O Papa na obra de Machado de Assis – parte 2

Wilhelmina Barns-Graham, Jogos de Laranja e Limão, 1999
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Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES*

Machado desnuda a religião: entre eucaristias satânicas e papas diplomáticos, o poder clerical se revela — não como salvação, mas como mais um jogo de interesses na comédia humana

Em 26 de abril de 1896, na série final A Semana, Machado de Assis solta esta: “Que me importa já saber se o príncipe da Bulgária comungou ou não, esta semana, tendo-lhe o papa negado licença? Provavelmente não comungará mais, tudo por haver consentido que o filho fosse batizado na religião ortodoxa. Quantos outros pais terão deixado batizar os filhos em religiões alheias, sem perder por isso o direito de comungar; basta-lhes entrar na igreja próxima e falar ao vigário. Não são príncipes, não governam, não correm o perigo das alturas”.[i]

O trecho parece escrito para as discussões de conservadores católicos nas redes sociais. Uma das mais quentes é sempre quem pode e quem não pode comungar. Como eles entendem a eucaristia não apenas como uma liturgia que aproxima a comunidade, mas como uma espécie de passe de mágica, o problema se coloca: quem pode e quem não pode tomar parte nesse ritual mágico que nos aproxima da salvação de nossas almas danadas?

Isso para não falar num vídeo que vi outro dia de um padre ou um bispo americano falando que passou a dar a eucaristia na boca dos fiéis porque ele não tinha como saber se os que pegam pela mão não vão pegar a hóstia consagrada e performar com ela rituais satânicos. Vejam bem: o mundo vai muito pior do que imaginamos.

Mas Machado de Assis coloca o problema nos seus termos corretos: não sendo você um príncipe, se alguém lhe negar a comunhão, e ela for importante para sua vida, basta ir na paróquia ao lado, onde o padre não te conhece e simplesmente dá a eucaristia para quem lhe aparece na frente. O mundo real continua funcionando de acordo com sua lógica própria de necessidade e as discussões simplesmente desaparecem no encaminhar da necessidade, que é quem realmente dita o modo de funcionamento da realidade.

A crônica, no seu conjunto, é um elogio a Shakespeare, autor da predileção evidente de Machado de Assis. A sua pergunta inicial (que me importa?) é feita na comparação com a notícia do fim das festas do Bardo na Inglaterra. E ele vai listando todos os conflitos então em curso, e muito provavelmente matéria dos jornais daquela semana, para terminar dizendo: “Um dia, quando já não houver império britânico nem república norte-americana, haverá Shakespeare; quando se não falar inglês, falar-se-á Shakespeare. Que valerão então todas as atuais discórdias? O mesmo que as dos gregos, que deixaram Homero e os trágicos”.[ii]

É uma linda manifestação de admiração pelo Bardo, mas, mais do que isso, e visto no contexto de nossas disputas religiosas que, como ele havia dito um parágrafo mais acima, “come gente, sangue e dinheiro” é uma espécie de constatação (cética, dirão alguns; materialista, diria eu) de que o curso dos acontecimentos vai se seguindo e as lutas se extinguindo; nossas mediocridades, que falam tão alto, passarão com o tempo, sobrando apenas o que realmente importa: seu registro afetivo para o repertório de emoções meditadas que é a tradição literária.

Nossas disputas sobre quem deve ou não tomar a eucaristia são, a rigor, quando vistas do devido distanciamento histórico, pífias. A realidade sempre encontra sua solução e o padre da paróquia ao lado nunca sabe de verdade quem sou eu.

Leão XIII, o papa dos direitos dos trabalhadores. Fonte: Wikimedia Commons.

O papa que nega essa licença é já Leão XIII, muito diferente daquele Pio IX seu antecessor. Em 26 de fevereiro de 1893 Machado de Assis já havia feito uma referência a ele, numa crônica em que comenta a perfeição na terra e o desnecessário das próprias organizações sociais. Tudo piada, como a referência a Voltaire no primeiro parágrafo já anuncia.

