Por FELIPE CATALANI*
Posfácio do livro recém-editado de Günther Anders
1.
“A história que irei ler agora possui o seguinte contexto: no ano de 1961, ou seja, três anos depois de minha estadia em Hiroshima, e um ano depois da publicação da minha troca de cartas com o piloto Claude Eatherly, recebi da Alemanha Federal uma carta de uma jovem moça que me pediu para escrever algo sobre a situação atômica para uma coletânea.” Assim começa Günther Anders em uma das raras filmagens disponíveis, do ano de 1987 – ele já com quase 90 anos de idade, suas mãos bastante deformadas pela artrite com a qual sofreu ao longo de décadas.
Na filmagem, ele lê em voz alta a fábula “O futuro chorado”, o mesmo texto que abre o presente livro – único texto de ficção em meio a outros artigos e ensaios. Começa contando brevemente a origem do texto. A coletânea a qual ele se refere foi publicada com o título Gegen den Tod: Stimmen deutscher Schriftsteller gegen die Atombombe [Contra a morte: vozes de escritores alemães contra a bomba atômica], e traz textos de Anna Seghers, Hans Magnus Enzensberger, Oskar Maria Graf, Max Brod, Bert Brecht, entre outros – o texto de Anders é utilizado como abertura do livro.
Continua: “No tempo que passou, a organizadora morreu, ou, para honrar a verdade, ela ‘foi morrida’. O nome dessa moça, que eu nunca vi em minha vida, era: Gudrun Ensslin. Sem ela, nunca teria surgido essa história que irei ler para vocês”.[i]
Como se sabe, Gudrun Ensslin foi, junto com Ulrike Meinhof e Andreas Baader, uma das fundadoras da RAF (Fração do Exército Vermelho), que representou, após o refluxo de 1968, um dos momentos mais dramáticos de radicalização política na Alemanha do pós-guerra. Ou seja, a questão já estava no ar quando, em uma entrevista de 1986 a Manfred Bissinger, Günther Anders choca seus leitores, seus companheiros de luta anti-nuclear e a opinião pública germanófona em geral ao legitimar o uso da violência contra os poderes dominantes, criticando enfaticamente as “pseudo-ações” e os happenings em que, por exemplo, manifestantes abraçam edifícios públicos e dão flores a policiais, entre outras performances.[ii]
Ele anuncia o “fim do pacifismo”, embora o movimento “pacifista”, tanto o anti-nuclear quanto o de oposição à Guerra do Vietnã, seja justamente aquele com o qual ele se envolveu durante décadas. Em um pequeno livro organizado por Manfred Bissinger sobre o problema da violência, que contém inclusive uma “entrevista imaginária” e inúmeras respostas indignadas do público, diz Günther Anders que “aqueles que preparam ou que ao menos aceitam o extermínio de milhões de pessoas, hoje e amanhã, esses devem desaparecer, eles não podem existir”.[iii]
Se ligarmos uma coisa com a outra, deduziríamos que Günther Anders era um entusiasta irrestrito da RAF – o que seria apressado. Na data de 20 de setembro de 1977, Anders escreve junto com Robert Jungk[iv] uma “carta aberta à RAF”. Naquele momento, a confrontação entre o Estado alemão e a RAF (a esta altura, militantes já da “segunda geração”) escalava a níveis estratosféricos. Ulrike Meinhof havia morrido no ano anterior, e Gudrun Ensslin e Andreas Baader estavam na prisão desde 1972, e em abril de 1977 haviam sido condenados à prisão perpétua.
No dia 5 de setembro daquele ano, visando a liberação de seus presos políticos, membros da RAF sequestram Hanns Martin Schleyer, então presidente da União dos Empresários Alemães e da Associação da Indústria Alemã, além de ex-Untersturmführer da SS durante o regime nazista. Na mídia, os partidos conservadores clamavam pela pena de morte dos presos, e o Estado montou uma verdadeira operação militar de “caça aos terroristas”, sem a mínima intenção de fazer a troca do resgate.
