Karl Korsch e as armas da crítica

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Por GABRIEL TELES*

Introdução do autor ao livro recém-publicado

1.

O marxismo já possui uma longa história. O seu esboço começa com Marx em 1844, com a inauguração dos primeiros elementos do materialismo histórico-dialético na Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel, e estende-se até os dias hodiernos. Trata-se de uma extensa tradição teórico-política que encabeçou transformações decisivas tanto para a produção do saber (seja ela de lastro científico, filosófica etc.) quanto para os conflitos sociais das mais diversas coletividades, especialmente aqueles ligados à luta de classes.

Aproximando-se de dois séculos de existência, o marxismo, ao longo de sua história, teve altos e baixos, acompanhando a própria história do capitalismo. É curioso como, ciclicamente, a teoria marxista é dada como morta, superada ou obsoleta. O anúncio de seu sepultamento não é algo apenas de nossos tempos neoliberais, mas já nas suas décadas iniciais, no começo do século XX, se colocava tal questão.

É o que nos mostra, por exemplo, György Lukács (2012a, p. 61) em irônico artigo intitulado “A última superação do marxismo”, de 1920: “É difícil que se passe um ano sem que Marx seja ‘superado’ por algum solícito livre-docente ou por algum filósofo da moda”. Bastam, no entanto, os primeiros indícios de crise no processo da acumulação de capital e na intensificação dos conflitos sociais para que Marx e o marxismo voltem à tona, como um espectro a rondar as engrenagens capitalistas explicitando suas contradições e evidenciando o seu fim potencial pelas mãos dos explorados.

Diante disso, um pensador do estofo de Jean-Paul Sartre (1967) não poderia afirmar outra coisa senão que o marxismo é a [teoria] filosofia insuperável de nossa época. Insuperável pois seus elementos constitutivos só serão abolidos com a abolição da própria sociedade que o constituiu. Enquanto perdurarem as múltiplas determinações dessa sociedade, amalgamado numa sociabilidade pautada na exploração, dominação e opressão, haverá o marxismo buscando deslindar o seu caráter ideológico e contribuindo com a sua derrocada.

Daí a perseverança do marxismo na história. A influência dessa teoria é sentida por todas as disciplinas nas ciências sociais e humanas, bem como na filosofia. Da sociologia à história, dos estudos literários à ciência política; nada escapa da investida da teoria revolucionária marxista. Não menos importante, entretanto, é sua influência na dinâmica dos conflitos sociais desde o século XIX.

Não há nenhuma experiência histórica de luta e conflito, nos últimos 170 anos, que não teve de responder, positiva ou negativamente, à influência de Marx e de seus epígonos. Tamanha influência ao longo do tempo, tanto na produção do saber quanto nos conflitos sociais, explicita não só a importância de uma compreensão melhor sobre o marxismo, mas também evidencia que ainda se trata de uma teoria em desenvolvimento. Isso significa que o marxismo se transforma, como já afirmamos, junto à história do capitalismo, com suas mutações, peculiaridades e determinações.

Apesar de suas transformações, há algo de permanente no marxismo ao longo de sua historicidade e suas metamorfoses: sua relação direta ou mediada com a luta do proletariado rumo à emancipação humana. Trata-se de uma teoria com um projeto político muito bem definido e delimitado ao defender o caráter crítico-revolucionário dos trabalhadores em seus processos de luta.

O marxismo, nesse sentido, é uma teoria praxiológica, que não se resume apenas a compreender o mundo. Seu primeiro propósito não é o prazer contemplativo do mundo existente, mas sua transformação prática. Este foi a sua raison d’être em sua gênese nas mãos de Marx e Engels e posteriormente desenvolvimento por tantos outros intelectuais e militantes.

A questão, no entanto, envolve outra camada na problemática nessa longa jornada do marxismo na história. Como qualquer fenômeno político, a teoria marxista é prenhe de múltiplas interpretações sobre o seu significado. Como água e vinho, as abordagens estruturalistas se diferenciam, em diversas questões, das abordagens humanistas sobre o marxismo.