Mas, lá pelas tantas, ele nos diz da perfeição maior: “Mas a perfeição maior, a perfeição máxima, é a de que nos deu notícia esta semana o cabo submarino. O grão-turco, por ocasião do jubileu do papa, escreveu-lhe uma carta autografada de felicitações acompanhada de presentes de alta valia. Não se pode dizer que sejam cortesias temporais. O papa já não governa, como o sultão da Turquia. A fineza é o chefe espiritual, tão espiritual como o jubileu. Já cismáticos e heréticos tinham feito a mesma cousa; faltava o grão turco, e já não falta. Alá cumprimentou o Senhor, Maomé a Cristo. Tudo o que era contraste, fez-se harmonia, o oposto ajustou-se a oposto. Ondas e ondas de sangue custou o conflito de dous livros. A cruz e o crescente levaram atrás de si milhares e milhares de homens. Houve cóleras grandes. Houve também grandes e pequeno poetas que cantaram os feitos e os sentimentos evangélicos, ora pela nota marcial, ora pela nota desdenhosa”.[iii]

Cita, então, um trecho de Victor Hugo, das Orientales (de onde ele também tira a citação da Sara banhista que comentei no texto que publiquei, no site A Terra é Redonda, sobre Tiradentes, donde pretendo concluir que essa deveria ser ou uma leitura constante ou uma que o marcou bastante em sua juventude). Na historieta de Victor Hugo uma cristã nega se deitar com o sultão porque, segundo o Machado, “danado é o prazer que uma mulher pode achar nos braços de um incrédulo”.

E emenda a narrativa: “Tempos de Granada! já não é preciso que os sultões se cristianizem. Agora é a Sublime Porta, com a sua chancelaria, as suas circulares diplomáticas, os seus gestos ocidentais, que desaprendeu o crê ou morre para celebrar a festa de um grande incrédulo do Corão. Onde vão as guerras de outrora? Onde param os alfanjes tintos de sangue cristão? Naturalmente estão com as espadas tintas de sangue muçulmano. Vivam os vivos! Eu, se pudesse dar um conselho em tais casos, propunha a emenda do breviário. Glória a Deus nas alturas, deve ficar; mas para que acrescentar: e na terra paz aos homens? A paz aí está, completa, universal, perene”.[iv]

O tom é abertamente irônico, dizendo algo que, por óbvio, quer dizer o contrário. O comentário inicial sobre Voltaire é claro como o dia: a bondade, como as moedas de ouro com as quais os meninos brincam no Eldorado, é de fundo falso. Quando se contrapõe essa manifestação de pacifismo realizado no mundo no âmbito religioso ao comentário da crônica anterior, de três anos depois, vê-se claramente que Machado de Assis concebe a religiosidade institucional, o poder institucional da religião, como fonte de conflito. “Come gente, sangue e dinheiro”, havia dito.

Estaria ele, neste momento, fazendo troça das pretensões pacifistas de Leão XIII? Sabe-se que este foi um papa que tentou estabelecer boas relações com o mundo e, em alguma medida, pode-se dizer que ele foi o primeiro papa progressista dos últimos séculos. Estaria o velho Machado de Assis fazendo troça dessas pretensões? Tendo a responder positivamente a estas perguntas, já que, no geral, religião institucional é motivo de conflito, porque ela representa um jogar no xadrez do poder. Isso quando não é motivo de estupidez pura e simples, como já vemos todos os dias.

Uma digressão

Machado de Assis se refere ao jubileu do papa, a quem teria enviado o sultão da Turquia um presente em sinal de respeito. Fiquei matutando que jubileu teria sido este, já que em 1893 não deveria haver um dos jubileus da igreja, que acontecem de 25 em 25 anos. A pesquisa foi rápida: tratava-se do Jubileu de sua ordenação episcopal de Leão XIII. O Google é cheio das surpresas e eu achei, sem procurar muito, dois jornais do século XIX que haviam anunciado festividades referentes a esta mesma comemoração que Machado de Assis está comentando. Bom, um deles, pelo menos, é interessante:

Disponível em: The Monitor 4 March 1893 — The Catholic News Archive.

O trecho, além de mostrar que a comemoração havia sido geral, lembra bem que os presentes, entre os quais o oferecido pelo sultão turco a que se refere Machado, eram vultosos. Mesmo os sul-americanos enviaram uma quantidade, 250 mil francos, como a notícia informa. Isso coloca em perspectiva o trecho de Machado que, muito provavelmente, estava ciente do fato de que os presentes não eram simbólicos, mas constituem uma soma significativa.

