Republicanas – Atenas, Roma, Florença e a atualidade do republicanismo

Alexander Calder, "Os Quatro Elementos", 1961
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Por HELTON ADVERSE*

Comentário ao livro recém-lançado de Sérgio Cardoso

1.

Para começar, vamos retomar as páginas iniciais do livro de Sérgio Cardoso, onde o próprio autor sintetiza seu projeto: “Entende-se, assim, oferecer aqui um livro de introdução a ideias e conceitos propostos no trajeto de formação do nosso ideário republicano, através da consideração das obras políticas dos autores mais relevantes, tomadas em alguma aproximação clarificadora, sem qualquer pretensão de sistematicidade. Pois, trata-se de um conjunto de ensaios independentes, quase sempre escritos de ocasião (de onde ocasionais repetições requeridas pela diversidade de perspectivas e situações das diferentes exposições), articulados, porém, pelo fio condutor de um projeto de estudos voltado para o conhecimento dos momentos e autores centrais da formação do ideário republicano: da Atenas do século IV a.C. ao Renascimento florentino dos séculos XIV a XVI, de Platão à virada maquiaveliana”.

“É, afinal, na linhagem dos grandes pensadores que pontuam o trajeto primordial do pensamento político ocidental – Platão, Aristóteles, Políbio, Cícero, Bruni, Maquiavel – que, não obstante suas diferenças, se decantam as ideias, conceitos e balizas fundamentais do que chamamos republicanismo. Verifica-se, enfim, por esse percurso, que a linhagem central da história do pensamento político ocidental é justamente “republicana”: procede da busca de uma forma de “governo misto”, de especulações motivadas pelas experiências políticas de cidades como Atenas, Roma e Florença no sentido de contornar inconvenientes das democracias, das monarquias ou mesmo das sempre prestigiadas aristocracias”.

“No caso do republicanismo florentino – que abre nossa modernidade política – quisemos trazer ao leitor recortes de seus momentos fundamentais, desenvolvidos no início do século XIV (ainda no tardo-medievo), no início do século XV (o “humanismo cívico”) e o início do XVI (o já chamado “momento maquiaveliano”), que constituem os três capítulos da Parte III de nosso livro” (p. 15-6).

Na apresentação do projeto do livro, cumpre acrescentar que o autor inclui uma quarta parte, onde reflete sobre o republicanismo na atualidade, cabendo destacar o percuciente apêndice sobre o problema do populismo.

2.

De imediato, despontam os seguintes elementos: duas linhagens, ambas de origem grega, presidem a história do republicanismo: a platônica, na qual os sábios legisladores vêm buscar no consentimento popular as bases da legitimidade de seu poder; a aristotélica, na qual o povo é integrado no regime político na condição de cidadão e participa do processo de formulação das leis.

 Unindo essas linhagens está a teoria do regime misto, isto é, o arranjo constitucional que pretende assegurar à cidade sua unidade, sua boa forma, tendo em vista a realização do interesse comum. Este é, aparentemente, o quadro geral que define o espaço em que Sérgio Cardoso vai realizar suas análises da história do pensamento republicano.

Não são poucas as questões que essas formulações iniciais suscitam. Como Sérgio Cardoso chegou à definição dessas duas matrizes? O que as distingue mais profundamente? Como elas convivem na evolução do pensamento político? De que modo suas diferenças ainda se fazem sentir nos dias atuais e o que delas resta?

Longe de pretender responder a essas questões, vamos apenas propor uma hipótese hermenêutica simples, sugerindo ler o livro em uma ordem diferente daquela, histórica, seguida pelos capítulos. A ordem de leitura que propomos é de natureza conceitual, filosófica, assumindo o pressuposto de que a obra de Maquiavel comanda o percurso investigativo de Sérgio Cardoso. Mas, cumpre observar, sua leitura de Maquiavel é fortemente impactada por aquela levada a cabo por Claude Lefort, em especial, sua ênfase na dimensão originária da divisão civil e no papel “protestatário” (p. 315) do povo na cena pública.

Se essa hipótese for plausível, o pensamento político maquiaveliano orienta a visita aos textos clássicos, sem que isso diminua o rigor da interpretação. Não se trata, em absoluto, de ler Platão e Aristóteles com lentes maquiavelianas (se é que isso seria possível), mas de, ao aproximar-se da obra desses autores, aguçar a sensibilidade para a dinâmica própria da vida política, para a experiência que a subjaz, a saber, aquela do conflito, da divisão.