Anders e Jungk iniciam aquela carta aberta de 20 de setembro com um Liebe Freunde – “Caros amigos”. Para algumas linhas abaixo escrever em letras garrafais: “Precisamos lhes dizer que encaramos com perplexidade e horror a cegueira de vocês e o estilo das suas ações!”.[v] Ao longo da carta, eles dizem que tais atos iriam produzir o contrário do que visavam e contribuir para um novo Estado autoritário, e pedem para que cessem os atentados e que liberem Schleyer. Menos de um mês depois dessa carta, na noite de 18 de outubro de 1977, morrem na prisão de Stannheim em Stuttgart, “suicidados”, Jan-Carl Raspe, Andreas Baader e Gudrun Ensslin. Diante disso, Schleyer é executado no dia seguinte com três tiros na cabeça, e deixado dentro de um carro na cidade francesa de Mulhouse, na fronteira com a Alemanha. Assim termina o “outono alemão”.[vi]
Em 1981, quatro anos depois desses eventos, é republicado o livro Endzeit und Zeitenende [Tempo do fim e fim dos tempos] (1972), agora com o título inequívoco Die atomare Drohung [A ameaça atômica]. Este é provavelmente o livro mais político e mais afiado de Anders, que é também um desdobramento do primeiro volume de A obsolescência do homem (1956), que termina com um extenso ensaio intitulado “Sobre a bomba e as raízes de nossa cegueira diante do apocalipse”. Sua análise será sempre dupla, focada ao mesmo tempo na bomba e na “cegueira” por ela produzida, isto é, tanto na bomba “em si” quanto na bomba “para nós”, tornando visível esse vácuo que é a gigantesca discrepância entre o que a bomba de fato é e aquilo que é apreendido por nossas limitadas faculdades de percepção, cognição, imaginação etc.
De forma bem mais enfática que n’A obsolescência…, há um embate politicamente situado, também contra figuras contemporâneas específicas. Karl Jaspers, por exemplo, que em 1957 publica um livro de 500 páginas intitulado Die Atombombe und die Zukunft des Menschen: Politisches Bewußtsein in unserer Zeit [A bomba atômica e o futuro do homem: consciência política em nossa época],[vii] aparece como um antípoda constante (na correspondência com Hannah Arendt, Günther Anders conta suas impressões de leitura com uma irritação crescente).[viii] Jaspers adere à falácia do “axioma dos dois infernos” (equiparando a ameaça atômica com a ameaça “totalitária” – no caso, soviética) e deixará estarrecido também Maurice Blanchot, que em “L’apocalypse déçoit” [O apocalipse decepciona] se impressiona com o fato de como o “que o preocupa é o fim da humanidade, mas mais ainda o avanço do comunismo.”[ix]
Para além do desvario do anti-comunismo, Karl Jaspers faz a comparação filosoficamente absurda entre um fato histórico – a existência da União Soviética – que a qualquer momento pode acabar (como acabou), com o perigo do fim irreparável e irreversível da humanidade. O veredito de Günther Anders é claro: “Se Jaspers ganhou o prêmio da paz, foi principalmente porque ele deixou Adenauer em paz” (p. 63).
Em A ameaça atômica, Günther Anders coloca em prática seu método, que é, segundo sua curiosa definição, “um híbrido cruzamento de metafísica e jornalismo”.[x] Os fatos mundanos não aparecem para “ilustrar a metafísica”, eterna por excelência – antes o contrário: é mergulhando no fato histórico casual (na “ocasião”, como diz ele) que o pensamento filosófico ganha consistência; assim funciona sua “Gelegenheitsphilosophie”, ou “filosofia ocasional”.[xi]
E de fato há algo de único em seu estilo – em uma entrevista já tardia, de 1982, refletindo sobre sua obra e sua geração, Günther Anders responde: “Só fiquei conhecido porque todos de minha geração já estão mortos. […] Não nego que reagi de forma mais contemporânea que meus amigos às questões de filosofia da técnica; a maioria deles era incapaz de saltar para fora das problemáticas e do vocabulário do marxismo ou da psicanálise e mergulhar nos novos problemas da era atômica. Em vez de ler os clássicos, eu li jornais. Mas justamente modo philosophico.”[xii]
É claro que não se trata de um ingênuo salto na imediaticidade. Para compreender seu procedimento, é necessário levar em conta também sua educação de fenomenólogo na lida com os objetos do mundo. Contra a filosofia voltada para si mesma, degenerada em eterno discurso do método e sempre formulando novas “epistemologias” (etc. etc.), Günther Anders tentou pensar partindo das “coisas elas mesmas” – sejam elas a televisão ou a bomba atômica.
