O governo Lula e sua esfinge

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Por LISZT VIEIRA*

A esfinge de Lula não pergunta enigmas, mas exige respostas: ou o governo rompe com a política de conciliação que o enfraquece, ou será devorado pela história. O tempo do “bom moço” acabou – só um projeto claro e corajoso salvará seu legado das urnas famintas por mudança

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades
(Camões).

1.

Em derrota para o governo, o Congresso derrubou o decreto do novo IOF. A visão geral que passa para a população é a de um Governo fraco, que dá tudo e não recebe nada. O Governo liberou mais de R$ 1 bilhão em emendas parlamentares antes da votação do IOF no Congresso. Essa quantia, porém, não foi suficiente para impedir a derrubada do decreto presidencial.

Nos dias que antecederam a votação do decreto, foram acrescentados no sistema mais de R$ 1 bilhão entre as verbas empenhadas, totalizando R$ 1,9 bilhão em emendas liberadas neste ano (O Globo, 27/6/2025). Resta ao governo entrar com ação no STF para questionar a derrubada do IOF pelo Congresso, alegando que o Legislativo violou a separação de poderes.

A política de fazer alianças por cima com a direita para barrar a extrema direita funcionou na última eleição, mas não funciona mais. A direita, com o apoio da mídia, já está fazendo oposição a Lula e os ministros do governo, indicados pelos partidos de direita, já estão abertamente comprometidos com a oposição a Lula.

O poder tem se deslocado do Executivo para o Legislativo que hoje exerce poder sem assumir responsabilidades. O orçamento secreto é um exemplo gritante. O presidencialismo de coalizão foi substituído por um semiparlamentarismo. Isso teve início com o impeachment da presidente Dilma Rousseff e se fortaleceu principalmente no governo de Jair Bolsonaro. Mas, por trás do Legislativo, quem de fato determina as decisões no Congresso é principalmente o mercado financeiro e o agronegócio.

Com o enfraquecimento das organizações da sociedade civil, a começar pelos sindicatos, o capital financeiro, e seus aliados, reina, soberano, controlando toda a mídia e as decisões do Congresso que fez opção preferencial pelos ricos, jogando a conta do ajuste fiscal nas costas dos pobres. O Legislativo foi capturado pelo clientelismo, abandonou o interesse público e virou uma espécie de sindicato dos interesses privados.

O governo tem que encontrar um novo paradigma, provavelmente apelando à mobilização popular. Ou Lula “vira a mesa”, “dá um cavalo de pau”, e denuncia esse Congresso que vota contra o povo, denuncia o Banco Central que mantém elevada a taxa de juros para garantir o alto lucro dos Bancos e dos investidores no mercado financeiro, explicando à população que combater a inflação é pretexto, ou, se continuar assim como está, o risco de perder a próxima eleição é grande.

2.

Um governo sem rumo, sem projeto político, perde sua personalidade e não desperta esperança na população. Isso tem sido dito a quatro ventos por muita gente, inclusive pelo signatário dessas linhas. Mas, além das propostas substantivas na política, uma das mudanças urgentes que se faz necessária é a comunicação com o eleitorado.

O governo parece desconhecer que a política hoje se faz principalmente por comunicação digital, ficando em segundo plano as formas tradicionais de contato com o eleitorado.

A tecnologia mudou a forma de fazer política. Os palanques e comícios, onde Lula brilhava, foram substituídos pelas redes sociais, onde a oposição de direita predomina e tem mostrado inegável superioridade em vários embates como, por exemplo, a crise do Pix e o escândalo do INSS.

É incrível que o governo Lula, com o poder do Estado na mão, não consiga se equiparar à extrema direita na comunicação digital. Tem algo de muito errado na comunicação do governo que vive ainda no mundo analógico. É claro que o problema não se resume a comunicação. Muitos ministros, inclusive os da área social, não aparecem porque não têm o que dizer e o que mostrar. Com poucas e honrosas exceções, os ministros da área social ainda não disseram ao que vieram.