O mesmo ocorre no plano político: as abordagens leninistas expressam um antagonismo com o marxismo que reivindica a espontaneidade do processo revolucionário, rechaçando a ideia de uma vanguarda. O que há em comum, em muitos casos, é só a reivindicação da alcunha “marxista” em suas teorias/ideologias; de resto, o distanciamento é cabal. Nesse sentido, o marxismo está em disputa. É o que Mikhail Bakhtin (2009) chama de luta de classes em torno do signo.

Essa problemática nos constrange à seguinte pergunta: tudo que se autorreivindica como marxismo pode ser considerado enquanto tal? O fundamental aqui não é cair no relativismo extremo (“tudo é marxismo”) ou no dogmatismo estéril (“só aquilo que quero que seja, é marxismo”). Não é o meu objetivo responder a essa questão nesta pesquisa, mas ela nos abre para uma janela de oportunidade de introduzir a delimitação dos objetivos e problemas de que irei me ocupar neste livro.

2.

Acredito que um dos momentos mais férteis para discutir as questões anunciadas anteriormente é o início do século XX com suas profundas transformações. Estamos tratando das primeiras décadas do século passado que nos brindaram com experiências revolucionárias basilares que não só alteraram a rota do movimento revolucionário do proletariado como também as perspectivas políticas e teóricas que se vinculavam a ele.

É nesse momento que se abre uma renovação fundamental dentro do marxismo, que passava por um contexto anterior de estagnação e de vulgarização, cujas ideias reformistas, cientificistas e economicistas contaminaram as organizações dos trabalhadores e respingaram na teoria e na prática do marxismo.

Nesse aspecto, abre-se uma bifurcação nas metamorfoses do marxismo. De um lado, temos um desenvolvimento coerente com seus propósitos revolucionários; e do outro, uma apropriação do marxismo pela ação reformista, deformando seus elementos constitutivos para justificar uma prática já não mais revolucionária.

É graças ao processo de intensificação da luta de classes, sentida em diversos países, especialmente após a Revolução Russa de 1917, que o marxismo acompanha a luta do proletariado revolucionário e se renova. Essa renovação se apresenta não apenas na sua relação direta com as lutas de seu tempo, mas também busca resgatar, atualizar e renovar suas ferramentas teórico-metodológicas.

É no interior dessa renovação do marxismo que surge um conjunto de militantes intelectuais que irá operar um profundo salto qualitativo na compreensão e no desenvolvimento dessa teoria. Estamos falando de autores como Rosa Luxemburgo, György Lukács, Ernst Bloch, Antonio Gramsci e Karl Korsch.

Esses teóricos marxistas, que também eram grandes militantes, não apenas resgataram o caráter revolucionário do marxismo, como também o renovaram à luz dos problemas políticos e teóricos de seu tempo. Cada qual à sua maneira, cada qual respondendo, em certa medida, aos problemas de seus respectivos países, eles confluíram na renovação da dialética materialista.

Este livro trata, portanto, dessa problemática. Na verdade, de maneira mais delimitada ainda, esta obra trata de um desses pensadores fundamentais, ainda pouco conhecido e explorado: Karl Korsch.

3.

Karl Korsch pode ser considerado, sem dúvidas, como um dos mais importantes marxistas da primeira metade do século XX. Sua vida e sua obra são expressões de uma pulsão para a revolução e uma obstinada defesa de um marxismo não dogmático, crítico e revolucionário. Karl Korsch foi um daqueles intelectuais marxistas que, em sua plenitude, realizou aquilo que Karl Marx (2008) havia formulado em sua juventude: “Embora a construção do futuro e sua consolidação definitiva não seja assunto nosso, é ainda mais claro, no presente, o que devemos realizar. Refiro-me à “crítica desapiedada” do existente, desapiedada tanto no sentido de não temer os próprios resultados quanto no sentido de que não se pode temer os conflitos com aqueles que detêm o poder”.