Quem tem o olho fixo no método de explicação acaba cego para a coisa explicada, um pouco como o cão Castor que, em vez de ver a salsicha, só vê o dedo que a aponta: “Quando apontei a Castor o pedaço de salsicha que eu havia colocado do lado da árvore, ele, pulando loucamente, olhou para o meu dedo, em vez de olhar para o que estava sendo indicado. Aparentemente, animais não entendem o indicar. […] Será que nós filósofos não nos comportamos como Castor? Sempre pulando alto, olhando para o dedo indicador? Em vez de olhar para o que é indicado?”.[xiii]
Junta-se a isso o fato de a vida intelectual e a produção de Günther Anders terem se desenvolvido, em grande parte, à margem da filosofia acadêmica. Há nessa história um misto de convicção política (“a bomba não paira só acima dos telhados das universidades”, repetia ele) e acaso (tragédia da emigração). Se nos anos 1920 Günther Anders era um “queridinho” da universidade e aluno brilhante, filho de intelectuais bem estabelecidos e frequentador da grande filosofia da sua época (tendo estudado com Husserl, Heidegger etc.), no exílio americano ele passa a viver da mão para a boca, e será desde varredor de estúdio em Hollywood até operário de fábrica, após ter dado algumas aulas de filosofia da arte na New School for Social Research em Nova York.[xiv]
Ao voltar para a Europa, após 14 anos nos Estados Unidos, ele chega a pedir ajuda a Helmuth Plessner para conseguir uma vaga em universidade, e diz ter vontade de voltar a lecionar. Ernst Bloch também tenta lhe arranjar algo na Alemanha Oriental.[xv] Em nenhum caso deu certo. Anos mais tarde, a Universidade Livre de Berlim lhe oferece – duas vezes – uma cátedra, um convite mediado por Jacob Taubes. Já nesse momento, o convite é recusado – as duas vezes.[xvi]
Independentemente desses fatos biográficos, é notável em seus textos o esforço consciente e constante de romper o “esoterismo” do jargão filosófico (questão frequentemente tematizada por ele), o que faz com que ele desenvolva um estilo de escrita bastante particular e uma dicção própria.[xvii] Ele busca ao máximo uma linguagem sem rodeios que interpele o leitor de frente, com um uso bastante inusual na prosa alemã de frases curtas e sintaxe direta, livre de toda ornamentação.
Se seu estilo eventualmente se aproxima da força própria dos discursos religiosos (chega a ser impressionante como ele consegue formular, de maneira convincente e sóbria, tanto “mandamentos” como a necessidade de “juramentos”[xviii]), é porque de fato há ali algo que o interessa. A certa altura da troca de cartas com Hans Jonas, onde falam da relação com a religião, Günther Anders conta: “Na verdade, eu escuto no rádio toda manhã às 6h os discursos do padre local, pois neles há uma tradição da linguagem direta [Direktansprache] que se perdeu totalmente na filosofia.”[xix]
2.
É conhecido o ensaio de Adorno “Educação após Auschwitz”, que começa da seguinte maneira: “A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. De tal modo que ela precede quaisquer outras que creio não ser possível nem necessário justificá-la. Não consigo entender como até hoje mereceu tão pouca atenção. Justificá-la teria algo de monstruoso em vista de toda monstruosidade ocorrida.”[xx]
Günther Anders partilhava com Adorno a intuição de que, a partir de certo momento, certas exigências morais (as decisivas) prescindiam de justificação: “A questão sobre se deve haver humanidade ou não faz sentido no máximo no âmbito da razão teórica (caso seja possível respondê-la), para a ‘razão prática’ ela é desinteressante.”[xxi] Forçando uma analogia (nem tão forçada, visto o parentesco estrutural entre o campo de extermínio e a bomba atômica, “irmãos históricos” por assim dizer[xxii]), poderíamos resumir boa parte da obra de Anders sob a rubrica: “Educação após Hiroshima”.
