Por ANDRÉ TORRES*
Considerações sobre a exposição de André Griffo
1.
No pátio do Paço Imperial, ergueu-se o esqueleto de uma igreja plena em seus vazios. Os andaimes dispostos faziam as vezes de fóssil de um templo gótico, pois saltavam à vista arcos ogivais, típicos dessas estruturas, em contraponto aos eixos ortogonais que os sustentam. Comportam-se como ornamentos, adornos fúteis em um sistema metálico criado para auxiliar provisoriamente na construção de um edifício.
Em Predileção pela Alegoria – Andaimes (2017), nome atribuído à obra por André Griffo, seu autor, encontramos a articulação entre forma simbólica e função utilitária sem resolver uma possível contradição herdada de teorias modernas da arquitetura.
O trabalho constitui uma alegoria, pois elementos distintivos de diferentes tradições, frutos de universos epistêmicos próprios, convivem em sua dessemelhança, sem se fecharem em sentidos estáveis, mas convocando a contínua reelaboração dos seus significados para preencher o que insiste em se esvaziar. Ao invés do excesso de signos, contudo, opta pela síntese.
O arco ogival, que formalmente visa a verticalização a partir do encontro de duas linhas convergentes, criando a sensação visual de ascensão, está integrado aos andaimes que concretamente operam a elevação física dos corpos. Fragmentos distintos fazem ruir as convenções simbólicas, apontando para o encontro de diferentes temporalidades que fundam a nossa realidade calcada na discordância.
Do outro lado da rua, encontra-se uma outra igreja, muito mais robusta e opaca em sua concretude. Trata-se da Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, também chamada Antiga Sé, pois reinou como catedral da cidade do Rio de Janeiro durante dois séculos. O edifício de meados do século XVIII, com sua fachada estática e pilastras ascendentes, traz elementos identificados às variantes nacionais do Barroco e do Rococó – este último estilo verifica-se nas talhas do Mestre Valentim na Capela do Noviciado –, que a tornam um patrimônio cultural nacional.
Ali casaram-se nobres e foram coroados imperadores, que, por sua vez, habitavam o outro lado da rua, no Paço Imperial que, inclusive, já foi ligado à ela por um passadiço, demonstrando a estreita relação entre religião e poder que permeia o território brasileiro desde a sua colonização.
Faz sentido, então, que a primeira exposição retrospectiva de André Griffo, intitulada Alto Barroco, ocorresse nesse local. Afinal, o fluminense de Barra Mansa faz da história a principal matéria de sua criação. Suas pinturas e instalações valem-se não só das imagens cristalizadas na narrativa histórica da arte, como buscam figurar os fantasmas que assombram a sociedade e cultura brasileira a partir dos traumas recalcados e reencenados desde o período colonial.
O edifício tombado é, hoje, apenas sombra do que foi. Ali se somam transformações e usos, de modo que, os elementos presentes, revelam diferentes temporalidades. Tendo sido destinado, na década de 1980 a exposições de arte, o Paço abdica da sua suntuosidade anterior, para tornar-se uma versão anacrônica de um cubo branco. O anacronismo, inclusive, é um dos efeitos produzidos nos quadros do pintor fluminense. Na espacialidade de suas telas convivem elementos que apontam para múltiplas temporalidades, contraindo-se em uma espécie de tempo mítico, permitindo-nos identificar imagens e discursos que atravessam e moldam nossa cultura.
2.
Nas salas do paço, os próprios trabalhos de André Griffo feitos ao longo de mais de uma década, anunciando diferentes fases de sua prática, também compartilham de um mesmo espaço, permitindo reconhecer as continuidades e desdobramentos que a constituem. Logo na primeira sala, nos deparamos com duas pinturas recentes, feitas neste ano, de inclinação abstrata. Ambos em óleo e acrílica sobre tela, esses amplos espaços cromáticos se erigem como ruínas, como se as camadas de tinta que se sobrepõem, feitas em diferentes tempos, não fossem capazes de obliterar completamente sua própria historicidade, em oposição ao que parece ocorrer no edifício que as abrigam.
Na parte inferior dos quadros, formas delimitam uma espacialidade indicial, seja como paisagem, na Base para crucificação #1, no qual assumiria o papel do Monte Calvário, ou como arquitetura, no caso de Altar Consagrado. São reelaborações de espaços visitados pelo artista, seja no Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, ou na Itália.
