A acusação criminal de Donald Trump

Imagem: Reynaldo Brigantty
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Por GRAHAM HRYCES*

As acusações colocam Trump de volta ao jogo num país em declínio, cujo sintoma mais flagrante desse declínio não é outro senão o próprio Trump

O discurso de 25 minutos de Donald Trump proferido em seu complexo de Mar-a-Lago no dia 4 de abril, na sequência de suas acusações criminais em Nova Iorque, marca seu dramático retorno ao centro da política americana.

Após definhar em apatia nos últimos anos, Donald Trump está de volta ao jogo com uma vingança – graças à decisão do procurador-geral de Nova Iorque Alvin Bragg de acusá-lo de 34 acusações de falsificação de registros de negócios. A controversa decisão de Alvin Bragg de processar Donald Trump pode muito bem converter-se num dos mais consequentes erros de julgamento de um funcionário público na história americana recente.

O discurso de Donald Trump foi uma atuação brilhante. Em tons apocalípticos – “nosso país está indo para o inferno” –, Trump pintou um retrato de uma América corrupta, dominada pelo crime e fraca, promovendo insensatamente um conflito perigoso e desnecessário na Ucrânia, avançando em direção à autodestruição. Os EUA, afirmou Donald Trump, é uma “nação que fracassou … uma nação em declínio”.

O próprio Donald Trump está no centro deste prognóstico sombrio, proclamando-se como o único político que pode “salvar nosso país”. Para evitar isto, afirmou, as elites responsáveis pelo atual estado de declínio da América, incluindo os Democratas, o FBI, o Departamento de Justiça, George Soros, Facebook e Twitter, conspiraram agora para usar um sistema legal corrupto para impedir sua reeleição. “Eles não podem nos vencer nas urnas, então tentam nos vencer por meio da lei”, disse ele.

Não é de surpreender que Donald Trump vire sua ira destrutiva sobre o sistema de justiça americano. Ele sempre desprezou o Estado de direito. Quem pode esquecer seu orgulho por ter nomeado juízes conservadores para o Supremo Tribunal e sua subsequente denúncia destes mesmos nomes quando se recusaram a sancionar sua alegação de que as eleições de 2020 tinham sido roubadas? Mas neste discurso, ele foi mais longe do que nunca.

Quanto às acusações apresentadas pelo procurador-geral Alvin Bragg, Trump alegou que “não há um caso” e que Bragg – que ele classificou como “um criminoso” – sabia que não havia um caso. Ele descreveu o juiz do caso como um “juiz que odeia Donald Trump com uma esposa que odeia Trump… cuja filha trabalhava para Kamala Harris”. Segundo o ex-presidente, toda a acusação é algo “que saiu direto da velha União Soviética”.

No entanto, a denúncia de Donald Trump do sistema de justiça não acabou aí. Ele descreveu a apreensão de documentos de Mar-a-Lago pelo FBI como “ilegal” e parte de uma campanha de “perseguição” e “assédio” contra ele e sua família.

O ex-presidente rejeitou a investigação sobre alegadas práticas fraudulentas por parte das empresas Trump em Nova Iorque como “uma perseguição e não uma investigação” e acusou a procuradora-geral Leticia James de ser uma “racista ao contrário” e uma ferramenta dos Democratas.

Donald Trump continuou descrevendo o procurador-geral em Atlanta que atualmente o investiga em relação a uma alegada fraude eleitoral durante as eleições de 2020 como um “procurador-geral democrata racista”.

A acusação de Alvin Bragg, a operação do FBI em Mar-a-Lago e as outras investigações pendentes, são todas, de acordo com Donald Trump, aspectos de uma vasta conspiração legal – “nosso sistema de justiça tornou-se fora da lei” – concebida para destruir suas perspectivas de ser reeleito presidente em 2024.

É uma medida do declínio irreversível da América como uma democracia liberal funcional que uma pessoa que exprima publicamente tais opiniões possa ser um candidato sério à presidência. O encorajamento de Donald Trump aos tumultos de 6 de janeiro e suas persistentes tentativas de anular o resultado das eleições de 2020 provaram que ele tinha um desprezo absoluto pelo processo democrático. O discurso do dia 04 de abril prova que ele tem um desprezo semelhante pelo sistema legal e pelo Estado de direito. Nenhum presidente americano anterior – nem mesmo Richard Nixon em seus dias mais sombrios – teria sequer pensado em comportar-se de tal forma.

Dois outros aspectos do discurso de Donald Trump são dignos de nota. Ele repetiu sua crítica padrão a Joe Biden e aos Democratas como tendo destruído e reduzido a América a motivo global de piada – centrando-se na imigração ilegal, no aumento da criminalidade nas grandes cidades, na inflação e no enfraquecimento das forças armadas. Descreveu a família Biden como “criminosos e bandidos” e destacou as várias transgressões de Hunter Biden e o fato de não ter sido processado.