E por mais que Günther Anders não esteja preocupado com questões pedagógicas em sentido estrito (isto é, naquilo que se refere ao âmbito escolar propriamente dito), é possível extrair de sua obra uma noção enfática de educação – uma educação pela catástrofe, por assim dizer, anti-apocalíptica, que faça frente à mutação antropológica a qual somos submetidos. Uma educação centrada na mais fundamental das faculdades humanas segundo Anders, a saber, na imaginação (desde seu primeiro ensaio sobre a bomba, é colocado o imperativo da “formação da fantasia moral”[xxiii]).
Não por acaso, precisamente a faculdade que ficou aquém de todo o desenvolvimento técnico civilizatório, que por sua vez conduziu a seu contrário, na exata medida em que o inimaginável foi produzido: o “nada não imaginado”[xxiv] é obra humana. Já no início dos anos 1940, no esboço do que viria a ser sua “Filosofia da cultura” (jamais publicada), Günther Anders definiu: “Barbárie é a diferença entre o homem e seus produtos”.[xxv]
Uma educação cujos fins são próximos aos visados por Theodor Adorno, mas que por sua vez é formulada em outros termos, até porque a teoria psicológica de fundo possui outro vocabulário – sim, há uma psicologia em Günther Anders (que inclusive era filho de dois célebres psicólogos, Clara e William Stern), cujos pressupostos, entretanto, ele não explicita, de tal modo que ela não é tão facilmente classificável.
Se Theodor Adorno tem em mente a dialética do processo civilizatório, mais ou menos tal qual pensada por Freud em O mal-estar na cultura, Günther Anders não está pensando tanto na questão das pulsões mal direcionadas ou mal contidas, tampouco no problema da agressividade individual (vinculada, evidentemente, a suas formas coletivas). Seu problema é antes o vácuo imaginativo, resultado da “discrepância prometeica”, e produtor da “indiferença diante do apocalipse”.[xxvi]
Isto é, a questão nem chega a ser tanto o ódio ou a frieza – Günther Anders fala inclusive de uma sinistra abolição do ódio e da inimizade[xxvii] – mas a apatia moral e mental que sustenta uma monstruosa normalidade, cimentada pela cegueira do trabalho como forma universal da atividade (alienada e alienante, decerto) e que funciona como um enorme sistema de colaboração.[xxviii]
Günther Anders dirige seu esforço didático, na acepção brechtiana do termo, contra essa normalização, que é seu verdadeiro objeto – não seria um exagero ler a obra de Günther Anders como uma grande teoria do conformismo (no caso, da mudança de como tal “conformismo” funciona). Não é um acaso que o título original d’A obsolescência… fosse O terror suave e outros estudos sobre o conformismo. Essa peculiar mistura entre horror e conforto Günther Anders viu em Franz Kafka, que decifrou a macabra normalidade do século XX: daí a peculiaridade de sua forma literária, que opera uma espécie de estranhamento às avessas.