Tamanha importância, no entanto, não se fez acompanhar por um maior conhecimento de sua obra. Karl Korsch, no interior das discussões do marxismo, é bastante citado, mas pouco lido e compreendido. É de fácil verificação tal constatação. Basta um simples exercício de busca bibliográfica sobre Karl Korsch e veremos que, quase sempre, há poucos estudos sobre o autor.

O que se tem, em abundância, são menções pontuais e restritas, articulando-o a outros autores, tais como Antonio Gramsci e György Lukács, numa chave analítica que ficou conhecida como “marxismo ocidental”, termo cunhado pelo próprio Karl Korsch, mas transformado em construto por Merleau-Ponty e popularizado por Perry Anderson. O problema, não obstante, persiste. Mesmo sendo considerado, com aqueles dois autores, precursor do marxismo ocidental, Karl Korsch é pouco debatido: gastam-se dezenas de páginas com Gramsci e Lukács, mas pouco desenvolvida é a discussão sobre a reflexão korschiana.

O cenário se agrava ao constatarmos que até mesmo esses poucos estudos focalizam, quase sempre, tão somente uma obra de Karl Korsch, Marxismo e filosofia, desconsiderando o restante de sua produção anterior e posterior, rica em análises e contribuições para a compreensão crítica da sociedade capitalista e da produção social do saber.

Diante desse quadro, desde o início da minha trajetória intelectual, esse “ilustre desconhecido” me despertou interesse em conhecer e aprofundar melhor sobre a sua obra e vida. Ao iniciar tal empreitada e reconhecer a sua importância para o marxismo, dispus-me a refletir a seguinte questão: como explicar, em suas múltiplas determinações, o status periférico do pensamento de Korsch ou o silêncio sobre a sua obra?

A primeira constatação a que cheguei foi a de que Karl Korsch não pode ser considerado um autor marginal dentro dos estudos marxistas. Ele é, em verdade, um pensador marginalizado. As determinações dessa marginalização são diversas, bem como as interpretações sobre elas. A questão, no entanto, é que se trata de um autor incontornável, que participou de diversos debates e reflexões que enriqueceram o marxismo e que ainda ecoam na contemporaneidade.

A intenção deste livro, evidentemente, não é responder a essa questão que lancei em sua totalidade, mas focalizar um aspecto fundamental de seu pensamento, que dá inteligibilidade e explica um dos motivos da existência tanto dos não leitores quanto dos maus leitores da obra necessária e atual de Karl Korsch. Por esse ângulo, procuro, neste trabalho, explicitar, mesmo que sinteticamente, a proposta de marxismo crítico-revolucionário de Korsch e como tal compreensão atravessou o conjunto de sua militância política e de seu pensamento, focalizando seus instrumentos teórico-metodológicos.

Como veremos adiante, a sua concepção de marxismo e as consequências retiradas desta geram dificuldades para aqueles que não levam até as últimas consequências o projeto político radical e revolucionário do qual o próprio marxismo é uma manifestação.

4.

A turbulenta, mas coerente, trajetória política e intelectual de Karl Korsch aponta para uma preocupação fundamental: fincar o terreno da crítica teórica, as armas da crítica, no movimento revolucionário do proletariado. Nessa perspectiva, Karl Korsch buscou ao longo de toda a sua militância, mesmo que isto custasse o seu isolamento em momentos de refluxo da luta de classes, fundamentar o marxismo em sua base concreta, que é aquela classe social que possui a potencialidade de transformar radicalmente o conjunto da sociedade: o proletariado.

Para tanto, não se esquivou de uma pergunta decisiva, com a qual a tradição comunista marxista estava lidando nas primeiras décadas do século XX, após a degeneração da Segunda Internacional: o que é o marxismo?

Essa pergunta que, em sua aparência, se apresenta de maneira trivial ou até mesmo acessória para as tarefas políticas de um início do século XX em ebulição – especialmente com a intensificação dos conflitos sociais –, na verdade ocuparia uma posição fundamental na relação entre teoria e prática dentro das organizações revolucionárias e reformistas.