Na última pesquisa do DataFolha, divulgada em 14/6 último, Lula vence qualquer candidato no primeiro turno. Mas, no segundo turno, a diferença de Lula para Tarcísio de Freitas, atual Governador de São Paulo e provável candidato da oposição, é de apenas 1%. Lula teria 43% e Tarcísio de Freitas 42%. Convenhamos, é muito pouco. E a taxa de reprovação é muito preocupante. São 40% de reprovação, a maior de todos os seus mandatos. No final do segundo mandato, em dezembro de 2010, Lula tinha 83% de aprovação e 4% de rejeição!

Essa alta taxa de reprovação precisa ser melhor compreendida e explicada. Os dados econômicos do governo Lula são muito bons. PIB e Renda crescendo, Desemprego caindo. Mas o impacto eleitoral parece ser pequeno. Ou esses benefícios econômicos não chegaram a boa parte da população ou, se chegaram, eles não produzem efeitos e não influenciam a decisão de voto. Os bons resultados na economia não estão ajudando a popularidade do presidente Lula.

Como dizia a saudosa economista Maria da Conceição Tavares, o povo não come PIB.

3.

Os dados econômicos positivos por si só não geram votos. Já o preço dos alimentos influencia o voto nas classes de média e baixa renda. E, nesse quesito, o Governo não anda bem.

Desde o início da pandemia da Covid-19, em 2020, os preços dos alimentos acumulam alta de pouco mais de 55%. O número ultrapassa o avanço da inflação somada no mesmo período, de 33,4%, segundo dados do IBGE. A menor aprovação de Lula entre pobres é por alta de alimentos, disse o Ministro do Desenvolvimento Wellington Dias. Mas há indícios de que o preço dos alimentos tende a desacelerar.

Os eleitores de média ou baixa renda estariam sendo influenciados por fake news, pela mídia comercial, pelas informações tendenciosas ou falsas geradas pelas redes sociais bolsonaristas? Fatores não econômicos como costumes ou corrupção, por exemplo, estariam tendo peso maior do que antes?

Há quem acredite que os bons resultados na economia vão acabar prevalecendo e influenciando o eleitorado. Por enquanto, isso é uma crença, sem comprovação. Ao que tudo indica, o grau de popularidade do Presidente não estaria principalmente vinculado aos resultados da economia.

Esse panorama lembra um pouco – guardadas as devidas diferenças – a última eleição nos EUA. O governo de Joe Biden conseguiu bons resultados na economia, mas Donald Trump venceu por uma diferença folgada. Espero que isso sirva de alerta para a campanha eleitoral de 2026 que, na verdade, já começou.

Um governo titubeante e fraco não entusiasma a população que prefere um governo forte, afirmativo, e não um governo temeroso de desagradar a direita para não perder no Congresso os votos que já vem perdendo.

É urgente encontrar uma nova filosofia de comunicação que desperte, como dizia Paulo Freire, a esperança e o sonho na população. Para isso, será necessário não apenas a urgente tarefa de mudar ministros e assessores, mas principalmente denunciar, alto e bom som, a sofreguidão da classe dominante em se apropriar dos recursos públicos e sabotar pagamento de impostos.

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, disse o poeta português Luís de Camões em seu famoso soneto. Já se foi o tempo do negociador “bom moço”. O papel de “guerreiro” político defendendo os interesses populares obteria mais apoio por parte do eleitorado. Mas, para produzir uma mensagem eficaz, será necessário abandonar o discurso ultrapassado da era analógica e entrar de vez na era digital.

A derrota contundente da esquerda na eleição municipal de 2024 acendeu o sinal vermelho. Temos pela frente mais de um ano até a eleição presidencial, ainda há tempo para o Presidente reverter sua queda de popularidade e ganhar a eleição.

Mas, para isso, Lula terá de decifrar o enigma que está posto em sua esfinge: Ou decifra, ou será devorado pelas urnas. E, para decifrar, o Governo, entre outras medidas, terá de mudar seu paradigma de alianças com a direita, denunciar o austericídio fiscal que bloqueia o desenvolvimento do país, partir para a ofensiva na defesa dos interesses populares e ingressar na era digital.

*Liszt Vieira é professor de sociologia aposentado da PUC-Rio. Foi deputado (PT-RJ) e coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92. Autor, entre outros livros, de A democracia reage (Garamond). [https://amzn.to/3sQ7Qn3]


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