E, a partir daí, interessa examinar a respostas que os filósofos nos oferecem para os desafios e impasses delas decorrentes. Tanto Platão quanto Aristóteles lançarão mão de uma teoria do regime misto, mas em chaves muito distintas. O primeiro, como já adiantamos, terá em vista uma ordenação da cidade, sob a égide da sabedoria. A feitura da lei fica ao encargo do sábio, independentemente do fato de ele exercer diretamente o poder (modelo da República) ou indiretamente (modelo das Leis), como mostra Sérgio Cardoso no primeiro capítulo.

Irmanado a essa concepção da lei e do poder, está o papel meramente aquiescente do povo, despojado de sabedoria e, por conseguinte, desqualificado politicamente. Em Aristóteles a cena é outra. Constatando a realidade da divisão das cidades, assumindo a necessidade de tomar essa experiência como dado essencial para a ciência política, o Estagirita identifica no conflito entre ricos e pobres a matriz da tensão política característica das cidades gregas.

A proposta Aristotélica, mostrará Sérgio Cardoso no capítulo 2, consistirá em integrar essas partes em disputa, reconhecendo como função primordial de uma boa constituição possibilitar ao maior número possível de cidadãos a efetiva participação nos afazeres públicos, tendo em vista a realização da excelência humana.

3.

O momento seguinte dessa história será a república Romana, com seus expoentes intelectuais, ao menos do domínio da filosofia política, Políbio e Cícero. Em grande medida, a teoria desses pensadores reativa os temas já presentes nos gregos, como mostra Sérgio Cardoso, o que significa que, mais uma vez, estará no centro dos debates a questão do arranjo institucional, assim como a distribuição do poder e o papel do povo no espaço público. Mas Roma, como por vocação, “aumenta” a teoria dos gregos, introduzindo, com Políbio, uma nova teoria dos ciclos e, sobretudo, um novo papel atribuído ao povo.

Cabe destacar a seguinte passagem do comentário de Sérgio Cardoso: “Segundo assinala [Políbio], cabe ao povo, na constituição da cidade, a parte mais importante: reconhecer méritos e deméritos (“conferindo magistraturas aos dignos delas, o que é, na constituição, a mais bela recompensa à excelência”) e atribuir punições (as mais graves, como pena de morte e penalidades aos magistrados superiores) em última instância, como senhor da justiça”.

“Já observamos que o reconhecimento popular é a medida dos méritos, enquanto o povo encarna os valores, as instituições, costumes e leis, derivados das primeiras noções morais, que são desdobradas e consolidadas como tradição na vida ordinária da cidade. É o povo, constituído por sua história, pela tradição, e não qualquer particular ou alguma parte do “todos” (fossem os melhores ou os sábios), o portador vivo dos princípios constitucionais que mantêm os poderes e regem a vida em comum na cidade”.

“Ele encarna a substância mesma da cidade (a inércia da tradição, as sedimentações que a conformam); é o princípio vivo de sua coesão, duração e identidade. É nesse sentido que o povo romano – não como número, massa, mas como povo efetivo – é o representante e o portador da Liberdade romana, o fundamento da Res Publica” (p. 114).

Na interpretação de Sérgio Cardoso, é quase anunciada a figura do povo como o “guardião da liberdade”, tão cara a Maquiavel, como sabemos. Entretanto, a similaridade das fórmulas não pode fazer que esqueçamos as diferenças fundamentais entre o historiador grego e o florentino. Mas isso ainda não importa aqui.

4.

Crucial é a diferença com Cícero, uma discrepância na qual vemos se reapresentar a mesma oposição entre uma concepção de república com laivo popular e aquela outra de colorido aristocrático, pois Cicero, malgrado os elementos inovadores que introduz na teoria política (como a ética estoica e a proeminência da retórica) também se mostra platônico no que diz respeito à feitura das leis e às possibilidades de ordenação da boa república.