O pano de fundo dessa indagação se dava a partir da seguinte questão: se indivíduos tão diversos como Eduard Bernstein, Karl Kautsky, Rosa Luxemburgo, Vlamímir Lênin, Anton Pannekoek, Otto Ruhle, Plekhanov (que expressavam posições políticas até mesmo antagônicas) advogavam para si o título de marxistas, o que poderia explicar tal diversidade? Como definir marxismo sem cair num relativismo simplório ou num moralismo idealista ou, ainda, num oportunismo?

Karl Korsch viveu em um tempo propício para a reflexão sobre essas questões: de um lado, havia as transformações no conjunto da sociedade capitalista, que apontavam para uma profunda crise de acumulação de capital e, por consequência, para o acirramento dos conflitos sociais (sendo a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa os eventos históricos mais dramáticos desse processo); do outro, a maturação do movimento operário e das organizações derivadas de sua dinâmica, com suas derrotas, vitórias, desilusões e desenvolvimento.

Munido com as armas da crítica (seu profundo conhecimento da obra de Marx, Hegel e da tradição socialista) e a crítica das armas (participou ativa e diretamente da Revolução Alemã e da constituição dos conselhos operários), Korsch enveredou em busca de uma concepção adequada e coerente de marxismo que expressasse autenticamente o seu projeto emancipador.

5.

A preocupação fundamental de Korsch se manifestava na necessidade de um marxismo não dogmático e livre dos determinismos que, no fim do século XIX e início do século XX, começa a ecoar no interior da teoria marxista, especialmente na II Internacional e III Internacional.

É neste momento que surgem as teses economicistas, cientificistas e idealistas; todas elas descoladas do contexto social e histórico no qual o marxismo estava inserido. Assim, paulatinamente, Karl Korsch rompe com filiações teóricas e políticas de determinadas correntes, denominadas por ele de pseudomarxistas, mesmo que isso propiciasse o seu isolamento político.

Por esse ângulo, a delimitação de nosso problema de pesquisa ancora-se nas seguintes questões: em que se fundamenta a concepção de marxismo em Karl Korsch e quais são suas implicações teóricas e práticas ao longo de sua trajetória intelectual? Quais são os pontos de atualização e renovação do materialismo histórico e do método dialético produzidos por Karl Korsch? Quais foram os embates teórico-políticos travados por esse autor em polêmicas com outras perspectivas que se reivindicavam como marxistas? Trata-se, portanto, de analisar a trajetória intelectual de Karl Korsch a partir destas questões.

Logo, o nosso objeto de pesquisa, diante do que foi exposto até aqui, consiste na concepção de Karl Korsch sobre o marxismo e seu desenvolvimento intelectual ao longo de sua produção teórica, buscando seguir sua trajetória na reconstituição de um marxismo crítico-revolucionário.

Por esse ângulo, a delimitação do universo de investigação se dá nos escritos de Karl Korsch no período de 1919 a 1957. Justifico esse recorte temporal, pois é durante esses anos que Karl Korsch desenvolve suas ideias sobre o marxismo e demais temas que serão confrontados com outras interpretações. É somente em 1919 que o autor assimila e se posiciona enquanto marxista,[i] especialmente com a publicação da brochura O que é a socialização? – primeiro volume da coleção Sozialpolitische Schriftenreihe,dirigida por ele.

Nesse período, observamos a consolidação das categorias e conceitos marxianos, como “modo de produção”, “relações de produção”, “lutas de classe”, “revolução”, “movimento operário”, “método dialético”, entre outros. Essas ferramentas analíticas foram empregadas de forma significativa na compreensão da realidade social e política da época.

