificar a busca por negociações para o fim da guerra. Apenas a AfD e a esquerda socialista de Sahra Wagenknecht apoiam essas reivindicações.

Do mesmo modo, cresce a rejeição à União Europeia (UE). Dezoito por cento dos entrevistados está totalmente em desacordo com a noção de uma identidade europeia. Ao mesmo tempo, o número de eurofóbicos e eurocéticos está aumentando de forma igual, respectivamente 41% e 56%. A maioria da população (também em outros países da Europa) resiste em delegar mais capacidade soberana à UE.

Além de tudo isso, no ano passado os Verdes acabaram com a energia nuclear e impulsionaram a ideia de uma transição para energias renováveis a uma velocidade vertiginosa, a ponto de gerar uma reação violenta entre os eleitores. Os custos da transição energética são insustentáveis para a baixa classe média e as famílias mais pobres. Direita e esquerda capitalizam, também, esse descontentamento.

A curto prazo, avizinha-se um estancamento político assentado sobre a incapacidade dos quatro partidos até o momento mais importantes (CDU/CSU, SPD, FDP e Verdes), de encontrar soluções para a crise, bem como por sua submissão à política norte-americana. Por seu turno, após a expulsão da esquerda socialista, o partido A Esquerda pode ficar abaixo de 5% dos votos e perder status parlamentar. Reduziram-se sensivelmente as possibilidades de que os partidos estabelecidos formem, entre eles, coalizões de governo com suficiente maioria. A AfD aspira, então, a ser indispensável na formação de um governo federal em algum momento, mas agora deve temer a concorrência da esquerda autêntica.

Washington aproveitou o pretexto da guerra na Ucrânia, para, mediante sanções contra a Rússia, cortar os vínculos de Berlim com Moscou e Pequim. O auge do partido direitista sugere agora a possibilidade de que a República Federal Alemã possa recuperar sua autonomia. Não obstante, seus componentes xenófobos e racistas suscitam a reação das classes médias liberais e põem a todos os seus vizinhos em alerta, ainda mais quando o crescimento da direita na Alemanha pode dar alento à candidatura de Donald Trump nos Estados Unidos. Uma alternativa de esquerda reduziria tais receios, mas suscitaria a reação norte-americana.

A Alemanha não parece ter alternativas. Só o reatamento das relações com a Rússia e a China poderia lhe dar fôlego. Por isso, o chanceler e os presidentes das maiores corporações industriais do país se reuniram na última terça-feira em Berlim com o primeiro ministro chinês, Li Qiang. Reafirmaram ali a necessidade de reavivar os vínculos em ambas as direções entre as duas potências, mas isso já poderia vir tarde.

A deterioração das condições de vida e o pânico crescente numa população com sentimento de insegurança farão seu trabalho. Não chega a ser previsível que, no estagnado mapa político atual, uma nova força socialista venha a confluir com o nacionalismo democrático (que também faz parte da AfD). Mas um novo partido de esquerda, popular e radicalmente democrático, poderia movimentar o tabuleiro. O desmoronamento crescente do sistema político alemão vai exigir a tomada de decisões antes que o ano termine. Ou o governo se move ou a sociedade o moverá. Enquanto isso, os novos atores vão entrando em cena.

*Eduardo J. Vior, sociólogo e jornalista, é professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Buenos Aires (UBA).

Tradução: Ricardo Cavalcanti-Schiel.

Publicado originalmente na Agencia Telam.

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