A assembleia antifascista em Buenos Aires

Imagem: Juan Manuel Ferraro
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Por ADRIÁN PABLO FANJUL*

Um sopro de ar puro parece ter enchido pulmões na Argentina, no meio à barbárie, e isso é novo

No sábado 26 de janeiro, uma convocação feita apenas 48 horas antes por coletivos LGBTQ reuniu uma inesperada multidão no Parque Lezama (Buenos Aires). Milhares de pessoas participaram de uma assembleia que sequer os próprios organizadores imaginaram que fosse ter essa repercussão. A empolgação era tão grande que chegou a cogitar-se sair em passeata naquela mesma noite. Foi decidida uma ampla mobilização nacional para 1º. de fevereiro.

A convocação tinha sido para organizar ações de resistência contra graves ameaças que Javier Milei produziu durante a semana em diversos espaços. Empolgado com a posse de Donald Trump, ele defendeu Elon Musk contra aqueles que criticaram sua saudação nazista. Para tanto, postou uma mensagem exaltada em que prometia perseguir adversários “até o último canto do planeta”. “Tremam, esquerdistas filhos da puta. A liberdade avança.”[i], postou. Dois dias depois, na sua fala na conferência de Davos, bradou contra os homossexuais identificando-os com a pedofilia, e contra as leis de paridade de gênero para empregos e funções, que chamou de “privilégios” para as mulheres.

Mesmo com essa presença multitudinária, a reunião no Parque Lezama conseguiu funcionar em ordem e com lista de inscritos, na tradição de assembleias populares e de bairro que, na Argentina, caracteriza processos de mobilização desde o início do século XXI[ii].

Participaram, além dos coletivos LGBTQ que tinham feito a convocação, agrupamentos de trabalhadores dos hospitais Posadas e Laura Bonaparte, que o governo de Javier Milei tenta fechar, de centros estatais dedicados a políticas de memória que também estão sendo desmontados, coletivos feministas, organizações de familiares de vítimas do terrorismo de Estado, representantes de assembleias de bairro, de cozinhas solidárias, de aposentados, de agrupamentos culturais e de murgas[iii]. Um “influencer” partidário de Javier Milei compareceu com intuito de provocar e foi expulso, tendo que se refugiar num carro da polícia.

O acontecimento despertou uma onda de entusiasmo, muito visível nas redes sociais e em diversos lugares públicos ao longo do final de semana, porque parecia que nada acontecia contra os retrocessos que o governo de ultradireita vem tentando impor em diversas frentes. O silêncio que tem acompanhado a desconformidade, contrastante com a forte mobilização opositora dos primeiros meses de Javier Milei em 2024, dava a impressão de um apogeu da trupe “libertária”, pouco explicável em um contexto de queda vertical do consumo e falta de recuperação da atividade econômica, mesmo com a diminuição da inflação nominal.[iv]

Nos últimos meses, as ações de desmonte de políticas públicas ganharam um viés especialmente provocador contra os movimentos de direitos humanos e contra os próprios agrupamentos de familiares de desparecidos durante a ditadura, um setor que consolidou, durante décadas, um notório apoio e respeito social. Em dezembro foi fechado o Centro Cultural de la Memoria “Haroldo Conti”, supostamente para reformular seu trabalho, mas com a demissão de quase todo o pessoal.[v]

Mais recentemente, na semana passada, houve uma provocação de menor envergadura, porém, extrema pela sua agressividade e pelos sentidos com que se relacionou na memória. Um grupo de jovens candidatos do partido oficial, no município mais rico da área metropolitana, gravaram e divulgaram um vídeo de autopromoção. Nele, aparecem apagando um mural da organização de filhos de desaparecidos, enquanto xingam e afirmam que todos os relatos sobre a ditadura são mentiras. O detalhe mais criminoso é que se deslocam para o “procedimento” em um modelo específico de carro dos anos 1970 da marca Ford, que usavam os comandos da ditadura militar para sequestrar pessoas e levá-las aos campos de extermínio.[vi]

Nesse contexto de ataques, a multidão reunida em tempo recorde e em plenas férias, e a decisão de uma mobilização unificada aparecem como um promissor alívio. Também entusiasmou o tom desafiador e sem medo com que a assembleia transcorreu e foi replicada nas redes e na mídia: o “tremam” e o “vamos por vocês” de Javier Milei foram refutados com altivez e sarcasmo em dezenas de formulações da criatividade popular.

A irrupção surpreendente parece ser o início de um “chega” e de uma tentativa de retomada das ruas, e efetivamente pode chegar a ser isso. Vale a pena, no entanto, ponderar alguns fatores que diferenciam esta conjuntura de outros “chega” da história recente Argentina, e inclusive do massivo processo de mobilização de janeiro a maio de 2024.

Esse processo retrocedeu notavelmente diante de uma brutal repressão, não vista na Argentina desde o retorno da democracia, que lembrou, na sua ferocidade, a do governo Sebastián Piñera contra a insurreição chilena de 2019. Continuou havendo manifestações de vários setores, principalmente de trabalhadores de empresas que estão fechando suas portas pela recessão, de funcionários estatais e de aposentados, porém, elas têm sido isoladas, com pouco apoio, e ficando na calçada para não serem reprimidas. Concomitantemente, as altas lideranças sindicais deixaram de lado qualquer tipo de medida de protesto e se empenharam em negociações com o governo, e, mesmo obtendo muito pouco, não repetiram a convocação de paralisações gerais. Não casualmente, um dos alvos de crítica da assembleia de 25/1 foram essas lideranças.