De 1919 em diante, Karl Korsch produz uma obra significativa que aprofundará o seu entendimento de marxismo e destoará das interpretações hegemônicas no interior do debate marxista: Marxismo e filosofia, em que polemiza e critica a social-democracia, propondo a ideia de que esta tendência é deformadora do marxismo;[ii] Concepção materialista da história: anti-Kautsky, publicado em 1929, em que irá revisar criticamente o trabalho teórico de Karl Kautsky; Karl Marx, publicado em 1933, em que fará uma fértil interpretação da teoria marxiana;além desses livros, há outros volumes a partir de ensaios que produziu ao longo do seu desenvolvimento intelectual.[iii]

A maioria desses ensaios e textos está publicada em revistas estadunidenses e alemãs vinculadas à intelectualidade da esquerda ou extrema-esquerda: Living Marxism, Modern Quarterly, New Essays, Partisan Review Politics etc.

Do ponto de vista metodológico, utilizamos o materialismo histórico como fundamento teórico e o método dialético como recurso heurístico e metodológico. Ao longo do texto, buscamos fazer ponderações metodológicas que expõe o nosso modo de apresentação e os principais indicativos de método para análise de nosso objeto de estudo. O que une todos esses princípios metodológicos é sua base nas principais ferramentas teórico-metodológicas do marxismo. Trata-se, então, de um livro que busca analisar um autor marxista pela ótica das lentes do marxismo.

6.

Cabe-nos, ainda, justificar um trabalho sociológico sobre a obra e o pensamento desse autor.

A primeira justificativa versa sobre os poucos trabalhos acadêmicos que se debruçaram, diretamente, sobre o pensamento korschiano nas universidades brasileiras. Enquanto exceções que confirmam a regra, podemos incluir os trabalhos de José Paulo Netto (2008), com notas introdutórias a respeito do pensamento de Karl Korsch, considerando-o um autor “extremamente problemático”, mas ao mesmo tempo inspirador para o desenvolvimento de uma história do marxismo.

Ricardo Musse (2012), que reconstitui o termo “marxismo ocidental” utilizado, de maneira inicial, por Karl Korsch, e posteriormente utilizado, de diversas maneiras, por outros autores; Nildo Viana (2012), com uma obra focalizada na questão do materialismo histórico, apresentando-o como um dos principais representantes teóricos do marxismo; José Carlos Mendonça (2016), que analisa a prática política de Karl Korsch, a partir dos eixos de autonomia proletária e contrarrevolução, observando a validade do pensamento korschiano para pensar criticamente as formas do poder político do capital na contemporaneidade.

É sintomático, do mesmo modo, que a primeira tradução para o português, com edição brasileira, de um livro de Korsch (Marxismo e filosofia) aconteça somente em 2008.[iv] No entanto, alguns textos ou capítulos de livros foram traduzidos em diversas revistas científicas e políticas recentemente (Korsch, 2014a, 2014b, 2015, 2016, 2020).

A segunda justificativa versa sobre o empenho em dar continuidade à inteligibilidade de uma determinada linha interpretativa de um autor clássico da sociologia: Karl Marx. A interpretação korschiana da obra marxiana encontra eco em diversos intelectuais contemporâneos, sendo, portanto, fonte importante para a compreensão desta obra.

A terceira justificativa estabelece relação com os principais vínculos intelectuais que Karl Korsch manteve em sua vida, especialmente na década de 1920 e 1930. Como já colocamos, ele é considerado uma das referências teóricas do chamado “marxismo ocidental” em conjunto com outros intelectuais, dando suporte e fôlego para uma interpretação acerca do próprio marxismo que foi fundamental para outros intelectuais ao longo do século XX e XXI.

Karl Korsch também foi um dos fundadores da Escola de Frankfurt, dialogando e debatendo diretamente com seus principais representantes, tais como Max Horkheimer, Herbert Marcuse, Walter Benjamin etc. Além disso, ele foi fundamental para diversos autores marxistas que trouxeram diversas contribuições, tais como a parceria intelectual entre o nosso autor e Roman Rosdolsky na pesquisa e estudo dos Grundrisse e a parceria intelectual e incentivo de Karl Korsch para Lawrence Krader editar e analisar os cadernos etnológicos de Marx.

A quarta justificativa refere-se à fertilidade da obra korschiana que contribuiu para uma revisão e análise crítica do marxismo, especialmente no início do século XX. Analisar essas contribuições significa não só compreender e interpretar a obra de um intelectual específico, mas, também, o próprio contexto social e histórico no qual ele estava inserido.