Isto é, na técnica brechtiana de estranhamento tratava-se de mostrar o que era “natural” como sendo na verdade artificial (isto é, histórico e, portanto, transformável), revelando o normal como sendo estranho – já Kafka faz o inverso. Ele apresenta o estranho como sendo normal, coisas incomuns ou mesmo pavorosas ocorrem com a maior naturalidade, porque, justamente, o “espantoso em Kafka é que o espantoso não espanta ninguém”[xxix] – o espantoso que não espanta, ou o horror que não causa angústia nem medo: eis o problema a ser investigado. Por isso Anders falará do “anti-sensacionalismo” do tom kafkiano e de um princípio formal que ele chama de “explosão negativa”, uma explosão surda ao invés de estrondosa, que permanece sem consequências dramáticas. Algo como um alarme de incêndio às avessas.[xxx]
A manutenção da normalidade, à revelia do que já ocorreu e do que pode vir a ocorrer, está também na base da desesperadora comicidade de um Beckett, que, em Fim de partida, desenvolve um dálogo como: “Clov: Há tantas coisas terríveis. Hamm: Não, não, agora não há tantas. [Pausa]”[xxxi] Analisando a peça Esperando Godot, Anders interpreta Vladimir e Estragon como “guardiões do conceito de sentido em uma situação manifestamente sem sentido”.[xxxii] Isto é, eles não são “niilistas”, mas antes incapazes de serem niilistas mesmo em uma situação absolutamente sem esperança. “Uma parte da tristeza miserável que a peça irradia surge não tanto da situação sem perspectiva dos dois heróis, mas justamente do fato de que eles, por continuarem esperando, não estão à altura dessa situação, ou seja, do fato de eles não serem niilistas. E a essa incapacidade eles devem a força de sua comicidade”.[xxxiii]
Como deve estar claro, a educação para a angústia de Günther Anders passa pela tomada de consciência da situação apocalíptica de nossa época, cuja temporalidade é analisada por extenso no ensaio crucial “O prazo” (p. 185), inclusive traçando as distinções (e aspectos em comum) entre o apocalipse nuclear e as escatologias tradicionais. Haveria ainda a questão da duração, pois o prazo é também um tempo “abreviado”[xxxiv], mas não necessariamente breve, pode inclusive ser longo o suficiente a ponto de fazer entediar (daí o contrassenso, formalizado por Beckett, de um tempo apocalíptico vivido como entediante, um tempo essencialmente “destemporalizado”).
Mas para além de nosso “apocalipse sem reino”, isto é, deste fim que é puro fim (e que não é, como no apocalipse de João, ao mesmo tempo um começo), há de se considerar também a “não escatologia” em tempos apocalípticos, que por sua vez se vincula àquele mecanismo ideológico de manutenção da normalidade – também conhecido como progressismo. “Não se crê no fim, não se vê o fim – o conceito de progresso nos tornou cegos diante do apocalipse.”[xxxv] Essa cegueira também não é casual, em larga medida ela é ideologia no sentido marxista mais rudimentar, isto é, visão de classe dominante. Quem está por cima, não vê e nem tem interesse em ver “o fim”, pois também vê o que deseja, isto é, a continuidade do mundo tal como ele é, ficando cada vez melhor.
Esboçando o que seria uma “sociologia dos tempos do fim”, Günther Anders observa que “[…] jamais houve expectativas apocalípticas que devessem sua origem a poderes dominantes. […] Quem domina insiste na própria permanência e, com isso, na permanência do mundo. Somente quem está ‘no fim’ pensa no fim, espera pelo fim, consola-se com o fim. Formulado positivamente: concepções apocalípticas sempre devem sua existência a grupos que se encontram condenados à impotência por meio de uma pressão quase absoluta […]. Somente tais grupos precisam (ou melhor: precisavam) pensar no fim, pois com a ajuda disso puderam transpor a humilhação que suportavam neste mundo” (p. 136).
Em suma: escatologia é, historicamente, portanto, coisa dos condenados da terra, que passam do desespero à esperança (e vice-versa), enquanto as concepções de continuidade constituem a visão dos grupos dominantes e de quem se satisfaz com esse mundo. Na situação em que nos encontramos, tanto antes como agora, os que zombam do “catastrofismo” como algo “irracional” se convertem necessariamente naqueles guardiões da normalidade, tal como as figuras beckettianas. Mas é igualmente necessário ver o lado B de tal visão, isto é, o uso do apocalipse como chantagem para a manutenção da normalidade, que passa a funcionar somente sob a tensão constante de uma ameaça permanente.
O grande perigo (que, na maioria das vezes, tem um lastro real) se converte em retórica da obediência, ou, na pior das hipóteses, em lógica sacrificial: nos dias atuais, vemos surgir mesmo uma “colapsologia” de direita, que por exemplo converte a ameaça real do colapso climático em base para misantropia racista – contra a imigração e o pânico demográfico, até a morte se torna “ecológica” (atualmente, na França, já se tornou corrente falar de “ecofascismo”). O próprio Anders viveu para ver algo desse tipo na primeira metade do século XX, com a revolução conservadora na Alemanha e os “apocalípticos da contra-revolução”.[xxxvi]
Se o apocalipse gera também discursos mistificadores, a posição andersiana seria talvez aquela que Jean-Pierre Dupuy definiu como “catastrofismo esclarecido”.[xxxvii] Günther Anders não se acanha em se declarar racionalista, embora o modo como ele o faça seja bastante heterodoxo, por assim dizer. Da tradição filosófica da ilustração, Günther Anders preserva seu lado herético e negativo, na mesma medida em que se apresenta como um crítico feroz do progressismo.