Ele nos diz que eles eram de “alta valia”, mas emenda dizendo, como que diminuindo o peso propriamente político dos presentes do papa, que não se tratavam de “cortesias temporais”, uma vez que o papa já estava destituído de seu poder terreno, perdido por Pio IX. A continuação do trecho do The Monitor[v], de onde tiro a notícia na edição de 4 de março de 1893, mostra que o poder do papa ainda não era assim tão espiritual, ou, pelo menos, que havia um partido conservador, ultramontano, disposto a dizer abertamente sobre a volta de seus poderes práticos aqui pela terra:

Disponível em: The Monitor 4 March 1893 — The Catholic News Archive.

O clube Católico de Nova York, pelo menos, estava preocupado com a questão, a ponto de fazer uma resolução pedindo pela “restauração dos poderes temporais de Sua Santidade”. Longe de ser uma pequena congregação, a principal figura a falar na noite de comemoração ao jubileu do papa foi o Arcebispo da cidade. Já em Baltimore, o Cardeal Gibbons celebrou uma missa para se unir ao Santo Padre em Roma na comemoração de seu jubileu. O dito cardeal, nos informa a última frase do jornal, fez um “eloquente sermão, lidando, principalmente, com a supremacia do Papa”.

Esse achado aleatório é instrutivo. Ele mostra claramente que os dados da história ainda estavam sendo jogados e que, quando vemos de longe e imaginamos que o papa perdeu seus poderes temporais e o mundo continuou como sempre, estamos errados: houve resistência à modernização da instituição que a deu a forma que tem hoje, um poder temporal extremamente limitado. Aqui se pode sentir com clareza o solo histórico da Quanta Cura de Pior IX.

Embora possa parecer, para nós, que já sabemos o encaminhamento da história, um tiro no pé que acabou afastando a Igreja das instituições modernas, ela dizia para um público específico que, ao mesmo tempo, pretendia criar e instrumentalizar. Isso, por óbvio, não altera o juízo certeiro do jovem Machado de Assis: de uma forma ou de outra, seus valores eram irrealizáveis diante das organizações sociais modernas que já eram fatos ao tempo da encíclica. Não altera o juízo, mas ajuda a entender o que de fato estava acontecendo.

No outro jornal que encontrei nessa rápida pesquisa, The Argus,[vi] desse vez de Melbourne, a questão da restauração dos poderes temporais do papa reaparece, mostrando que se tratava de uma questão geral no mundo católico, ainda inconformado com a nova situação:

Disponível em: 20 Feb 1893 – THE EPISCOPAL JUBILEE OF POPE LEO XIII. – Trove . Acesso em 25 de abril de 2025.

De início, propunha-se, mais uma vez, a volta dos poderes temporais indispensáveis para que o papa pudesse exercer adequadamente sua função. Depois, fala-se da infidelidade, um dos principais inimigos de tudo que é santo. E se emenda: “Esse inimigo foi valentemente confrontado pelo Pontífice, que com uma carta pôde silenciar seus opositores”. Mais uma vez, o contexto da troça machadiana sobre a crença na possibilidade de uma carta do papa seja capaz de derrotar seus inimigos se concretiza diante de nós. E para que se veja como o conservadorismo contemporâneo é mais velho que a velhice, veja-se o parágrafo seguinte, em que se condena as leis do divórcio como corruptoras da civilização e desestabilizadora da sociedade e da família:

Disponível em: 20 Feb 1893 – THE EPISCOPAL JUBILEE OF POPE LEO XIII. – Trove.

Tudo isso nos coloca, de novo, diante do caráter político das crônicas de Machado de Assis quando ironiza o poder puramente espiritual do papa. Assim como a perfeição humana não estava instituída na terra, também o poder papal não era simplesmente da ordem do espírito. Ele era terreno e, se as circunstâncias permitissem, mais terrenos do que então eram. A religião não havia deixado de ser motivo de desavenças violentas e o “na terra paz aos homens”, com certeza, deveria seguir ao “Glória a Deus nas alturas”.

A Igreja é um partido e Machado de Assis se coloca contra ela no mais das vezes. Agora não de forma tão direta quanto nas primeiras crônicas, em que se afirmava liberal e colocava o papado do outro lado, mas com mais perspicácia ainda, porque nota no discurso de pacificação o outro lado do interesse e do jogo de poder.

Mais digressão – Francisco outra vez

A digressão me leva de volta a Francisco porque, nesse mesmo número do The Monitor, bem do lado da coluna que citei acima, há um artigo intitulado “A visão católica sobre o trabalho: ela considera os trabalhadores como sua joia mais preciosa”. O trecho noticia uma aula, dada pelo Rev. Halpin, SJ, sobre os trabalhadores tendo como guia a encíclica de Leão XIII, Rerum Novarum, considerada uma espécie de fundadora da moderna doutrina social da Igreja.