Isso não significa que André Griffo apenas documente na pintura algo conhecido. Há invenção em seu trabalho, principalmente na articulação com outros elementos, sejam icônicos, como as imagens que povoam as paredes de Back to Olympia (2017), ou estruturas que unem o maquínico e o animal, no caso de Barroco Vazio (2014).
Resguardadas as diferenças entre a tendência à abstração, a figuração esquemática e a projeção de uma espacialidade virtualmente tridimensional, nota-se a função estruturante do espaço na prática de André Griffo, instituindo-se entre a definição e a dissolução. As manchas que constroem o espaço pictórico em suas telas, ao mesmo tempo em que fazem ruir certa noção de nitidez, denunciam a sua materialidade. Até em quadros que parecem almejar uma maior definição, como Back to Olympia, há momentos de pura pulsão pictórica, de adensamentos de tinta que mais do que representar algo, revelam uma inclinação atmosférica e o desejo de experimentar as possibilidades das tintas sobre a tela.
Ao adentrar a Sala do Trono, segundo ambiente da mostra, nos deparávamos com trabalhos da série A Supressão do Santo pelo Ornamento (2024). Flutuavam penduradas no teto para criar o efeito de planos que se sobrepõem e repetem. Tal disposição remete à construção da profundidade cenográfica no teatro, apontando para o surgimento da perspectiva, técnica que possibilitou a projeção do espaço como caixa cênica, articulando camadas que criam a ilusão de tridimensionalidade.
Os quadros de André Griffo, podemos pensar, estão mais próximos dos cenários do que das cenas em si. Em muitos deles, estão ausentes as figuras humanas. Quando presentes, assumem uma postura contemplativa, ou estática, suspensas à espera de algo, ou aparecem como dupla representação – quadros dentro do quadro –, emulações de retratos fotográficos e pictóricos refeitos em pintura, convidando-nos à vertigem das imagens, pois não se fecham em si, mas abrem-se para outras representações, estejam elas presentes na tela, ou apenas em nosso imaginário.
3.
No enfileiramento dos painéis que terminam (ou iniciam) com O encarnado (2024), uma escultura de Jesus com seu Sagrado Coração materializa fisicamente aquilo que, nas pinturas, é apenas imagem, mas que não deixa de ser, também, uma representação, como percebemos comparando diferentes versões da figura sagrada que oras é substituída por volutas.
Nesses casos, adornos decorativos tomam lugar do santo, ao invés de apenas ressaltar sua presença e operar sua separação do espaço comum. O ornamento, afinal, mais do que significar algo, visa movimentar o espírito, enredando as paixões em suas formas que impressionam e deleitam. Dizem respeito ao campo do erótico que é tradicionalmente rejeitado pela religião cristã, ainda que abundem em sua história momentos de entrecruzamento entre a transcendência divina e o prazer – ou desprazer – corpóreo.
Ao ocupar o lugar do santo, o que é pura imagem torna-se sagrado, revestindo-se de sua aura, ao mesmo tempo em que faz com que percebamos a imagem religiosa como mero adorno. Nesse sentido, somos remetidos a um dos marcadores da cisma entre católicos e protestantes que criticavam o uso ostensivo que os primeiros faziam na mobilização do imaginário dos fiéis. Para isso optaram por se centrar nas escrituras.
Na obra de André Griffo, as imagens da religião ganham protagonismo. Ressalta-se, entretanto, que seu interesse reside menos na função transcendental da religião, do que na sua sistematização institucional e desenvolvimento histórico, abordando o modo como ela se torna menos um espaço de exercício espiritual, do que seu emprego como dispositivo de poder a partir da mobilização das massas. Afinal, para mover imaginários e dirigir desejos e ações dos crentes, a religião precisou prescrever imagens que seduzissem e fizessem tremer, que excitassem as paixões, mesmo as condenando.
Pensar as imagens e seu uso para colonizar o imaginário dos fiéis levou o artista a investigar as relações entre arte e religião na cultura ocidental. Abundam em seus quadros citações e reproduções de obras canonizadas pela história da arte dos períodos Gótico, Renascentista e Barroco, quando essa aproximação se mostrou determinante. Exemplar é o retrato do Papa Inocêncio X, na entrada da última sala.