Vejamos o que afirma Sérgio Cardoso: “O ponto de sua maior inovação – inteiramente consonante com as instituições e práticas jurídicas estabelecidas por Roma – está em sua concepção da natureza das associações humanas, na sua compreensão dos fundamentos da ordem política como imediatamente derivadas da vigência de um Direito. Elas não advêm mais da boa articulação da cooperação, da adequada organização funcional da cidade pela sabedoria do filósofo e suas Leis, como em Platão; e não vêm também, como em Políbio, do vigor dos sentimentos morais de um povo (constituídos por sua história, costumes e valores), entendidos como fiadores da legitimidade das leis e da ação dos magistrados”.

“Aqui, a constituição da res publica e a realização da utilidade comum vêm do consentimento dos cidadãos ao que é direito, o direito natural e divino, inscrito na própria natureza dos homens e alcançável pela razão natural, comum a todos. No entanto, esse direito e suas leis devem vir, a rigor, de uma razão perfeita, da inteligência do sábio, que se torna, então, o legítimo legislador. Suas leis sábias, que exprimem e fixam o Direito, serão imperativas: a obediência ao governo (ao consilium que decifra os comandos do direito natural para o tempo) é tão imperativo quanto a necessária obediência às leis morais e divinas”.

“Lembramos as palavras do exímio comentador Milton Valente: “Do alto a lei divina comanda o vinculum juris, inspira o sábio [legislador] e dá poderes aos que detêm o imperium”. Voltamos, de alguma forma, como se vê, ao governo do sábio. Cícero não estagiou em vão na Academia platônica” (p. 136-7).

Sem que seja necessário sugerir uma filiação entre Políbio e Aristóteles, é possível ver em suas obras se consolidar uma concepção de república que privilegia a dinâmica conflitiva e a participação popular, que irá encontrar seu mais alto lugar de expressão na teoria de Maquiavel. Entretanto, da mesma forma que o secretário não pode formular suas inovadoras teses sem arrimar-se sobre o trabalho realizado por seus antecessores imediatos, quer dizer, os humanistas, o republicanismo de Aristóteles e Políbio depende da construção de uma linguagem republicana, iniciada com Platão e continuada com Cícero.

Do ponto de vista histórico, o quadro parece, então, ser o seguinte: o legado clássico consiste em uma teoria republicana greco-romana que comporta importantes diferenças em seu interior, mas sempre sob a condição de assumir a dinâmica política em sua real complexidade e com a disposição a enfrentar o desafio colocado pelo desejo de realizar o bem comum.

Do ponto de vista metodológico, tudo leva a crer que Sérgio Cardoso confere ao pensamento de Maquiavel a função de um crivo, com o qual é possível separar os elementos constitutivos dessa tradição. Maquiavel aparece como um guia a conduzir Sérgio Cardoso em sua conversa com os autores antigos; ou, talvez, seja um pivô, distribuindo os conceitos (divisão civil, liberdade, lei) com os quais o olhar do autor poderá significar o pensamento clássico e, poderíamos arriscar a dizer, o pensamento republicano contemporâneo (voltaremos a este ponto logo em seguida).

5.

Pelo momento, valeria a pena refrescar nossa memória trazendo de volta o núcleo de sua intepretação de Maquiavel. Ele está plenamente desenvolvido em seu livro anterior, Maquiavelianas (em especial, a primeira parte). Mas ele também é apresentado em um capítulo do livro atual, nomeadamente, no capítulo 3 da parte 3, onde o autor aborda o tema da fundação das cidades a partir das Histórias florentinas.

A análise que ele empreende do segundo livro das Histórias culmina nessas afirmações: “Nada mais claro, enfim: o desejo popular de liberdade é desejo de ordini, aspiração continuada por viver sob leis e instituições republicanas. O povo é o sujeito, o motor e o autor das ordenações propriamente políticas […] O desejo de liberdade é para ele a pulsão coletiva de um povo, imbuído da experiência histórica da sua fundação e constituição política, sem a qual os homens naturalizariam as relações de dominação e opressão” (p. 227).

O desejo de não ser dominado, pulsão popular por definição, promove a instituição das leis, a criação dos “universais jurídico-políticos” (p. 302), afirma Sérgio Cardoso. Nesse ponto preciso, o florentino mantém seus vínculos com a tradição das teorias do regime misto, mas, ao mesmo tempo, resguarda sua distância e sua originalidade, uma vez que esse desejo não pode ser resolvido por meio de um arranjo das magistraturas.