Dali em diante, quase todos os papas escreverão a sua própria encíclica pessoal sobre essas questões, retomando os princípios estabelecidos pelo vetusto Leão de 1891 e expandindo seu escopo. João XXIII lança a sua Mater et magistra e, já bem no final de sua vida, e no meio da iminência de conflitos armados que transformariam a guerra fria em quente, lança o Pacem in terris. Mais recentemente, o próprio Francisco fez um acréscimo importante ao incorporar de forma mais consistente o debate ambiental com a Laudato Si, para não falar em seu belo apelo no Fratelli Tutti.

O desafio da Igreja precisa ser sempre dar uma resposta aos problemas do presente sem se confundir com as tendências propriamente modernas que, ao cabo, determinam o debate sobre as coisas novas a que se referia Leão XIII. Essa necessidade, ideológica por excelência, está baseada no papel conservador das alianças da Igreja no interior do mundo moderno.

Por estar intrinsecamente do lado da reação, ela precisa encontrar uma forma de atender às demandas dos trabalhadores, por exemplo, sem, com isso, negar o direito natural (divino?) à propriedade privada, mantido em todos esses documentos. Ela apela para princípios evangélicos considerados universais e, a bem da verdade, está numa posição confortável, uma vez que, desde o início, nunca se deu muito bem do ponto de vista ideológico com o capitalismo, embora com ele estivesse alinhado materialmente.

Vide Max Weber relembrado pelo Michel Löwy no seu texto sobre a morte do papa, postado no site A Terra é Redonda. É muito difícil enquadrar seus ensinamentos sociais, no pé em que estão hoje, nas categorias de esquerda e direita. Vide a Declaração Dignitas Infinitas, do Dicastério para a Doutrina da Fé. Em nome da defesa da dignidade humana (que Francisco expandiria para o mundo natural), combate-se a pobreza, os ataques aos imigrantes, mas também o aborto, a mudança de sexo, a teoria de gênero e a eutanásia. Eles são uma espécie de espectro político próprio, baseado, como nos lembra já a reportagem do século XIX a que me referi, na ideia de dignidade:

Disponível em: The Monitor 4 March 1893 — The Catholic News Archive.

Lembremo-nos todos que Karl Marx era um economista político. A Igreja pretende, então, negar a teoria que considera o trabalho como uma mercadoria que pode ser vendida e comprada como qualquer outra. A pergunta que fica é a seguinte: é a teoria que assim considera o trabalho ou a teoria simplesmente explica com acuidade o modo de funcionamento da realidade do trabalho no mundo capitalista? Não seria, ao contrário, a afirmação de uma dignidade infinita o erro teórico (embora possa ser acerto político e moral)?

O trecho revela uma confusão de fundo que está presente em todo discurso religioso e que o Machado de Assis do conto Ex cathedra e do comentário genial sobre o que farão os bispos com a encíclica de Pio IX já nos alertava: afirmações de princípio não explicam o mundo, que tem um funcionamento que ultrapassa nossos desejos sobre ele. Os bispos simplesmente precisam esquecer a carta do papa conservador, porque toda a estrutura do Estado está baseada no que o papa nega.

A realidade faz valer sua precedência no fim do dia e os capitalistas católicos continuam sendo capitalistas, apesar das admoestações. Podemos afirmar o quanto quisermos a dignidade dos homens, porque, se não tiverem dignidade efetiva, nossa afirmação não os torna dignos. Pelo contrário, costuma funcionar como recurso de fumaça ideológica que tira do pensamento a realidade como centro.

O parêntesis, no entanto, é tudo: apesar dos equívocos aqui e acolá, o que nos diz Rev. Halpin não é, ao fim e ao cabo, o sonho da emancipação humana? O direito ao desenvolvimento de suas capacidades intelectuais e de sua liberdade espiritual? Pode até ser, mas não seria parte desse direito às capacidades intelectuais e liberdade espiritual o processo de esclarecimento que, em última instância, precisa nos levar a colocar em questão a própria noção de uma dignidade inerente ao homem? Não seria parte desse desenvolvimento a percepção de que não existe “alma imortal”? Mais importante: não seria parte essencial desse desenvolvimento a percepção de que os nexos materiais da realidade se sobrepõem aos princípios teleológicos da ação humana no mundo? Imaginar a emancipação em nome da dignidade não acaba por negar a própria emancipação?