A quinta justificativa, enfim, diz respeito à elucidação de um determinado período do desenvolvimento da teoria marxista, vinculado a uma interpretação sobre o marxismo não muito estudada na academia brasileira. Além disso, Karl Korsch, ao analisar a própria historicidade dessa teoria, poderá contribuir para o desenvolvimento de uma sociologia histórica do marxismo.

Em síntese, esses cinco elementos justificam a realização desta pesquisa, revelando sua relevância teórica, social e institucional.

7.

O livro está ordenado de maneira a facilitar os propósitos deste trabalho. Iniciando-se pelas discussões mais básicas e vitais, para posteriormente tratar de temas derivados ou que exigiram pressupostos trabalhados nos capítulos anteriores, em cada capítulo é apresentada uma introdução que contextualiza a discussão dentro da produção intelectual de Karl Korsch e dos principais debates em curso sobre a temática.

Essa abordagem visa fornecer uma compreensão mais aprofundada do conteúdo discutido, destacando sua relevância no contexto do pensamento de Karl Korsch e nas discussões em andamento naquele momento.

Nesse sentido, como um panorama, o Capítulo I apresenta o percurso intelectual e político de Karl Korsch, analisando globalmente os principais momentos de sua vida articulados com a sua produção intelectual. Dividimos tal percurso em quatro momentos: (I) os anos formativos [1886 – 1918); (II) a militância em tempos revolucionário e adesão ao marxismo [1918 – 1923]; (III) o refluxo da luta de classes e a reavaliação korschiana do marxismo [1924 – 1933]; e, por fim, (IV) suas atividades intelectuais no exílio [1934 – 1961]. Nesse capítulo, buscamos aglutinar toda a bibliografia que trouxesse aspectos biográficos de Korsch, sendo uma de nossas contribuições sintetizar e articular o conjunto de informações que antes se encontravam espalhadas.

O Capítulo II analisa o modo como Karl Korsch define e desenvolve sua concepção de marxismo, focalizando os seus desdobramentos analíticos. Para tanto, foi necessário situar a disputa que a palavra “marxismo” e seu significado viviam naquele contexto do início do século XX. Posteriormente, apresentamos como o nosso autor extraiu a definição de marxismo nos escritos de Marx e em sua relação essencial com o movimento revolucionário do proletariado. É neste capítulo que apresentamos uma das principais contribuições e inovações de Karl Korsch: a aplicação do marxismo ao próprio marxismo. Com essa operação, avança-se na compreensão da história e da historicidade da teoria marxista, evidenciando seus desenvolvimentos e apropriações.

No Capítulo III, expomos e analisamos o conteúdo teórico-metodológico do marxismo. Nesse sentido, exploramos as principais contribuições de Karl Korsch para o resgate, atualização e renovação do materialismo histórico-dialético. A partir de uma breve introdução das contribuições do autor sobre o materialismo histórico, analisamos aqueles momentos, em sua obra, que mais se destacaram ao tratar do arcabouço teórico marxista: a relação entre natureza e sociedade; o caráter heurístico da dialética materialista; a releitura das forças sociais e de seu caráter social; as faces da teoria da revolução em Karl Marx; e o princípio da especificidade histórica. Este último, sem dúvidas, a sua principal contribuição e fundamento axial de seu pensamento.

O Capítulo IVexplora a relação entre o marxismo e as ideologias burguesas, retomando a crítica da divisão social do trabalho intelectual à luz da dialética materialista. Nesse sentido, analisa-se a relação entre a teoria marxista com a filosofia, ciências sociais e a economia política. Karl Korsch, em todas essas relações, põe relevo à aufheben efetivada pelo marxismo no trato crítico com as formas de conhecimento da modernidade.