Günther Anders reivindica até mesmo um rigor moral análogo ao de Kant – talvez para espanto dos kantianos propriamente ditos, Anders se diz kantiano no mesmo parágrafo em que defende a necessidade da violência: “Estado de emergência justifica legítima defesa, moral quebra legalidade. Não é necessário fundamentar essa regra duzentos anos depois de Kant. O fato de kantianos como nós sermos etiquetados de ‘baderneiros’ não precisa nos perturbar […], isso é somente um sinal do analfabetismo moral daqueles que nos etiquetam assim”.[xxxviii] Enxergar o limite da razão (comunicativa ou não…) e não esperar o esclarecimento moral de quem dispõe de poderes apocalípticos é algo, em si, racional: “Somente idealistas sentimentais superestimam o poder da razão! A primeira tarefa do racionalismo consiste em não se iludir com o poder da razão e sua força de convencimento”.[xxxix]
Günther Anders se define como um “moralista” (A ameaça atômica é, em larga medida, um livro de filosofia moral), com a consciência plena de que “o espaço para o qual devemos saltar é o espaço da política.” (p. 178). Evidente que não se trata do mundo da política em sentido trivial – para se opor a ela, Günther Anders chega a falar em “metapolítica”. Por um lado, as boas e velhas revoluções parecem pertencer a outra temporalidade histórica; por outro, se trata ainda de algo semelhante a elas, talvez com outra concepção de história e outra noção de “transformação”, pois, para que o mundo seja transformado, é preciso que ele ainda exista. Nesse sentido, Günther Anders se filia à tradição dos apocalípticos revolucionários, que remonta pelo menos a Rosa Luxemburgo e Walter Benjamin. Em todo caso, tal âmbito “metapolítico” se refere à política como luta e decisão, visto que é o “ser ou não ser” da humanidade que está em jogo.
É por aí que passa a “educação após Hiroshima”.
*Felipe Catalani é doutorando em filosofia na USP.
Referência
Günther Anders. A ameaça atômica: reflexões radicais sobre a era nuclear. Tradução: Gabriel Valladão Silva. São Paulo, n-1 edições, 2023, 256 págs. [https://amzn.to/3H9uYAL]
Notas
[i] Vídeo disponível em: https://vimeo.com/37359723
[ii] “É igualmente insuficiente, não, sem sentido, fazer greve de fome pela paz nuclear. Isso produz um efeito somente naquele que jejua, a saber, fome; e talvez a boa consciência de ter ‘feito’ algo. A Reagan e ao lobby nuclear não interessa se nós comemos um pãozinho a mais ou a menos. Isso realmente são somente ‘happenings‘. Nossas ações atuais, supostamente políticas, assemelham-se a essas pseudo-ações, que surgiram nos anos sessenta, realmente estarrecedor. Aqueles que as executavam acreditavam mesmo ter ultrapassado a barreira do somente-teórico, mas permaneceram no entanto ‘actores‘ só no sentido de atores do palco. Eles faziam somente teatro. E faziam isso, a saber, por medo de agir de verdade. Na realidade eles não dispararam nenhum tiro, mas somente um choque. Até mesmo um choque que deveria deleitar. Teatro e não violência são intimamente ligados.” Günther Anders, Gewalt – ja oder nein. Eine notwendige Diskussion. (org: Manfred Bissinger). Munique: Knaur, 1987, p. 24. Doravante: Gew.
[iii] Gew, p. 104.
[iv] Jungk era amigo próximo de Anders e dedicou também uma série de livros à questão tecnológica e nuclear.
[v] Günther Anders, “Offener Brief an die RAF”, Literaturarchiv der Österreichischen Nationalbibliothek, 237/W186/4.