André Griffo reproduz a famosa pintura de Velázquez, de 1650, que, por sua vez, foi reinterpretada por Francis Bacon trezentos anos depois, em 1953. Griffo reconcilia essas imagens díspares em uma. Há, em seu quadro, tanto a definição do mestre espanhol quanto o grotesco do irlandês. O brilho superficial do óleo convida o olho a se aproximar para então surpreendê-lo com crostas de tinta que introduzem a abjeção da matéria na pintura.
O belo e o grotesco parecem conviver sem problema. André Griffo parece gostar do jogo entre definir e borrar, alisar e enrugar, oras usando desempenadeiras para arrastar a tinta, ou adicionando restos ressecados de pigmentos da palheta sobre a tela, criando diminutas superfícies rugosas e multicoloridas. De longe, suas pinturas podem até parecer fotografias, mas, de perto, animam-se de gestos que a retiram da estase composicional e denunciam a verdade material da pintura.
A ruína de seus espaços é aquela da pintura, seja como dado cultural, ou como objeto. Por um lado, a pintura tem perdido a popularidade entre os meios de promoção do imaginário. Todavia, mantém seu prestígio ao seguir se revestindo da aura fetichizante do mercado e dos espaços dedicados à sua apreciação, ainda que tenha menos impacto imediato na nossa cultura e sociedade do que as imagens que habitam nossas próteses-telas. Entretanto, André Griffo corrói a pintura com sua própria matéria, que não é só a da tinta, mas da sua monumental história que muitas vezes pode imobilizar aqueles que se dedicam ao seu enfrentamento.
Este não parece ser o caso de André Griffo que edifica sua poética no diálogo direto com a tradição, sem se prender somente àquela configurada pela história da arte, mas observando a história social do Brasil. No que tange o campo artístico, apropria-se de representações de Fra Angélico – na série Anunciação Vazia (2019-2022) –; Stefano di Giovanni, o Sassetta – no conjunto de quadros d’O Abençoado Ranieri (2016-2023) e em Antônio Agredido pelos Demônios (2021) –; Michelangelo e Martin Schongauer – em Descobri que sou um Anjo e Tenho 8 Inimigos (2021) –, entre outros.
Transita tranquilamente de Piero della Francesca à Keith Haring, sem deixar de lado Debret. Seus trabalhos não só reelaboram a tradição, como reprojetam a pintura no agora a partir da sua própria história. Assim, a pintura desponta em sua prática como duplo medium. O artista dispõe dela como mídia, suportando e veiculando suas imagens, observando, inclusive, sua historicidade, mas também como meio de se comunicar com os espectros do passado que tanto podem ser aqueles que assombram nosso imaginário artístico, quanto social.
4.
No segundo andar do Paço, encontravam-se os primórdios da pintura de André Griffo. Após experimentar o campo escultórico, realizando estruturas de inspiração minimalista – semelhantes às que figuram em Caixas (2011) – feitas com cera de velas de cemitério, o artista passou a criar instalações com detritos encontrados na rua e locais de descarte de materiais. Essas construções assemelham-se à máquinas sinistras, que, tal qual Estrutura Mista (2014), articulam o artificial e o natural.
Antes de voltar-se ao passado, a pintura surge em sua prática como espaço de anotação no qual ele pode projetar a concretude porvir. Todavia, são autônomas, realizam, por e em si, o imaginado.
As máquinas de André Griffo, concretas e pintadas, se colocam na esteira do Grande Vidro (1915-1923) de Duchamp. Mas ao invés do investimento erótico das máquinas celibatárias que povoaram o imaginário moderno, tornando-se uma espécie de mito do capitalismo industrial, elas emergem com a força de tânatos. A articulação das estruturas metálicas com corpos vegetais e animais destituídos de vida, constituem um desdobramento contemporâneo do gênero da natureza-morta. Essas maquinarias parecem querer reanimar o que já se encontra distante da vida. Apontam, então, para a ruína da natureza frente aos ideais de progresso.
A própria pintura é máquina. Nela, diferentes partes da composição se engatam para engendrar uma narrativa, produzindo significados livremente. Para construir suas pinturas, André Griffo age como um trapeiro, recolhendo, recuperando, reciclando os fragmentos da história, e, ao mesmo tempo, reduzindo a trapos seus referenciais, ao revelar sua falsa estabilidade, ou aquilo que visam ocultar. Se repete imagens, é menos para reiterá-las, do que para atuar no sentido do seu desgaste.
O artista escreve a história a contrapelo do pincel na pintura. Ele também pinta a contrapelo da própria história da pintura. Em suas composições, a história – que se estrutura pela redução de acontecimentos em narrativas – encontra-se miniaturizada, condensada.
