Ficção meritocrática – executivos brasileiros e o novo capitalismo

Imagem: Michelangelo Pistoletto
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Por FABRÍCIO MACIEL*

Apresentação do organizador da coletânea recém-lançada

A reprodução, a naturalização e a legitimação do capitalismo se encontram entre os temas mais urgentes para o pensamento crítico atual. Neste exato momento, acabamos de enfrentar uma cruel pandemia, que desafiou a ciência e toda a nossa capacidade em se perpetuar como humanidade digna. Como sairemos daqui ainda é um enigma que nos perseguirá e tirará o sono por algum tempo. Como chegamos é uma pergunta para a qual a ciência social de qualidade pode oferecer alguma resposta.

Nesse cenário, o negacionismo cognitivo, afetivo e político se apresenta como nosso maior inimigo, que precisa ser enfrentado urgentemente, com pesquisa empírica e teoria sociológica articuladas. Esse é um dos grandes desafios que procuramos enfrentar em Ficção meritocrática – executivos brasileiros e o novo capitalismo, a partir dos resultados empíricos da pesquisa que o embasa.

Nosso objetivo central é compreender a reprodução, a naturalização e a legitimação do capitalismo contemporâneo no Brasil atual, que definiremos aqui como um “novo capitalismo”, considerando sua lógica econômica específica e suas bases ideológicas e morais modificadas, em comparação com períodos anteriores. Para tanto, partiremos da análise de nosso material empírico, dividida em três eixos: a origem social, o estilo de vida e o posicionamento político de executivos brasileiros de diversos níveis. Tomamos a expressão “novo capitalismo” emprestada de Richard Sennett (2006b), em sua tentativa de definir o atual sistema global no qual vivemos.

Para o autor, a principal característica da cultura deste capitalismo atual é a ideologia da flexibilidade, o que na verdade esconde a rigidez da hierarquia de classes, que agora se estabelece como nunca. Em sua acurada análise, Richard Sennett (2006b) considera como principal efeito humano desse novo capitalismo aquilo que ele define como “corrosão do caráter”.

Com esse conceito, o autor procura dar conta do perverso individualismo e da perda de capacidade em agir coletivamente e produzir solidariedade, que surge como efeito do mito da flexibilidade e da consequente promessa de felicidade do novo capitalismo. Segundo a ideologia da flexibilidade, basta que cada um de nós esteja disposto a se adaptar às exigências atuais do sistema, ou seja, “vestir a camisa da empresa”, como já alertava André Gorz (2004), para que sejamos “empregáveis” e, com isso, consigamos nosso “lugar ao sol”. Nada é mais perverso e fantasioso.

Neste momento, o novo capitalismo digital e de plataformas mostra sua verdadeira face. Empresas como a Uber e o I-Food, que já se encontram entre as que mais empregam no Brasil, ainda que procurem sistematicamente negar qualquer vínculo empregatício, colocam-se como “intermediárias” entre uma elite e uma classe média, cada vez mais enjauladas em sua condição de privilégio, e uma massa de uma nova “ralé digital”, a qual se espreme e se arrisca nas ruas para tentar garantir diariamente a sua dignidade.

Esse mesmo novo capitalismo — perverso, indigno, predatório, insensível e hipócrita — procura mostrar-se como seu extremo oposto, ou seja, um capitalismo do bem, sustentável, politicamente correto, empregador, inclusivo, preocupado com a desigualdade e as questões sociais. Ao longo deste livro, mostraremos como e por que esse novo capitalismo precisa o tempo inteiro sustentar esse discurso totalmente oposto à realidade, bem como o papel que os executivos brasileiros exercem na construção dessa grande fantasia.

Neste ponto, a obra sociológica mais importante é, sem sombra de dúvidas, o grandioso livro de Boltanski e Chiapello (2009) O novo espírito do capitalismo, uma obra ainda pouco compreendida no Brasil. Diferente de algumas leituras, especialmente sobre a obra individual de Boltanski, com ênfase na discussão, por vezes estéril, sobre o que é “teoria crítica” e “teoria da crítica”, aqui procuraremos ressaltar o que de fato parece mais urgente neste importante trabalho. O que ficou claro para nós, ao longo de sua leitura, é que seu objeto central se conforma na transição de um capitalismo explicitamente desigual, o qual sofreu sérias críticas sociais e estéticas – como definem os autores, especialmente a partir da década de 1960 –, para um novo capitalismo, que tem como uma de suas características centrais a capacidade e necessidade de engolir as críticas e mostrar-se como um sistema social justo, honesto, tolerante, inclusivo e sustentável.

