Odete Roitman

Imagem: Hatice Baran
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Por EUGÊNIO BUCCI*

O remake de Odete expõe o paradoxo do nosso tempo: enquanto a ética virou peça de museu, a vilania virou modelo de sucesso. Se antes a audiência queria sangue como justiça, agora pede sangue como espetáculo – de preferência, o dos “chatos” que ainda acreditam em virtude. Assim, em um mundo onde Trump e Bolsonaro são ídolos, o verdadeiro crime é ser honesto

1.

A confiança virou pó. Não se pode acreditar em mais ninguém. A boa fé não existe, a não ser como fachada. A honestidade se reduz a uma reles desculpa para o fracassado: é a única virtude da qual o pobre pode se orgulhar e, pior, é da boca para fora. Só vai enriquecer quem souber substituir a palavra “amor” pela palavra “interesse”.

Todos os ricos são crápulas. Na classe dominante, só não é calhorda quem sofre dos nervos: as madames alcóolatras e as socialites deprimidas. O único trabalho verdadeiramente lucrativo é a pilantragem profissional. Os trouxas insistem na integridade. Os trouxas são perdedores.

Se você acha o diagnóstico exageradamente pessimista, convém dar uma olhada na novela das nove da Rede Globo, Vale tudo. O melodrama faz uma radiografia cética da ética escalafobética patrocinada pela burguesia caquética. E, a julgar pelos rombudos índices de audiência, a radiografia colou. Há tempos a massa telespectadora não festejava tanto um folhetim da rede Globo. Há tempos, uma novela não dava tanto o que pensar. A cada capítulo, fica mais difícil ter esperanças ufanistas.

O quadro fica mais sombrio quando lembramos que o aviso não é novo. Na verdade, estamos falando de um aviso repetido. O que está no ar é um remake. A trama original de Vale tudo foi exibida no ano longínquo de 1988, o mesmo da “constituição cidadã”, como a apelidou Ulysses Guimarães.

Puxe pela memória, você vai se lembrar. Foi um tempo feliz, de buliçosa efervescência cívica. O Brasil acreditava que, se varresse os corruptos para longe da sala, abriria caminho para o progresso e para a justiça social. Bastaria expulsar de Brasília os parasitas, os marajás, os larápios e os tecnocratas fardados. Com os malfeitores sepultados, o país, finalmente, se reconciliaria com o seu grande destino.

Naquele clima de deslumbramento, liberação e euforia, tudo o que os telespectadores queriam era revanche contra as elites imorais – e para esse continental apetite de acerto de contas, Vale tudo serviu de vingança simbólica.

A vilã Odete Roitman, interpretada por uma atriz grandiosa, Beatriz Segall, representava tudo que havia de mais execrável: ela manipulava a família, os agregados, os empregados e, de resto, o elenco inteirinho, sempre destilando desprezo pelos mínimos resquícios de humanidade em quem quer que fosse. Sentia nojo das tais brasilidades, como pandeiro e feijoada. Usava e abusava da crueldade. Levou sua maldade a tais extremos que, no epílogo, terminou assassinada. Por merecimento.

Sua morte foi motivo de júbilo nacional. Foi até mesmo um divertimento: nos capítulos finais, o público dava risada tentando adivinhar quem tinha matado a megera chique. A pergunta “Quem matou Odete Roitman” entrou para o folclore tropical, assim como a execução da inescrupulosa e fascinante personagem virou um ritual de purificação, um antídoto contra todas as imundícies.

2.

Ocorre que, ao longo das décadas que vieram depois, as imundícies voltaram, e voltaram ainda mais imundas. Elas reapareceram tanta força que tornaram obrigatório o regresso da bruxa maquiada de dondoca. Eis então que, em 2025, o bode expiatório está outra vez no horário nobre. Mas o final que a espera poderá ser diferente.

A velha senhora – remodelada na estampa, mas intacta no caráter – saiu da tumba para repetir a catarse, desta vez encarnada na atriz Débora Bloch, cuja interpretação classuda transpira absolutismo majestoso, imperial. Em sua nova fase, a dama hostil segue ferina: espanca um subalterno só de olhar para ele e tortura a irmã carente com um quase imperceptível repuxozinho de canto de boca, como se dissesse que a outra não lhe merece nem mesmo o trabalho de rir de seu sofrimento sincero, mas vazio.

Sim, Odete está igualzinha. Os tempos, porém, são outros. Hoje, tiranos e ladravazes, desde que vencedores, não são mais objeto de repúdio, mas de adoração. A ideologia se sofisticou e opera milagres funestos. A identificação dos desvalidos com os bilionários sem princípios chegou a tal ponto que o motoqueiro precarizado se sente tão empresário quanto Elon Musk (só lhe falta ganhar algum).

Donald Trump, que acaba de tirar um trilhão de dólares dos serviços de saúde com o apoio do Congresso, desfila como ídolo dos que nada têm. No Brasil, milhares de eleitores vão às ruas para aplaudir os que tentaram dar um golpe de Estado. Algo mudou na alma do povo.

Cenário nebuloso. Talvez, hoje, a massa de telespectadores não deseje mais a morte violenta de Odete Roitman. Talvez torça, isto sim, para que ela triunfe e dê uma rasteira na moral da história para acabar de vez com esses bonzinhos insuportáveis que não lhe dão descanso.

A massa, que anda caidinha por opressores, talvez queira que a vigarista, em vez de ser assassinada, assassine pessoalmente aquele bando de chorões e de choronas, esquerdosos, previsíveis, chatos e politicamente corretos. Não será surpresa se os roteiristas tiverem que alterar o desfecho da novela para conceder, na segunda vida, uma anistia para Odete Roitman.

*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Incerteza, um ensaio: como pensamos a ideia que nos desorienta (e oriente o mundo digital) (Autêntica). [https://amzn.to/3SytDKl]

Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.


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