Por isso foi tão importante que, nesse dia, um setor que não estava mobilizado tenha conseguido convocar outros que sim estão. E a encruzilhada se abre precisamente nesse ponto, porque é previsível que o retrocesso dos últimos meses já mostre, como contraparte, algum avanço da prédica oficial nas mentalidades. Precisamente, o que Piñera Milei tenta é desviar a atenção da grave situação econômica, atribuindo a pobreza da população aos “privilégios” que supostamente teriam desfrutado o feminismo, os LGBTQ, os trabalhadores estatais, os familiares de desparecidos e todos os inimigos criados no seu discurso.

 Como será o direcionamento dos movimentos reunidos no Parque Lezama ao conjunto da população? Privilegiarão o que pode uni-los a outros setores desfavorecidos pelo governo, ou ficarão centrados na própria pauta? No parque houve sinais muito positivos, como a defesa, por parte da maioria da assembleia, de que os partidos políticos presentes (por sinal, só os de esquerda) pudessem expressar-se, a ovação às Madres de Plaza de Mayo e às enfermeiras dos hospitais. E houve particular lucidez na palavra de algumas lideranças LGBTQ, como a do dirigente transmasculino Ese Montenegro: “Javier Milei constrói discursivamente um inimigo, porque seu plano econômico só fecha com crueldade, com a fome de todes, embora apenas aponte para nós.”[vii]

Na direção contrária desses sinais positivos, há potencialmente dois riscos. Um é a proeminência, inclusive discursiva, de reivindicações que percam a conexão que a luta pela igualdade de gênero necessariamente tem com a busca de menos desigualdade socioeconômica. No Parque Lezama, isso não aconteceu, mas se trata de uma disputa dentro dos movimentos no mundo todo, e também na Argentina.

Outro é que setores da direita política que começam a distanciar-se do rumo abertamente fascista da gestão de Javier Milei, mas muito interessados em que seu plano econômico continue, estendam os braços ao movimento para que se mantenha nos trilhos da “diversidade” consentida, sem questionar nada do brutal aumento da desigualdade e sem se misturar com lutas de trabalhadores, aposentados e movimentos pela memória. Nem passou um dia da grande assembleia e já há gestos nesse sentido: o governador da Ciudad Autônoma de Buenos Aires, Jorge Macri, da direita hoje aliada do governo, apareceu na mídia contestando os ditos de Javier Milei como “uma brutal injustiça”, e declarando que “a diversidade é um patrimônio da cidade”.

São os riscos colocados. Mas um sopro de ar puro parece ter enchido pulmões na Argentina, no meio à barbárie, e isso é novo. Aguardemos, sem tremer.

*Adrián Pablo Fanjul é professor do Departamento de Letras Modernas da USP.

Referências


Bonnet, A. La insurrección como restauración. El Kirchnerismo, 2002-2015. Buenos Aires: Prometeo, 2015.

Iñigo Carrera, N.; Cotarelo, M. “Génesis y desarrollo de la insurrección espontánea de diciembre de 2001 en Argentina.” In: Caetano, G. (comp.) Sujetos sociales y nuevas formas de protesta en la historia reciente de América Latina. Buenos Aires: CLACSO, 2006, p. 49-92.

Notas


[i] Em espanhol, “tiemblen, zurdos hijos de puta. La libertad avanza.” Na Argentina, “zurdo/a” (“canhoto/a”) se emprega para denominar as pessoas de esquerda. Para ver a postagem completa de Javier Milei: https://elpais.com/argentina/2025-01-22/milei-defiende-el-saludo-con-el-brazo-en-alto-de-elon-musk-y-amenaza-zurdos-hijos-de-puta-tiemblen.html

[ii] As assembleias de bairro, tanto em regiões periféricas como da classe média de grandes cidades, foram de grande importância no processo insurrecional de dezembro de 2001 (Iñigo Carrera; Cotarelo, 2006), e no processo de mobilização posterior, decrescendo só com a nova estabilização econômica e política sob os governos de Duhalde e de Kirchner (Bonnet, 2015). A rejeição contra as primeiras medidas de Javier Milei reativou, depois de vinte anos, as assembleias de bairro, bem como outras formas de organização dos anos prévios ao levante, como os coletivos de aposentados. O ressurgimento resultou enfraquecido nos últimos meses, devido ao retrocesso que explicaremos depois, mas não se dispersou.

[iii] A “murga” é um tipo de formação carnavalesca originária do Uruguai, muito implantada em cidades argentinas próximas do Rio da Prata, como Buenos Aires.

[iv] Ver a respeito esta matéria do jornalista de economia David Cufré: https://www.pagina12.com.ar/799352-el-verso-de-la-v

[v] https://construirresistencia.com.br/milei-fecha-memorial-onde-funcionava-centro-de-tortura/

[vi] https://www.perfil.com/noticias/actualidad/libertarios-de-san-isidro-borran-murales-de-abuelas-de-plaza-de-mayo-en-un-falcon-verde.phtml

[vii] https://www.pagina12.com.ar/799528-el-orgullo-es-mas-fuerte-una-multitud-le-dijo-basta-a-milei


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