A própria história do Paço Imperial, lembremos, é acessada, atualmente, através de maquetes, que expõem as sucessivas transformações do edifício. A miniatura, inclusive, é um modo que o artista encontrou de abordar certas violências invisibilizadas nos espaços que habitamos. Na série Instruções para administração de fazendas, encontramos figuras e edificações diminutas em meio aos amplos salões.
A concepção desses quadros surgiu do encontro do artista com uma carta, no Museu Afro Brasil, que prescrevia formas de se administrar uma propriedade no período colonial. O documento chamou a atenção do artista por dar a ver a continuidade de certas estruturas sociais e de exploração de força de trabalho em nosso país. A imponência da arquitetura nessas telas parece oprimir as figuras racializadas que ali habitam. São espaços que expressam como muitos do nosso patrimônio construído deve-se à exploração de mão de obra escrava, mas que ficam relegados à margem, quase invisibilizados. Habitam os quadros como meros detalhes.
5.
O detalhe é justamente aquilo que pode se apresentar como diferença em uma composição. É ali que pode repousar a surpresa, a inquietação diante de imagens tão familiares. Por isso, podem ser o manancial de sentidos que se diluem na monumentalidade da tela. Ele revela a “maquinação do quadro”, diria Daniel Arasse, historiador da arte francês que escreveu um livro sobre a importância do detalhe na pintura.
Ao reconhecermos sua presença, redirecionamos nossa leitura para acessar/construir outros sentidos. Para elaborar aquilo que habita o mundo em espaço reduzido, André Griffo criou, inclusive, uma personagem: O Vendedor de Miniaturas, que já lhe rendeu uma dezena de telas. Inclusive, no nono quadro da série, o artista pinta a si mesmo como tal. Repete a própria figura na composição, reiterando a duplicidade que jaz em todo autorretrato.
Entre os bibelôs de santos comercializados pelo vendedor, encontram-se outras mercadorias evocativas de figuras que permeiam o cotidiano carioca, tais como o traficante, o policial, o miliciano, o político e o pastor evangélico. São entidades mitificadas pelo noticiário e pela cultura, moldando o imaginário sobre o Rio de Janeiro, em específico, e sobre as figuras de poder, formal e informal, que controlam nosso país, de modo geral.
O tempo presente também comparece em sua prática em trabalhos feitos em um dos momentos de grande ebulição política na história recente do país, como vemos em O Golpe, a Prisão e Outras Manobras Incompatíveis com a Democracia (2018). Na imagem da televisão e nos jornais, o artista projeta o agora para o futuro, compreendendo a dimensão histórica daqueles acontecimentos. Sua pintura é como uma notícia que não envelhece. Renova-se, mesmo que os textos de jornais transferidos para a tela, visando manter sua legibilidade, a ancorem em um contexto específico.
Na última sala, retornavam os trabalhos que recriam imagens inscritas na tradição da arte. Lembramos, então, que a prática de André Griffo é histórica, acima de tudo, por entender sua posição no agora. É um trabalho sobre o presente e sobre presença, não só por tudo aquilo que pinta ter sido confrontado por seus próprios olhos. Ele esteve diante daquelas imagens. Ele as olhou e se deixou ser olhado por elas. Por isso, não são meras reproduções, apesar de existirem como figurações que reelaboram uma experiência real, nem constituem frutos da imaginação especulativa, apesar de reservarem espaço para a invenção. Suas pinturas agenciam presença, clamam pela duração do olhar, fruto da própria dilatação temporal da feitura de suas obras, o que leva o artista a produzir uma dúzia de telas por ano. Sobretudo, dão a ver os fantasmas que nos orbitam para que percebamos a persistência do passado, assim como sua espessura.
Por isso, talvez, ambicione o inacabado – da pintura, da história e da história da pintura – ainda que a primeira impressão seja do seu acabamento material. Seu trabalho fala sobre a violência das autoridades, seja a da própria história, ou da religião que visa salvar o sujeito dela. Com suas pinturas, desvela os mecanismos de controle do imaginário, do qual a própria história da arte participa no processo de codificação e decodificação das imagens.
André Griffo corrói a pintura com sua matéria que não é só a da tinta, mas da sua disciplina, dada na sua institucionalização como campo do saber que sustenta o rastro de um gesto como imagem de importância cultural.
*André Torres é escritor e crítico de arte.
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