O ideal da “concórdia”, sabemos, não encontra mais lugar no pensamento de Maquiavel. Ora, é insistindo sobre o caráter absolutamente inovador da teoria maquiaveliana que o autor define a perspectiva a partir da qual nos convida a mirar o passado.

Não há nenhum anacronismo; muito menos o autor poderia ser acusado de realizar uma leitura recorrente. Pelo contrário, o que devemos reconhecer na metodologia de Sérgio Cardoso é a expressão de uma filosofia política, a qual, assumindo a especificidade de seu ponto de vista, se esquiva da armadilha do “pensamento de sobrevoo” ou de uma visão totalizante.

E o que essa filosofia política nos permite pensar a não ser um conceito de república, delineado de modo consistente, ancorado na leitura dos grandes textos? A república é o domínio das leis da liberdade, como já vimos, sustentado pelo desejo popular, o único capaz de inaugurar a esfera pública em que são produzidos os “universais jurídico-políticos”.

6.

Em que consiste a república, porém, não é apenas acessível pela leitura dos antigos. Também é preciso voltar-se aos modernos, enfrentar os impasses de uma nova experiência política que atribui urgência ao problema da participação política e da universalização da cidadania. Em outros termos, não podemos aferir o valor do conceito de república se nos esquivamos do problema colocado pela democracia.

Por certo, Sérgio Cardoso não desconhece o fato de que as teorias dos regimes nascem em um contexto no qual a reivindicação de participação popular se fazia sentir e colocava um problema concreto às cidades. E, sob esse aspecto, são evidentes os pontos de contato entre o passado e o presente. São grandes, também, as diferenças entre a democracia antiga e a moderna, atestadas sobretudo nos termos em que as reivindicações são feitas e na forma política que ensejam.

Na verdade, nos tempos atuais, a democracia parece ter se tornado o centro gravitacional do pensamento político, colocando a república em sua órbita. Na melhor das hipóteses, os teóricos da democracia moderna apregoam, finalmente, a indistinção entre os dois regimes, como é o caso de Claude Lefort,[i] referência de peso para Sérgio Cardoso. Sem colocar em xeque essa assimilação, ele segue um caminho diferente, o qual nos permite vislumbrar a maneira pela qual a república pode “revitalizar” a democracia.

E o autor chave para que Sérgio Cardoso possa arriscar essa sugestão é, claro, Maquiavel. Assim, comentando os trabalhos de autores recentes, em especial John McCormick, que pretendem mobilizar o arsenal conceitual maquiaveliano em favor de uma democracia revigorada, ele escreve o seguinte: “Maquiavel vem despertar a velha e boa tradição democrática do pensamento político de seu persistente sonho dogmático de alcançar a unidade (mesmo simbólica), pacificada. No universo político maquiaveliano é a democracia (nossa terra comum, tão prezada e também desprezada) que, com suas instituições, vem girar em torno dos princípios da república – da sua república”.

E ainda: “Mas, hoje, quando experimentamos agudamente as dificuldades e limites das democracias liberais – enredadas nos simulacros da representação universal, acossadas pelas desigualdades exponenciais produzidas pelo neoliberalismo e o globalismo, assediadas ou vencidas pelas ameaças autoritárias – que república buscar? Pois a república parece ainda, mais uma vez, oferecer-se como remédio para uma democracia cronicamente incapaz de saldar seu empenho em realizar a universalização da cidadania e em maximizar a forma política de governo, isto é, de um governo de cidadãos (sendo tais, já nos ensinava Aristóteles, os que de algum modo, participam do governo da cidade, simultaneamente como governantes e governados) iguais perante as leis e livres de dominação e opressão, em função de seu estatuto de cidadãos” (p. 316).

7.

Tudo se passa como se Sérgio Cardoso, finalmente, invertesse o ângulo de abordagem das teorias democráticas, colocando a democracia sob a égide da república. Mas como, mais precisamente, pode uma teoria republicana cumprir essa função? Como vimos na passagem que acabamos de citar, há uma via negativa e outra positiva.

Sobre a negativa, o aporte lefortiano é facilmente identificável: Maquiavel, ao colocar no centro de sua teoria política a divisão social, desmascara a ilusão (ideológica?) da concórdia e da unidade, como tantas vezes sublinhou Claude Lefort. A democracia moderna está sempre ameaçada de sucumbir a essa inclinação totalizante, se ressentido da fragmentação social que, no entanto, está em sua origem. Na pior das hipóteses, é a sombra dos regimes totalitários que se projeta sobre ela, acenando com o fantasma do povo-um.

