Por RAFAEL DE ALMEIDA ANDRADE*
A bondade aparece como um valor mediador entre indivíduo e gênero que extrapola as relações normativas, o em-si da sociedade burguesa
“Não desejei nem desejo nada mais, do que viver sem tempos mortos” (Simone de Beauvoir)
O ensaio que escrevo tem como único e exclusivo objetivo a “vida”. A vida à qual me refiro, é a vida autêntica, aquela na qual os homens possam estabelecer uma relação de essencialidade para além da reificação e alienação do modo de vida burguês. O texto parte de alguns apontamentos deixados pelo filósofo húngaro György Lukács, sobre ética, vida e bondade. Para o György Lukács da juventude, em especial de 1911, no diálogo Sobre a pobreza de espírito – o “homem bom não mais interpreta a alma do outro, decifra-a como a si
mesmo, pois se converteu no outro.
Por isso, a bondade é milagre, a graça e a redenção – é o “reino dos céus que desce à terra”.[i] O homem bom se relaciona com o outro de maneira imediata, a bondade (Güte) é o meio de ultrapassar o caos de uma vida estranhada, não de maneira conceitual, isso é, puramente formal, mas de maneira viva e real, pois reconheço o outro em mim mesmo é o “reencontro do homem com sua verdadeira pátria”.[ii]
O reencontro com sua verdadeira pátria é a recomposição da unidade entre indivíduo e comunidade (gênero humano), a bondade é um voltar-se à vida, é a comunhão com seu semelhante. Dessa maneira, a virtude da bondade reside na relação com o outro. Se no mundo burguês e sua ética formal concebem os indivíduos isolados e apartados uns dos outros, a bondade é “capaz de implodir as formas”[iii]. Assim, aqueles que possuem a qualidade ontológica da bondade “não se deixa escravizar pelo individualismo, mas transcendendo os limites do eu, faz seus os sofrimentos e as alegrias dos outros seres humanos”.[iv]
A sociedade burguesa é a sociedade das obrigações e deveres morais, da
vida protocolar, das convenções sociais e suas instituições, em que a vida deve ser controlada. O jovem György Lukács, principalmente após a superação da sua ética trágica, sintetizada em Metafísica da tragédia (1910), concebe o sujeito enquanto nós, como coletividade social (humanidade), que se encontra em crise – atomizada, cindida pelo modo de vida burguês.
Podemos dizer que a edificação da vida autêntica está ligada a uma ética universal, no qual visa a “humanização do mundo” e esta ética precisa necessariamente postular o ser humano como unitário, genérico.[v] A ética burguesa do dever é individualista, a bondade é comunitária, e está intimamente ligada em colocar em movimento uma práxis positiva que ultrapasse o meramente individual, pois percorre um caminho que coloca em suspensão toda contingência e pode se transformar em patrimônio humano.
O modo de vida burguês impõe em nossas relações diversas barreiras que dificultam cada vez mais o estabelecimento de vínculos sociais autenticamente humanos, a sociedade burguesa se estabelece por uma cisão abstrata entre indivíduo e gênero, ser sensível e ser inteligível, sensibilidade e razão – o velho dualismo kantiano entre o homo phaenomenon e homo noumenon. A objetividade abstrata imposta pelas relações burguesas se apresenta de forma deslocada da atividade do homem, e que “[…] uma consequência imediata disto, de o homem estar estranhado do produto de seu trabalho, de sua atividade vital e de seu ser genérico é o estranhamento do homem pelo próprio homem”.[vi]
Esse estranhamento do homem pelo próprio homem, produto das relações de produção, pode ser constatado facilmente nas relações cotidianas, onde o homem burguês é o homem solitário em busca de sentido, as experiências desses homens são sempre aproximativas, presas em si mesmas, é o mundo solipsista.
György Lukács em seu projeto inacabado – Anotações sobre Dostoiévski 1914-15 – encontra na comunidade russa um contraponto à ética formalista do mundo burguês ocidental, no qual os personagens no seu agir transgridem as convenções e as normas sociais (primeira ética) por meio da personificação de uma segunda ética.György Lukács está à procura de uma ética do agir, sobre a qual se possa instaurar um mundo novo, para além do mundo burguês, um mundo no qual as almas podem encontrar novamente conexão umas com as outras. Assim, a bondade aparece como um agir que extrapola a pura relação normativa e artificial do espírito objetivo e consegue restabelecer uma relação essencial, real e efetiva, para além das relações alienadas e reificadas.
