Por SAMIR GANDESHA*
A padronização que está no cerne da indústria cultural harmoniza-se perfeitamente com um atributo-chave das personalidades autoritárias, a saber: “estereotipia” e “desejo infantil por repetição infinita e inalterada”
A propaganda fascista é construída em torno do conceito básico do “‘pequeno-grande homem’, de um “sujeito” que sugere tanto onipotência quanto a ideia de que vem a ser um “tipo” simples, de sangue vermelho e imaculado, alguém do próprio povo”.
É dessa forma que Theodor Adorno apresenta o conceito norteador da “personalidade autoritária”: aquele tipo de personalidade caracterizado tanto pela subordinação ao “forte” (barbeiro suburbano) quanto pela dominação sobre o “fraco” (King Kong). Nisso, a estrutura do caráter social reproduz a contradição que está no cerne da sociedade burguesa entre uma autonomia ou liberdade em teoria, mas heteronomia e falta de liberdade na prática.[i]
De acordo com Theodor Adorno, a imagem do “pequeno-grande homem” responde “[ao] desejo duplo [do seguidor] de se submeter à autoridade e de ser a própria autoridade. Isso acontece em um mundo no qual o controle irracional é exercido, mesmo se a convicção interna já se perdeu, por meio do esclarecimento universal. As pessoas que obedecem aos ditadores sentem, ademais, que estes últimos são supérfluos. Eles reconciliam essa contradição por meio da suposição de que eles próprios são opressores implacáveis”.
Isso se expressa perfeitamente no lema de Hitler “Verantwortung nach oben, Autorität nach unten”, ou seja, “responsabilidade com quem que está em cima, autoridade com quem está em baixo”. Esse mote, veja-se, expõe a essência da ambivalência inerente à personalidade autoritária típica, ou seja, ela se constitui o “sujeito” como sadomasoquista. No livro A personalidade autoritária, Theodor Adorno assevera que “a identificação do caráter ‘autoritário’ com a força é concomitante com a rejeição de tudo que está ‘em baixo’.”
Quanto mais supérflua for a ideia do ditador nas sociedades formalmente democráticas — eis que são fontes de desigualdades crescentes justamente por estarem baseadas na propriedade privada e no controle dos meios de produção —, mais ênfase será colocada precisamente na qualidade ersatz[ii] do ditador.[iii] Ora, essa falsidade, ainda que descolada de contexto, é a mesma que existe na casca oca das “congregações” artificialmente construídas por meio das instituições religiosas.
A hierarquia posta pela religião, despojada de sua essência espiritual, é copiada pelo fascismo. Eis que forja uma libido negativa quando põe ênfase na distinção entre “ovelhas e cabras”, gente de dentro e de fora do grupo de mesma fé. Em outras palavras, se a ênfase no amor dentro da congregação religiosa, baseava-se também no ódio em relação àqueles que permaneciam fora da fé, agora, com o fascismo, a corporação criada está despojada até mesmo da aparência de ágape ou camaradagem. Ela tem por função quase exclusiva produzir uma integração negativa [ou seja, que assim se define apenas por ser contra os outros].
Isso permite ao fascismo fazer um “truque identitário”, ou seja, elidir as diferenças dentro do grupo (mantendo, assim, a hierarquia existente) ao mesmo tempo em que enfatiza as diferenças entre o grupo e aqueles que permanecem fora dele. Tal truque culmina no que Adorno chama de “igualitarismo regressivo”: os prazeres individuais devem ser igualmente negados para todos os membros da “comunidade nacional”.
O vínculo social é, por assim dizer, solidificado por meio de uma introjeção compartilhada de sacrifício ou de renúncia à aspiração a uma vida sensualmente realizada. As repetidas e hiperbólicas demandas dos nazistas por sacrifício pela “Pátria”, que ecoam em todas as formas de nacionalismo, particularmente quando se trata de guerra, confirmam isso.
Theodor Adorno mostra uma técnica-chave pela qual a propaganda fascista enfatiza a diferença entre os grupos internos e externos: a saber, o uso repetido de imagens de animais inferiores, como insetos e vermes, para caracterizar estrangeiros, em particular os judeus e os refugiados. Baseando-se não apenas em Freud, mas também em observações de Otto Rank, considera que, no simbolismo dos sonhos, os insetos e os vermes se aplicam aos irmãos mais novos, na verdade, aos bebês indesejados.
Tal simbolismo, portanto, quase não esconde uma catexia negativa. Ao mesmo tempo, no entanto, os irmãos e irmãs que compõe o grupo fascista se identificam uns com os outros por meio de um objeto de amor compartilhado, a saber, o líder. Portanto, eles devem direcionar ou projetar essa catexia negativa para fora, para além do grupo.
Aqui, pode-se argumentar, tal como Max Horkheimer e Theodor Adorno o fizeram na Dialética do esclarecimento, que não é apenas o desprezo experimentado pelos próprios seguidores que é projetado para fora por meio de imagens de animais inferiores; isso também ocorre, na propaganda fascista, por meio de uma evocação direta de tropos poderosos e afetivamente carregados de abjeção. Como Julia Kristeva sugere, isso se encontra associado, em última análise, à relação pré-edipiana com o corpo materno e, portanto, com a transgressão de uma fronteira e, assim, em consequência, com a produção de repulsa.