Essa é a tonalidade da fantasia conscientemente montada que encontramos em inúmeras falas de nossos entrevistados, além de outras fontes às quais recorremos ao longo do estudo como, por exemplo, as revistas Exame, Você S.A. e Forbes Brasil, defensoras explícitas do que estamos chamando aqui de “mentalidade do mercado”, como veremos adiante.

Entretanto, nossa análise ficaria incompleta e abstrata demais se nós não procurássemos identificar os indivíduos e as classes sociais específicas envolvidas ativamente na reprodução, na naturalização e na legitimação deste novo capitalismo em toda a sua perversidade. Um dos principais ensinamentos que toda a sociologia crítica nos lega desde seus clássicos é que nenhuma “estrutura social” em abstrato se reproduz e eterniza sem a ação de indivíduos, ou seja, pessoas reais com sentimentos e ambiguidades, que se tornam suportes e, ao mesmo tempo, atores ativos na construção e na reprodução dos padrões de mentalidade e comportamento vigentes nas sociedades em que habitam.

Toda a discussão sociológica, ao longo do século XX, que procurou dar conta da síntese entre estrutura e ação e, ao mesmo tempo, entre indivíduo e sociedade, passando por escolas distintas como o funcionalismo, o interacionismo simbólico e o marxismo freudiano da Escola de Frankfurt, buscou situar o indivíduo dinamicamente diante das estruturas sociais.

Com isso, o que aprendemos é que precisamos identificar a ação real de indivíduos e classes sociais na reprodução das sociedades sem reduzi-la a maniqueísmos, o que é uma tentação constante no atual cenário político, mas também sem deixar que indivíduos e classes sejam apagados pelo abstracionismo teórico das “estruturas”. Em termos simples, indivíduos e classes sociais podem ser responsabilizados diferencialmente pelos rumos da sociedade na qual vivem, dependendo das posições de poder que eles ocupem. Não por acaso, nossa principal referência e influência ao longo da pesquisa nesse aspecto foi a obra do sociólogo norte-americano Charles Wright Mills.

Autor bastante conhecido e lido no Brasil, especialmente no passado, Wright Mills atualmente se tornou um autor familiar do público acadêmico brasileiro particularmente por seu texto “Do artesanato intelectual”, um apêndice de um de seus grandes livros, intitulado A imaginação sociológica (1975b), sem dúvidas um texto com o qual muito aprendemos. Entretanto, o Mills que recuperamos aqui é o grande teórico das classes sociais nos Estados Unidos na década de 1950, conhecido de fato apenas por especialistas sobre o tema das classes no Brasil. Seus dois grandiosos livros, intitulados A nova classe média (1976) e A elite do poder (1975a), se lidos em conjunto, conformam uma das mais profundas interpretações sobre a cultura capitalista ao longo de todo o século XX.

Para Charles Wright Mills, no livro sobre a nova classe média, que ele vai tematizar a partir de seu símbolo central, o white collar, ou seja, o “colarinho branco”, era importante perceber essa nova classe tanto como um objeto empírico novo quanto em seu significado profundo. Para ele, era através dela que se poderia ver toda a mudança cultural do capitalismo em seu tempo. O mote central de sua análise, o que é de fundamental importância para nossa pesquisa, é que a busca por prestígio, poder e status se coloca como a principal meta moral do capitalismo, imposta não apenas para a elite, como ele verá depois, mas também para as classes médias, inclusive em suas camadas mais baixas.

Tal percepção é decisiva, no sentido de compreendermos a “moralidade do capitalismo”, que se constrói especialmente nos Estados Unidos, nação que evoca para si como nenhuma outra o símbolo de sociedade exemplar, o que pode ser visto através de slogans como o american way of life. Como veremos ao longo deste livro, tais metas se colocam de maneira arbitrária pela cultura capitalista, compondo o cerne do que chamaremos aqui de “mentalidade do mercado”.