Essas ações instauram uma realidade em que a relação entre eu e o outro não é abstrata, mas real e humana. A segunda ética é posta pela ação dos indivíduos que procuram a si mesmos, mas não é um caminho solitário, pois só é possível encontrar a si mesmo quando a alma se conecta com outras almas, isso é, quando encontra no seu semelhante a si mesmo. Dessa maneira, como nos aponta Soria (1976)[vii] a partir de Dostoiévski, Lukács não estabelece uma simples relação de “estar-com-os-outros”, mas de “ser-com-os”, isso é, o homem em profunda relação com seu semelhante, permitindo uma relação na qual, “a essência atemporal da alma se manifeste com um vínculo supratemporal da alma”[viii], surgindo assim um novo tipo de relação, uma relação essencial, na qual é possível estabelecer uma conexão de uma alma à outra, ou seja, aquilo que György Lukács propõe em Da pobreza de espírito: o “reencontro do homem com sua verdadeira pátria”, uma relação humanamente humana.
Para nós, a bondade está intimamente ligada à emancipação humana e a especificidade do gênero humano para-si. Uma sociedade plenamente emancipada só pode existir e se manter a partir da transformação objetiva do mundo, porém o para-si do gênero humano, isso é, a prática conscientemente visada se dá no interior da própria reificação capitalista, a práxis ética está atrelada à consciência de classe e a organização política e devem objetivar constantemente a “democracia da vida cotidiana”[ix]. A classe trabalhadora não tem nenhuma utopia a priori que possa ser introduzida por decreto, somente através da luta e de um longo processo histórico de transformações dos contextos sociais e dos homens é que se podem libertar os elementos em gérmen da nova sociedade.[x]
A alienação e a reificação do modo de vida burguês não é uma doença que se cura com doses de remédio de oito em oito horas, mas demanda um processo no qual se coloca em movimento uma práxis consciente de transformação objetiva e subjetiva, e que tem como núcleo a ação dos homens diante de alternativas postas.
A bondade aparece como um valor mediador entre indivíduo e gênero que extrapola as relações normativas, o em-si da sociedade burguesa, e coloca em marcha um dever-ser de uma sociedade pautada pela comunidade, equidade, solidariedade e pela fraternidade que se contrapõe à barbárie, a indiferença e o individualismo. A ação ética tem como núcleo central a autoconsciência da unidade indissociável entre indivíduo humano e gênero humano, ou seja, é a autoconsciência de que ele não está apartado da totalidade social, mas é produto e produtor da totalidade social. Assim Lukács ressalta: “Tarefa de uma ontologia materialista tornada histórica é […], mostrar que o homem, como simultaneamente produtor e o produto da sociedade, realiza em seu ser-homem algo mais elevado que ser simplesmente exemplar de um gênero abstrato, que o gênero – nesse nível ontológico, no nível do ser social desenvolvido – não é mais uma mera generalização à qual os vários exemplares se liguem ‘mudamente’; é mostrar que esses, ao contrário, elevam-se até o ponto de adquirirem uma voz cada vez mais claramente articulada, até alcançarem a síntese ontológico-social de sua singularidade, convertida em individualidade, com o gênero humano, convertido neles, por sua vez, em algo consciente de si”.[xi]
Segundo György Lukács a corretude da consciência socialista é acima de tudo a consciência do caminho que deve seguir, “a finalidade em seus princípios gerais, seus respectivos meios na sua particularidade, específica e frequentemente mutável, e dos próximos passos na sua peculiaridade”[xii]. Dessa maneira, a bondade está inserida no campo de ação concreta, isso é, uma tomada de posição perante o mundo, no qual “dentro de cuja esfera concreta as decisões concretas são tomadas pelo ser humano, e uma antinomia concreta que o induz a fazer escolhas responsáveis”[xiii].