Mas qualquer coisa natural que não tenha sido absorvida como coisa útil ao passar pelos canais de limpeza da ordem conceitual — o guincho do estilete na ardósia que faz os dentes rangerem, o haut goût que traz à mente sujeira e corrupção, o suor que aparece na testa do diferente — tudo o que não é totalmente assimilado, ou infringe as regras nas quais o progresso dos séculos foi sedimentado, é sentido como intrusivo e desperta uma aversão compulsiva.
A “aversão compulsiva” — ao que é tomado como abjeto — evocada tem a ver com o medo de autodissolução. Isso constitui o impulso para eliminar o não idêntico ou o que não pode ser conceitualmente apreendido sem resto; na tentativa de colocar a natureza sob o domínio do controle técnico e da maestria, qualquer resíduo de natureza descontrolada ou incontrolável (não idêntica) que permaneça provoca uma resposta automática de repulsa. Os próprios sinais de destrutividade que o fascismo incorpora substantivamente são projetados para fora em suas vítimas; o fascismo, nesse sentido, é a performance paranoica do vitimizador que assume compulsivamente o papel de vítima.
A abjeção é empregada como uma técnica propagandística, em outras palavras, para retratar o outro como um contágio perigoso que ameaça a saúde e a própria vida do corpo político e deve ser excluído espiritual e fisicamente, pela força se necessário. Traços de “natureza” ofensiva, mas secretamente desejada, são projetados no estranho que se tornam seu estigma. Uma vez assim projetado, o “outro” pode então ser contido, excluído e, em casos extremos, finalmente “liquidado” ou “exterminado” como pragas ou vermes. Por meio do processo de extirpar o não idêntico, a identidade da “comunidade” etnonacionalista é confirmada e estabilizada.
Theodor Adorno aborda a questão de como os agitadores chegaram a um conhecimento tão preciso da psicologia de grupo sem ter os meios intelectuais para acessá-la. A resposta é que, dada a identidade psicológica entre o líder e os liderados, o agitador acessa a psicologia de massa por meio de sua própria psicologia. A principal diferença, porém, é que o primeiro, mesmo se “não tem qualquer superioridade natural”, demonstra “uma capacidade de expressar sem inibições o que está latente neles”.
O líder autoritário é um tipo de personalidade “oral” que, de acordo com Freud, busca gratificação por meio de comer, beber e outras atividades orais, incluindo falar. O tipo oral agressivo é hostil e verbalmente abusivo em relação aos outros. O agitador demonstra uma “capacidade de falar incessantemente e enganar o outro”. A natureza incessante de tal discurso o esvazia de sentido e o torna mágico; o orador lança um feitiço sobre seus ouvintes e brinca com a “herança arcaica” dos seguidores.
O poder que ele exerce é, paradoxalmente, indicativo de sua impotência na medida em que sugere fraqueza do ego em vez de força, expondo seus impulsos inconscientes. No entanto, ao mesmo tempo, isso joga com a própria imagem do líder como a ampliação do próprio ego do seguidor. “Para atender com sucesso às disposições inconscientes de seu público”, argumenta Adorno, “o agitador, por assim dizer, simplesmente volta o seu próprio inconsciente para fora”.
O ajuste entre as técnicas do agitador e a “base psicológica dos indivíduos que o ouvem” é auxiliado por uma grande transformação na sociedade moderna contemporânea. Eis que a consolidação da indústria cultural como um todo contribui para uma crescente passividade do indivíduo, ou seja, para o declínio de sua capacidade de fazer experimentos. A padronização que está no cerne da indústria cultural harmoniza-se perfeitamente com um atributo-chave das personalidades autoritárias, a saber: “estereotipia” e “desejo infantil por repetição infinita e inalterada”.
O elo entre a alta cultura europeia e a indústria cultural, para Theodor Adorno, pode ser localizado no leitmotiv facilmente recordável que foi produzido pelo compositor protofascista Richard Wagner. A sua música monta “partes componentes como se monta produtos em uma fábrica: trata-se de um fordismo musical”. Para mobilizar as massas contra seus próprios interesses, a propaganda fascista tende a contornar o “pensamento discursivo”, “mobilizando forças irracionais, inconscientes e regressivas”. Nisso, é grandemente auxiliada pela indústria cultural que produziu, ao se desenvolver, uma diminuição expressiva da capacidade humana de autonomia e de espontaneidade.
*Samir Gandesha é professor da Universidade Simon Fraser, Vancouver, Canadá.
Excertos do artigo “A composite of King Kong and a suburban barber — Adorno’s Freudian theory and pattern of fascist propaganda”. In: Specters of fascism: historical, theoretical and international perspectives. Londres, Pluto Press, 2020.
Tradução: Eleutério F. S. Prado.
Nota do tradutor
[i] Eis que essa contradição engendra um “sujeito” fraco/forte, ou seja, que é fraco diante das forças do sistema econômico, mas que tem de ser forte para vencer na vida
[ii] Ersatz é uma palavra alemã cujo significado literal é substituto ou sucedâneo. Embora seja usada como adjetivo em inglês, em alemão Ersatz só existe como substantivo ou em aglutinação com outras palavras tais como Ersatzteile (peças de substituição) ou Ersatzspieler (jogador suplente).
[iii] Eis que só a duplicidade ditador/massa — é assim que a coisa se configura para o sujeito fraco/forte — pode resolver o problema que o indivíduo enfrenta sem sucesso.
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