O Capítulo V investiga a maneira como Karl Korsch concebe a vulgarização do marxismo ao ser contaminado não só pelo reformismo, mas pelas ideologias burguesas. Assim, reconstituímos e analisamos as principais críticas de nosso autor a Karl Kautsky, o principal teórico da social-democracia alemã e principal autoridade da II Internacional, e também a Vladimir Lênin, principal teórico do que posteriormente ficou conhecido como “marxismo-leninismo”.

Ao fim, em formato de excursos, tratamos de assuntos que se bifurcam com a temática deste capítulo, ao investigar a crítica de Karl Korsch a Karl Marx bem como a avaliação crítica ao marxismo no fim de sua trajetória intelectual.

Por fim, no Capítulo VI, buscamos sintetizar todas as discussões elaboradas nos capítulos anteriores, desenvolvendo e analisando as principais determinações da reconstituição do marxismo crítico-revolucionário em Karl Korsch. Para tanto, apresentamos os fundamentos axiais de seu pensamento (proletariado, historicismo, unidade entre teoria-prática e antidogmatismo), seus principais avanços e limites.

*Gabriel Teles é doutor em sociologia pela USP. Autor, entre outros livros, de Análise marxista dos movimentos sociais (Edições Redelp).

Referência


Gabriel Teles. Karl Korsch e as armas da crítica: a reconstituição do marxismo crítico-revolucionário. Curitiba, Appris, 2025, 228 págs. [https://amzn.to/4gWrov6]

Bibliografia


BAKHTIN, Mikhail (VOLOCHINOV, Valentin). Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2009.

LUKÁCS, Georg. A última superação do Marxismo. Revista Sociologia em Rede, Goiânia, v. 2, n. 2, p. 61-63, 2012a.

SARTRE, Jean-Paul. Questão de método. 2. ed. São Paulo: Difel, 1967.

MARX, Karl. Carta a Arnold Ruge. Carta dos Anais Franco-Alemães. Marxists Internet Archive. Disponível em: https://www.marxists.org/espanol/me/cartas/m09-43.htm.

NETTO, José Paulo. Apresentação. In: KORSCH, Karl. Marxismo e filosofia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008. p. 7-22.

MUSSE, Ricardo. A gênese do conceito de marxismo ocidental. Revista Espaço Livre, Goiânia, v. 7, n. 13, p. 42-48, jan./jun. 2012. Disponível em: http://redelp.net/revistas/index.php/rel/issue/viewIssue/17/12

VIANA, Nildo. Karl Korsch e a concepção materialista da história. Florianópolis: Bookess, 2012.

MENDONÇA, José Carlos. Autonomia proletária e contrarrevolução em Karl Korsch. 2016. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp, Campinas, 2016.

KORSCH, Karl. A dialética de Marx. Revista Espaço Livre, Goiânia, v. 9, n. 17, p. 7-11, 2014a. Disponível em: http://redelp.net/revistas/index.php/rel/issue/view/rec17

KORSCH, Karl. A crítica revolucionária. Revista Enfrentamento, Goiânia, v. 11, n. 19, p. 7-18, jan./jun. 2016a. Disponível em: http://enfrentamento.net/enf19.pdf

KORSCH, Karl. A Comuna revolucionária. Edições Enfrentamento, 2020.

Notas


[i] Apesar de Korsch já se vincular a determinadas organizações socialistas antes de 1919, é somente nesse ano que ele irá se assumir como marxista, vinculando-se, organicamente, ao Partido Socialista Alemão Independente (USPD).

[ii] Em 1930 escreve uma “Anticrítica” aos críticos desse livro, em que condena não só a socialdemocracia, mas também o leninismo.

[iii] Cf. Teoría marxista y acción política (Korsch, 1979b); Escritos políticos (Korsch, 1982, v. 1-2); Tres ensayos sobre marxismo (Korsch, 1979c); Lucha de clases y derecho del trabajo (Korsch, 1980b).

[iv] No entanto, em língua portuguesa, com edições de Portugal, a obra de Korsch já é publicada desde 1977. Em 2018, pela editora Antígona, também foi traduzida a obra Karl Marx, de Karl Korsch.


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