Assim, a bondade pressupõe uma responsabilidade ao indivíduo, pois implica a práxis e não se limita a mera negação, mas coloca em movimento uma decisão que tem como fundamento o gênero humano, no qual “contém inseparavelmente um antídoto social, o dever de impulsionar um contra-poder social em oposição”[xiv]. Para György Lukács, “uma vez que a finalidade posta é provocar ações sociais concretas por parte do maior número de pessoas possíveis, os meios utilizados e o destino das pessoas envolvidas são igualmente objetos da responsabilidade”.[xv]
Para o filosofo húngaro,[xvi] o combate às relações abstratas só pode ser travado por meio das posições histórico-sociais das alternativas que surgem na vida humana, e esse combate entra efetivamente em uma fase intensa, quando os homens são colocados entre alternativas morais conflitantes, no qual “tenham que tomar uma decisão e sejam obrigados e estejam dispostos a tirar todas as consequências disso. Dessa forma, a esfera moral supera a si mesma no conflito”[xvii], isso é, a esfera moral supera a si mesma quando irrompe um encontro, uma conexão entre eu e o outro em sua alteridade, entre indivíduo e sociedade, tornando-se uma ação ética.
Assim, a ação ética tem como fundamento: “[…] expressar a integralidade de suas aspirações e a exteriorizar verdadeiramente sua personalidade (as grandes ações éticas ou as obras de arte maiores são exemplos privilegiados destas objetivações superiores nas quais se efetiva a aspiração à autodeterminação do gênero humano)”.[xviii]
Entendemos que a bondade é uma categoria ética, pois ela ultrapassa, ao mesmo tempo, as relações abstratas e normativas da sociedade burguesa e as aspirações individualistas, pois a bondade implica uma relação com o outro, uma práxis que visa à efetivação do outro. A exteriorização e a objetivação da bondade afeta a sociedade como um todo “e, no limite, o próprio destino do gênero humano”[xix], pois como afirma György Lukács ao retratar Minna personagem da peça de Lessing (Minna Von Barnhelm – 1767) – “ é um simples impulso intacto de um autêntico ser humano que deseja uma vida com sentido, só realizável na comunidade e no amor”. […] É, pois, o impulso a ver homens concretos em sua concreta humanidade”.[xx]
*Rafael de Almeida Andrade é mestre em ciências sociais pela Universidade Estadual Paulista UNESP-Marília.
Notas
[i] G. Lukács. A alma e as Formas. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015, p. 252.
[ii] Ibidem.
[iii] Ibidem, p. 250
[iv] Miguel Vedda. Estudio preliminar: Entre la metafísica y lahistoria. Sobre la trayectoria intelectual del joven Lukács In: LUKÁCS, György. Acerca de la pobreza de espíritu y otros escritos de juventud. Buenos Aires: Gorla, 2015, p. 56.
[v] Agnes Heller. Al di lá del dovere: L’etica paradigmática del classicismo tedesco nell’operadi György Lukács. In: FEHÉR, Ferenc; HELLER, Ágnes; MÁRKUS, György; RADNÓTI, Alexander. La scuola di budapest: Sul giovane Lukács. Florença: La nuovaItalia, 1978. p. 59-75.
[vi] Karl Marx. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2010.
[vii] Jose Ignacio Lopes Soria. La búsqueda de la possibilidad humana. La antropologia de Gy. Lukács In: LUCAS, Juan de Sahagun. Antropologias del siglo XX. Salamanca Sigueme, 1976.
[viii] Ibidem, p. 208.
[ix] G. Lukács. Socialismo e democratização: Escritos políticos 1956-1971. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011.
[x] Karl Marx. A guerra civil na França. São Paulo: Boitempo, 2011.
[xi] G. Lukács. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. Revista Temas de Ciências Humanas n. 4. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1978. p.14.
[xii] G. Lukács. A responsabilidade social do filósofo In: LUKÁCS, G. A responsabilidade social do filósofo e outros escritos políticos. São Paulo: Lavrapalavra, 2021. p.237.
[xiii] Ibidem, p. 236
[xiv] Ibidem, p. 240
[xv] Ibidem, p. 240
[xvi] G. Lukács. Minna von Barnhelm In: LUKÁCS, G. Goethe y su época. Barcelona-México: Ediciones Grijalbo, 1968. p. 25-50.
[xvii] Ibidem, p. 33.
[xviii] Nicolas Tertulian. O grande projeto da ética. Revista Verinotio, n.12, p. 21-29, 2018.
[xix] Ibidem.
[xx] G. Lukács. Minna von Barnhelm In: LUKÁCS, G. Goethe y su época. Barcelona-México: Ediciones Grijalbo, 1968. p. 43
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