O período histórico da Guerra Fria

Imagem: Oleg Moroz
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Por EMIR SADER*

A ordem bipolar desmoronou quando um dos polos não pôde mais sustentar o peso da corrida armamentista, deixando como legado um mundo aparentemente unipolar, porém profundamente transformado por seu confronto estruturante

1.

Os Estados Unidos saíram vitoriosos das duas guerras mundiais. Além de que, no plano econômico, enquanto os países europeus sofriam os danos do conflito, os EUA superavam os efeitos da crise de 1929 com os preparativos para uma nova guerra, sem nem sequer sofrer no seu território os efeitos da guerra recém terminada.

Porém, em paralelo a esse processo de ascenso da hegemonia dos EUA no bloco ocidental, se dava a constituição do campo socialista, um bloco sob a direção da URSS. Apesar de golpeada em cheio pela ofensiva militar alemã, a URSS saía politicamente fortalecida da guerra, não por sua capacidade de resistência, mas também por ter chegado primeiro a Berlim e protagonizar diretamente a derrota da Alemanha de Hitler.

A liberação dos países do Leste Europeu da ocupação nazista pela URSS permitiu a incorporação desses países ao sistema socialista, o que também aconteceu com a China, depois da vitória da sua revolução. Expulsando os japoneses e os norte-americanos e derrotando seus aliados internos.

O surgimento do campo socialista introduziu um período histórico inédito, porque a hegemonia mundial passou a ser compartilhada entre dois campos, um deles questionando a hegemonia capitalista no mundo. Economicamente, a superioridade dos EUA e das potências ocidentais era inquestionável.

Porém o equilíbrio que caracterizava a Guerra Fria se dava no plano militar, pela capacidade de ambas as superpotências de se destruírem mutuamente. Os EUA haviam atirado suas bombas atômicas em Hiroshima e em Nagasaki para demonstrar ao seu novo adversário, a URSS, sua superioridade militar, que logo foi neutralizada pela obtenção soviética do seu próprio armamento atômico.

2.

Pelos acordos do pós-guerra, havia áreas de influência de delimitadas para os dois campos, restando algumas em disputa – como a África e algumas regiões da Asia, por exemplo. As duas situações de proximidade de enfrentamento direto se deram nas duas esquinas da Guerra Fria: em Cuba e na Alemanha. Cuba rompeu os acordos que definiam a continuidade as Doutrina Monroe – America para (norte)americanos – e os acordos sobre áreas de influência no final da Segunda Guerra Mundial, instaurando um regime socialista a 110 quilômetros dos EUA.

A Alemanha, em particular Berlim, era, por definição, uma fronteira em disputa entre os dois campos. Pela forma que assumiu a divisão do país, seus acordos eram instáveis, permitindo que, principalmente Berlim, por sua localização, fosse objeto de disputa entre os EUA e a URSS, antes mesmo da construção do muro.

Disputavam também duas caracterizações dos enfrentamentos que se davam no mundo: para o campo dirigido pelos EUA, a contradição fundamental se dava entre a democracia e o totalitarismo. Havia sido derrotado o totalitarismo nazista, agora haveria que derrotar o totalitarismo soviético. Já para o campo socialista, a contradição fundamental se dava entre o capitalismo e o socialismo.

O período foi, no plano econômico, o que Eric Hobsbawn caracterizou como “a era de ouro do capitalismo”, o maior ciclo longo expansivo desse sistema. As locomotivas da economia – EUA, Alemanha e Japão – cresciam, assim como países da América Latina – Brasil, Argentina, México, em primeiro lugar e o próprio campo socialista.

Além da bipolaridade mundial e do ciclo longo expansivo da economia, aquele período histórico tinha uma terceira característica: a hegemonia de um modelo de bem-estar social, em níveis de desenvolvimento diferentes conforme a região do mundo, em que os direitos sociais eram reconhecidos e garantidos pelo Estado.

Foi também um período histórico caracterizado pelo fim do colonialismo europeu, que havia sobrevivido especialmente na África, mas também na Ásia. Além da independência da Índia e do surgimento do Paquistão como divisão desse país, despontaram dezenas de novas nações africanas, originariamente com ideologias e lideranças nacionalistas.

Assim, ao lado dos dois grandes blocos, liderados pelos EUA e pela URSS, surgia um campo relativamente heterogêneo, chamado de Terceiro Mundo, constituído por nações dos três continentes periféricos: América Latina, Ásia e África. Suas características comuns eram mais dadas pela relativa distância em relação às duas maiores potências, do que por traços compartilhados entre elas.

3.

Entre esses traços estafa o fato de pertencerem ao Sul do mundo, isto é, à periferia do sistema capitalista, e de terem sido colonizados por muitos séculos, obtendo sua independência quando o sistema já estava constituído e todas as suas regiões estavam sob influência das grandes potências. Alguns dos governos desses países se reúnam no Movimento dos Países Não Alinhados, entre os quais estavam a Cuba de Fidel Castro e a Iugoslávia de Tito.

Essa heterogeneidade fazia com que fosse um espaço de permanente disputa entre os que queriam que o Movimento dos Países Não Alinhados fosse centralmente anti-imperialista, isto é, contra os EUA, e os que pretendiam que nele tivesse uma postura equidistante entre os dois blocos.

Essa disputa fez com que, em uma grande assembleia geral do movimento, realizada em Havana, em 1979, se enfrentassem justamente Fidel Castro e Tito como candidatos à presidência. Por representar a maioria dos países enfrentados com os EUA, Fidel foi eleito no momento de maior auge do movimento, imediatamente anterior ao seu declínio.

A unidade interna do movimento foi afetada por dois grandes e traumáticos acontecimentos: a guerra Irã-Iraque e a invasão soviética do Afeganistão, que o dividiu e o levou ao seu declínio. Esse esgotamento do Movimento dos Países Não Alinhados já prefigurava o final daquele período histórico, que se consumou quando um dos campos – o soviético – desapareceu e deixou de ter sentido a ideia de não alinhamento.

Terminava não apenas um período histórico, mas uma fase da historia mundial muito particular, porque marcada não pela hegemonia única de uma potência, mas pela bipolaridade mundial, pelo enfrentamento e de delimitação das áreas de influência de dois campos, que se equilibravam em termos militares. E porque, pela primeira vez, o socialismo aparecia como alternativa ao capitalismo.

Durante a segunda Guerra Fria, no governo de Ronald Reagan, os EUA intensificaram a corrida armamentista, o que levou a URSS a ter que usar ainda mais recursos econômicos na indústria de armamentos, dificultando mais ainda os investimentos na economia e no desenvolvimento tecnológico, de que tanto necessitava. Mais tarde, chegada a era da internet, o atraso tecnológico da URSS ficou ainda mais patente.

O que se evidenciava era que terminava um período histórico e começa outro, de tal monta e profundidade foram as transformações ocorridas no mundo nas últimas décadas do século XX. Um século que tinha se iniciado com o esgotamento da hegemonia britânica e terminava aparentemente, com a emergência dos EUA como única superpotência.

*Emir Sader é professor aposentado do departamento de sociologia da USP. Autor, entre outros livros, de A nova toupeira: os caminhos da esquerda latino-americana (Boitempo). [https://amzn.to/47nfndr]


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