No Dignitas Infinitas, o Dicastério para a Doutrina da Fé (que faz as vezes de Santa Inquisição quando necessário) encontra uma solução bonita: existe a dignidade ontológica, que não se apaga mesmo nas condições mais indignas, porque, afinal, fomos todos feitos imagem e semelhança de Deus. Existem também as outras dignidades, que podem ser negadas pelas circunstâncias e o trabalho da Igreja seria, portanto, fazer valer a dignidade nessas outras instâncias em que ela pode facilmente desaparecer e se tornar indignidade. O mais indigno dos homens ainda é portador da dignidade ontológica.

Aqui se pode ver a diferença entre essa noção e a de emancipação do gênero humano que Karl Marx elabora lá nos seus Manuscritos de Paris: a emancipação é uma conquista dos homens e, portanto, é uma realidade concreta do mundo, resultado da história humana; a dignidade é uma dádiva de Deus que devemos respeitar e preservar, fazendo com que ela não seja conspurcada pelas circunstâncias das ações humanas. A libertação do gênero humano, que passa a se realizar em cada sujeito singular na nova sociedade que ele vê logo ali na frente, é o resultado do processo lamacento de nossa indignidade e não um deus ex machina, para manter o latim. É pelo chafurdar na sujeira de indignidade da história que seremos finalmente dignos.

Mas como isso é muito difícil de explicar, reduzir os argumentos à dignidade é sempre coisa politicamente proveitosa. A Laudato Si é uma vitória na luta contra o cataclismo ambiental que se avizinha do planeta e, mesmo dentro do campo do magistério ambiental dos papas, ela representa uma novidade pela tendência a analisar os problemas de forma sistêmica e relacionar a exploração ambiental com a exploração do trabalho e a pobreza.

Mas, quando se debruça na causa última de todos esses problemas, Francisco encontra o que? O antropocentrismo moderno, a globalização do paradigma tecnocrático e, como resposta, propõe uma outra interpretação da teologia do Gênesis para afastar do mundo cristão uma teologia do domínio. Muito bonito, mas, convenhamos, como explicação sólida não para em pé. Mas a astúcia da realidade é esta: não importa se sua explicação está correta ou não, ele apela para um âmbito moral (que de fato existe na realidade) e procura, nesse apelo, dar um encaminhamento mais proveitoso aos debates civilizatórios que enfrentamos.

A questão, para mim, é saber até que ponto a estrutura mesma de seu pensamento, baseada na estrutura da instituição da qual ele é o monarca absoluto, não pode representar um empecilho para que as coisas se encaminhem de forma satisfatória. Ou seja: até que ponto a existência de uma doutrina social da Igreja não é uma pedra no sapato do desenvolvimento de movimentos sociais e políticos que tenham uma visão teórica propriamente moderna dos problemas?

Por outro lado, sem o caráter profético de líderes religiosos parece que os ânimos políticos do povo não se movimentam, o que nos coloca sempre entre a cruz e a espada. O próprio Marx tem muito de profético. Fica a questão, que nos leva, mais uma vez, ao velho Machado: Igreja é partido. Mas é partido de si mesma, lembremo-nos todos, pelo menos quando se trata de pensá-la como poder.

*Filipe de Freitas Gonçalves é doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Para ler o primeiro artigo da série, clique em https://aterraeredonda.com.br/o-papa-na-obra-de-machado-de-assis/

Notas


[i]Machado de Assis, A Semana, 26 de abril de 1896. In: OCMA, v. 4, p. 1188.

[ii]Machado de Assis, A Semana, 26 de abril de 1896. In: OCMA, v. 4, p. 1189.

[iii]Machado de Assis, A Semana, 26 de fevereiro de 1893. In: OCMA, v. 4, p. 899.

[iv]Machado de Assis, A Semana, 26 de fevereiro de 1893. In: OCMA, v. 4, p. 900.

[v]Segundo informações do The Catholic News Archive, de onde tiro os prints que ilustram o artigo, foi o primeiro jornal da diocese de São Francisco nos Estados Unidos. Foi publicado de 1858 até 1984. Ver: The Monitor — Browse by title — The Catholic News Archive.

[vi]Segundo informações do Trove, era um jornal conservador que teve ampla circulação na Austrália durante o período de sua existência, que foi de 1846 até 1957. Ver: The Argus (Melbourne, Vic: 1848-1957) – Trove.


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