[vi] Sobre os eventos do “outono alemão”, uma das melhores elaborações é ainda o filme Deutschland im Herbst (1978), dirigido por um grupo de cineastas, incluindo o enfant terrible de sua geração Rainer Werner Fassbinder, junto com Alexander Kluge e outros. A entrevista feita na prisão em 1997 com Stefan Wisniewski, que participou do sequestro de Schleyer, é também um dos materiais mais interessantes sobre o assunto. Stefan Wisniewski, Wir waren so unheimlich konsequent… Ein Gespräch zur Geschichte der RAF. Berlin: ID-Verlag, 1997.
[vii] Karl Jaspers, Die Atombombe und die Zukunft des Menschen. Politisches Bewußtsein in unserer Zeit. München: Piper und Co. Verlag, 1960.
[viii] Hannah Arendt, Günther Anders. Schreib doch mal hard facts über dich. Briefe 1939-1975. Munique: Piper, 2018.
[ix] Maurice Blanchot, “L’Apocalypse déçoit” in L’Amitié. Paris: Gallimard, 1974.
[x] Günther Anders, Die Antiquiertheit des Menschen I. München: Beck, 2010, p. 8. Doravante: AdM I
[xi] As considerações de Anders sobre seu “método” são poucas e despretensiosas, em larga medida formuladas a posteriori, com um olhar retrospectivo em relação à própria obra. Elas se encontram de maneira mais concentrada na introdução do primeiro volume d’A obsolescência…, e no final do segundo volume.
[xii] Günther Anders, Günther Anders antwortet: Interviews & Erklärungen. (org.: Elke Schubert). Berlim: Edition Tiamat, 1987, p. 79. Doravante: Gaa.
[xiii] Günther Anders, Ketzereien. Munique: Beck, 2022, p. 142.
[xiv] Em carta, Max Horkheimer chega a se referir do seguinte modo a GüntherAnders: “Marcuse e eu poderíamos por exemplo escrever ensaios articulados sobre o progresso. Além disso, o faminto Günther Stern [Anders] poderia entregar um trabalho complementar por um pequeno honorário.” Brief Max Horkheimer an Gretel und Theodor W. Adorno, 4.8.1941, in: Theodor W. Adorno/Max Horkheimer, Briefwechsel 1927–1969, Band II: 1938–1944. Frankfurt/M, 2004, p. 179.
[xv] Günther Anders, Gut, dass wir einmal die hot potatoes ausgraben. Briefwechsel mit Theodor W. Adorno, Ernst Bloch, Max Horkheimer, Herbert Marcuse und Helmuth Plessner. München: Beck, 2022.
[xvi] A troca de cartas com os membros da FU é amigável, e Anders sempre responde ao convite lisonjeado e agradecido, mas falando da impossibilidade de reconciliar suas outras atividades políticas (que envolviam muitas viagens, sobretudo ligadas ao Tribunal Russel) com as obrigações acadêmicas. Após certa insistência, Anders chega a mencionar o fato de que justamente naquele momento havia sido tornado público o financiamento e apoio indireto da CIA a “instituições culturais” na Alemanha Ocidental – entre elas, a FU – o que definitivamente lhe impossibilitava de se tornar membro da faculdade. (Carta de G. Anders a Margherita von Brentano, 25/02/1967 – Literaturarchiv der ÖNB, 237/B41.)
[xvii] Há um pequeno fragmento, em homenagem a Walter Benjamin, em que Anders fala sobre a relação entre “verdade e dicção”. G. Anders, “[Wahrheit und Diktion] (1950)” em Schreib doch mal…, cit., p. 181. Também na troca de cartas entre Adorno e Anders, há uma discussão sobre estilo e a relação com o leitor e o objeto que é de alto interesse filosófico e político. Vale notar que nem sempre essa tentativa de Anders de sair da prosa conceitual e “universalizar” seu pensamento de forma literária é bem sucedida. Há vários diálogos filosóficos de ficção, que parecem emular algo dos diálogos socráticos, que são simplesmente ruins, pedagógicos no mau sentido do termo, e que ficam muito aquém de seus ensaios. Nesse aspecto, Die Kirschenschlacht (e em alguma medida, também as Ketzereien) acaba sendo uma obra menor, por mais interesse que possa suscitar. Já em seus diários (Die Schrift an der Wand. Tagebücher 1941-1966), a matéria da experiência pessoal é finamente combinada com a reflexão filosófica (moral, histórica etc.) – mais um exemplo alemão do fragmento como forma. Em uma carta a Helmuth Plessner, Anders diz que seu “emprego de todas formas literárias tem intenção de precisão.” Günther Anders, Gut, dass wir einmal…, cit., p. 221.