Na hipótese menos ruim, a democracia se torna exangue em sua busca permanentemente frustrada por um princípio de unificação, por uma unidade real que lhe permita superar a abstração de sua unidade pressuposta e que a faz, muitas vezes, resvalar no populismo. Sérgio Cardoso denuncia um vício de base nas teorias democráticas que não parecem escapar da inclinação a “totalizar”, a fazer “corpo político” pressupondo a existência, de antemão, de uma elemento unificador pré-político, como a racionalidade, o direito ou os interesses.

Ora, para contornar esses inconvenientes e nos oferecer outra via para acedermos a uma democracia revitalizada, Sérgio Cardoso, sempre recorrendo a Maquiavel, chega, por fim, a formular uma filosofia política republicana: “Ora, Maquiavel é o primeiro a tomar pelo avesso essa operação de unificação concebida pelas democracias. Em seu republicanismo, a ordem política não aspira mais a produzir um povo, a agregar um todo; ela apenas busca, permanentemente, produzir barreiras à opressão de poucos sobre os muitos, a opressão que, recorrentemente, emerge dos embates dos interesses de cada um”. “Não há todo em sua compreensão da ordem política, nem a aspiração por um todo pacificado (mesmo provisoriamente), que move as democracias; há o conflito, inultrapassável, e a divisão civil ativada pelos oprimidos, que buscam leis e instituições (leggi ed ordini), não como formas de acomodação de interesses ou de apaziguamento da cidade, mas como elementos de proteção, sempre frágeis, em relação à opressão dos “grandes”. Aqui, enfim, as leis não são concertação de interesses e valores de um agrupamento qualquer, convencional, de indivíduos ou grupos (por qualquer caminho constitucional que seja), como teimam em afirmar as nossas democracias; elas são, fundamentalmente advertências, fincadas por muitos, sobre os limites do tolerável”.

“Assim, Maquiavel escapa ao horizonte conceitual tradicional da democracia e anuncia um republicanismo radical, de estofo popular, um “governo de leis”, advindas não da “vontade do povo”, de um desejo (positivo) de todo o povo, mas do desejo (negativo) de muitos de não ser oprimidos por parte de poucos” (p. 335-6).

Como vemos, a república vem remediar a democracia exatamente na medida em que o espaço de liberdade que a ela corresponde se desdobra somente no trabalho do negativo. São grandes as vantagens dessa teoria, sendo uma delas – e, acreditamos, a mais importante – sustentar a reflexão sobre a política no registro do político. Na teoria política de Sérgio Cardoso, na esteira de Maquiavel e Claude Lefort, tudo parece girar em torno da divisão civil, o que permite, de um só golpe, dispensar a busca por um fundamento último e ler o espaço político sempre sobre o fundo das ações humanas, assim como a própria liberdade.

Por fim, gostaríamos de observar que o livro de Sérgio Cardoso não apenas oferece um aporte valioso para refletirmos sobre a relação entre democracia e república. Ele avança também um caminho no interior da própria tradição republicana, apontando os limites das teorias políticas dos assim chamados “neorrepublicanos”, que jamais se desvencilham dos elementos “extra-políticos” (como a moral e o direito) e, por isso, parecem incapazes de construir uma via alternativa ao liberalismo político.

O republicanismo de Sérgio Cardoso restitui à tradição republicana seu sentido próprio, isto é, o sentido político da liberdade forjado no espaço público, e coloca essa tradição de volta a seu eixo originário, a saber, a experiência da criação das instituições (leis e ordens) como um acontecimento decisivo na vida em comum.

*Helton Adverse é professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Referência


Sérgio Cardoso. Republicanas: Atenas, Roma, Florença e a atualidade do republicanismo. São Paulo, Editora 34, 2025, 368 págs. [https://amzn.to/4oZzt4j]

Notas


[i] “… através de todas as suas metamorfoses, a República tornou-se democrática; ela não tem outra definição possível, e a própria democracia é republicana ou bem ela cessa de designar uma sociedade política” (Foyers du Républicanisme, p. 208).


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