Com isso, todos os executivos que entrevistamos e analisamos, desde os “altos diretores”, ou seja, as “altas rodas” das quais falava Wright Mills, que tomam de fato as decisões sobre os rumos do capitalismo, até as camadas mais baixas, ou seja, “a massa de gerentes”, vão reproduzir essa mentalidade e a busca incessante, por vezes insana, como veremos, por tais metas, muitas vezes humanamente inatingíveis. Compreender esse fato é de grande importância pois, ao longo da pesquisa, entendemos que os executivos, principalmente aqueles do alto escalão, são as pessoas que mais produzem e reproduzem o “espírito do capitalismo” atual.

Nos termos de Pierre Bourdieu, um dos autores que mais influenciaram esta pesquisa inicialmente, eles são as principais “estruturas estruturantes” e, ao mesmo tempo, “estruturas estruturadas” do novo capitalismo do bem e politicamente correto. Não por acaso, Pierre Bourdieu foi um dos principais autores que melhor sintetizaram a relação entre estrutura e ação individual. Entretanto, para sairmos do plano puramente teórico e compreendermos na prática essa relação, precisamos ver com pesquisa empírica quais atores produzem e reproduzem especialmente quais estruturas.

No geral, os executivos são os principais responsáveis pela construção objetiva e consciente da cultura e da moralidade do capitalismo em nossos dias, tendo suas ações consequências muitas vezes perversas e irreversíveis. Tomemos apenas um exemplo bastante emblemático: no crime político, econômico, humano e ambiental de Brumadinho, uma réplica do crime de Mariana, os executivos da Vale sabiam de antemão do risco de fratura da barragem e até quantas pessoas aproximadamente poderiam morrer.

Quando alguns dos principais executivos da Vale e da Tüv Süd, empresa alemã de consultoria responsável por relatórios e pareceres sobre a segurança de casos como o de Brumadinho, foram denunciados por crime doloso pelo Ministério Público de Minas Gerais, as duas empresas procuraram dissociar a sua imagem do crime em questão.[i] O presidente da Vale no momento, um reconhecido alto executivo no cenário brasileiro que ironicamente assumiu a empresa com o lema “Mariana nunca mais”, foi acusado de negligência e contratou uma equipe privada de excelentes advogados para sua defesa. Essa é a verdadeira face do capitalismo do bem e politicamente correto, apresentado pelo discurso de fachada do mundo empresarial, que também analisaremos ao longo do livro.

Por fim, procuraremos mostrar aqui como a fachada discursiva desse novo capitalismo se conforma como uma verdadeira “ficção meritocrática”, no sentido de esconder e negar sistematicamente sua verdadeira face, ou seja, a de um capitalismo que se especializou na perpetuação perversa de uma desigualdade de classes ainda mais invisível do que em períodos anteriores. Ao mesmo tempo, a nova dominação social capitaneada pelos executivos engana o público sistematicamente, quando afirma absorver todas as demandas sociais de nosso tempo.

*Fabrício Maciel é professor de teoria sociológica na Universidade Federal Fluminense. Atualmente é professor visitante na Universidade de Jena (Alemanha).

 

Referência


Fabrício Maciel (org.). Ficção meritocrática: executivos brasileiros e o novo capitalismo. Campos dos Goytacazes, EdUENF, 2022, 244 págs.

 

Bibliografia


BOLTANSKI, L; CHIAPELLO, È. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

BOURDIEU, P. A distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre: Zouk, 2007.

GORZ, André. Misérias do presente, riqueza do possível. São Paulo: Annablume, 2004.

MILLS, C. W. A elite do poder. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975a.

MILLS, C. W. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975b.

MILLS, C. W. A nova classe média. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976.

SENNETT, R. A cultura do novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2006b.

 

Nota


[i] Conferir a reportagem sobre o fato em https://brasil.elpais.com/brasil/2020-01-21/ex-presidente-da-vale-e-mais-15-sao-denunciados-por-homicidio-doloso-na-tragedia-de-brumadinho.html

 


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