[xviii] Cf. “Mandamentos para a Era Atômica” em Günther Anders, Hiroshima está em toda parte. São Paulo: Elefante (no prelo) e “O juramento de Hipócrates”, aqui p. 151.
[xix] Carta de Günther Anders a Hans Jonas, 24/09/1976. Literaturarchiv ÖNB, 237/B1494.
[xx] T. W. Adorno, “Educação após Auschwitz”. Educação e emcancipação. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 119.
[xxi] AdM II, p. 390.
[xxii] Cf. Anders, “A mais monstruosa das datas”, p. 183.
[xxiii] AdM I, p. 271.
[xxiv] Aqui, p. 110.
[xxv] G. Anders, “Kulturphilosophie”, ÖNB Literaturarchiv, 237/W52.
[xxvi] Aqui, p. 200.
[xxvii] Aqui, p. 119 e G. Anders, Die Antiquiertheit des Hassens. In: Kahle/Menzner/Vinnai (org.), Haß. Die Macht eines unerwünschten Gefühls. Reinbeck: Rowohlt, 1985. Em grande medida, Anders viu com algumas décadas de antecedência o que seria a guerra de drones. Sobre o assunto, ver também Gregoire Chamayou, Teoria do drone. São Paulo: Cosac & Naify, 2015.
[xxviii] Cf. G. Anders, Nós, filhos de Eichmann. São Paulo: Elefante, 2022. Embora ele evite o termo, diz Anders no discurso de quando recebeu o “Prêmio Adorno”: “A ‘alienação’ [Verfremdung] era o tema de todos nós, o tema de Marcuse, de Horkheimer, de Adorno, e meu. Certamente era diverso o acento que colocávamos.” Gaa, p. 173. Para o fenômeno da alienação, em algumas passagens Anders diz ser mais adequado o termo Verfremdung que o clássico Entfremdung (provavelmente devido ao prefixo Ent-, uma negação equivalente a “de-” ou “des-“ nas línguas latinas).
[xxix] Günther Anders, Kafka, pro e contra.Os autos do processo. São Paulo: Cosac & Naify, 2007.
[xxx] Em 2 de agosto de 1914, Kafka narra da seguinte forma o início da Primeira Guerra Mundial : “A Alemanha declarou guerra à Rússia. – À tarde, aula de natação.” Franz Kafka, Diários: 1909-1923. São Paulo: Todavia, 2021, p. 387.
[xxxi] Samuel Beckett, Fim de partida.
[xxxii] AdM I, 221.
[xxxiii] Idem.
[xxxiv] Sobre expectativas apocalípticas e abreviação do tempo, cf. Reinhart Koselleck, “Abreviação do tempo e aceleração. Um estudo sobre a secularização” in Estratos do tempo. Rio de Janeiro: Contraponto/Puc-Rio, 2014.
[xxxv] AdM I, p. 276.
[xxxvi] Com o termo “apocalíptico da contra-revolção”, Jacob Taubes designava Carl Schmitt. Cf. Jacob Taubes, Ad Carl Schmitt. Gegenstrebige Fügung. Berlin: Merve Verlag, 1987. Outro aspecto regressivo das visões apocalípticas se vincula também a certa pulsão suicida, distante de qualquer perspectiva de transformação social, que se expressa em fenômenos que vão desde a escatologia da nova extrema direita (analisada por Adorno já no fim dos anos 1960) até o novo fundamentalismo islâmico jihadista – em ambos os casos, expressões ideológicas de um colapso objetivo.
[xxxvii] Jean-Pierre Dupuy, Pour un catastrophisme éclairé. Quand l’impossible est certain. Paris: Seuil, 2002.
[xxxviii] Gew., p. 93.
[xxxix] Gew., p. 104
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