Mais importante ainda, Donald Trump criticou fortemente o envolvimento da América no conflito na Ucrânia. Afirma que o conflito nunca teria ocorrido se ele tivesse sido presidente, e afirma que Joe Biden corria o risco de provocar uma “guerra nuclear total”. Também culpou Biden por ter provocado uma aproximação entre Rússia e China que enfraqueceu globalmente a posição da América.

Não há dúvida de que as perspectivas de Donald Trump de ganhar a nomeação dos republicanos e ganhar as eleições presidenciais em 2024 foram energizadas pela acusação de Alvin Bragg.

As pesquisas mostraram que Trump tem uma liderança dominante sobre Ron DeSantis como o candidato presidencial republicano preferido, com outros candidatos, incluindo Mike Pence e Nikki Haley, tendo fracassado em obter praticamente qualquer tipo de apoio. Agora está claro que as primárias serão uma corrida de dois cavalos.

É de esperar que a liderança de Donald Trump sobre Ron DeSantis aumente, especialmente se a acusação de Alvin Bragg não prosperar. E uma acusação desorganizada poderia muito bem catapultar Donald Trump para a Casa Branca em 2024.

É importante notar que os procuradores devem provar que Donald Trump falsificou pessoalmente vários documentos com a intenção de defraudar. Os funcionários que trabalharam com ele antes dizem que ele tem aversão a pôr qualquer coisa por escrito, então provar que ele foi pessoalmente responsável pela falsificação de documentos, e que tinha a intenção necessária, não será uma tarefa fácil. Muitos juristas, incluindo os opositores de Donald Trump, levantaram dúvidas de que a acusação de Alvin Bragg resultará numa condenação.

Será interessante ver se Donald Trump procura atrasar a acusação de Alvin Bragg ou acelerá-la. Em ambos os casos, ele utilizará a acusação para turbinar suas campanhas para a nomeação republicana e para a presidência, e quaisquer acusações adicionais que possam ser movidas contra ele serão provavelmente utilizadas para efeitos semelhantes.

Também é relevante notar que a acusação de Bragg envolve assuntos essencialmente triviais. Afinal, será que nenhum presidente americano jamais utilizou indevidamente fundos de campanha no passado? Isto é muito menos grave, por exemplo, do que a alegada fraude eleitoral na Geórgia em que Donald Trump esteve pessoalmente envolvido, como demonstra sua infame conversa telefônica com o secretário de estado da Geórgia. Donald Trump estaria em dificuldades muito mais graves se tivesse sido processado em relação a este assunto ou ao seu envolvimento nos tumultos de 6 de janeiro.

É fácil rejeitar o discurso de Mar-a-Lago como delírios conspiratórios de um demagogo. Isso, porém, seria subestimar seriamente o apelo de Donald Trump a uma parte substancial e crescente do eleitorado americano – nomeadamente todos aqueles que foram deixados para trás pela globalização. Ele também personifica muitos dos aspectos mais grosseiros da cultura popular americana, e isto torna sua retórica política extraordinariamente eficaz na América contemporânea.

Deve também admitir-se que, despojada dos fundamentos de sua teoria da conspiração, grande parte da crítica de Donald Trump a Biden e à América contemporânea é essencialmente correta – e o fato de Donald Trump ser claramente incapaz de resolver os problemas para os quais chama a atenção não invalida suas críticas.

Isto é especialmente verdade em relação à oposição de Donald Trump ao fervoroso compromisso de Joe Biden de perpetuar o conflito na Ucrânia. O apoio popular à continuação da ajuda de Biden à Ucrânia está diminuindo, e a promessa de Trump de pôr fim ao conflito atrairá sem dúvida um grande número de novos eleitores para sua causa.

A energia de Donald Trump, a crença em sua própria causa, e a aptidão de fazer campanha contrastam fortemente com Joe Biden – que está se tornando gradualmente mais frágil e parece um político evasivo, esquivando-se das discussões. Qualquer pessoa que duvide disto deve comparar o discurso de Donald Trump em Mar-a-Lago com o discurso pouco impressionante de Joe Biden, proferido após o recente tiroteio na escola de Nashville.

Aconteça o que acontecer no próximo ano, o declínio aparentemente terminal que tem assolado a América nas últimas décadas – com correção e tão graficamente descrito por Donald Trump esta semana – certamente perdurará.

Os contínuos ataques de Donald Trump às instituições básicas que fundamentam a democracia liberal americana sem dúvida se intensificarão nos próximos meses e enfraquecerão ainda mais aqueles organismos já frágeis, e sua campanha para a presidência só dividirá e embrutecerá cada vez mais a política e a sociedade americanas.

Donald Trump estava correto ao descrever a América como “uma nação em declínio” esta semana, mas omitiu que o sintoma mais óbvio e mais flagrante desse declínio irreversível não é outro senão o próprio Donald Trump.

*Graham Hryces é jornalista.

Tradução: Fernando Lima das Neves.

Publicado originalmente no portal RT.


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