A terra se move!

Imagem: Lara Mantoanelli
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Por DAVID MACIEL*

No Brasil, diferente do que ocorre no mundo, a esquerda da ordem aposta todas suas fichas na luta institucional e na disputa eleitoral, ao invés de na luta de massas

Do Norte ao Sul do mundo a crise social e política se aprofunda, motivada pela crescente incapacidade do capital, revelada diariamente, em garantir sua valorização sem atacar direitos, aprofundar a desigualdade social e a destruição ambiental e endurecer as formas de controle social e político. De um canto a outro a crise se manifesta no acirramento da luta de classes e no esvaziamento do centrismo político, em favor da extrema-direita fascistoide ou da rebelião popular antineoliberal e mesmo anticapitalista.

Em dois países considerados paradigmas da dita “democracia ocidental”, França e EUA, militares rompem com seu tradicional “profissionalismo” e se manifestam abertamente contra os governos estabelecidos, ameaçando a ordem constitucional e vocalizando os mantras da extrema-direita. Na França, militares da ativa reverberam a islamofobia de Le Pen e do Front Nation, ameaçando Macron com o risco de uma “guerra civil”, enquanto nos EUA generais e almirantes “de pijama” repetem o discurso trumpista de que Biden não só não tem condições físicas e mentais de governar, como também chegou ao poder por meio de uma fraude eleitoral e quer instituir o “socialismo” com seu programa econômico de perfil neokeynesiano.

Na periferia, onde a autocracia burguesa impera e faz escola mundo afora, Israel e Colômbia são os casos mais recentes da violência estatal extremada contra populações civis, movimentos e organizações populares. Em Israel, o governo sionista de Netanyahu radicaliza seu conteúdo terrorista acelerando a limpeza étnica em Jerusalém Oriental por meio da desocupação forçada de casas e estabelecimentos comerciais árabes – no que conta com a legitimação jurídica da Suprema Corte e com os ataques e linchamentos promovidos por hordas de judeus sionistas –, para, em seguida, encetar uma nova ofensiva militar contra os palestinos com fins puramente eleitoreiros. Em jogo está o futuro do primeiro-ministro, pois, em caso de derrota na próxima eleição, terá que enfrentar nos tribunais graves denúncias de corrupção contra si. Na Colômbia, em nome dos interesses da coalizão uribista (oligarquias agrárias, banqueiros, narcotráfico de lá e alhures, imperialismo norte-americano), o governo de Ivan Duque mobiliza as Forças Armadas, polícias, grupos paramilitares e as narcomilícias para enfrentar mais um levante das massas colombianas com prisões, tortura, estupros, assassinatos e desaparecimento de manifestantes e ativistas.

No entanto, a terra se move! A Terceira Intifada é a reação do povo palestino à política de apartheid e limpeza étnica imposta pelo governo sionista de Israel, combinando grandes manifestações de massas, desobediência civil e a luta de rua com as tropas de ocupação e bandidos sionistas. Em outra frente, o bombardeio do território israelense a partir da Faixa de Gaza pelo Hamas e a Jihad Islâmica mostra a vulnerabilidade do sistema de defesa antiaérea israelense e causa estragos materiais e humanos consideráveis. Não está descartada uma guerra generalizada na região, envolvendo diretamente o Hezbollah do Líbano, além de Síria e Irã e indiretamente EUA e Rússia. Apesar da enorme disparidade de forças, com muito mais vítimas e perdas materiais do lado palestino, a resistência heroica do povo palestino mostra mais uma vez a inviabilidade histórica do projeto sionista, apesar de seu extremismo e de todo o apoio do imperialismo estadunidense.

Na América Latina, as massas populares reagem ao neoliberalismo, ao autoritarismo e à combinação trágica entre crise econômico-social e pandemia. Depois dos levantes populares na Argentina, Chile, Paraguai, Equador, Bolívia e Peru, mais uma vez as massas colombianas se levantam contra as medidas neoliberais de um governo que representa a mais organizada e “bem-sucedida” força política de extrema-direita na América Latina, o uribismo, com conexões em diversos países, inclusive no Brasil, e que tenta mais uma vez jogar os custos da crise sobre as costas dos trabalhadores por meio de uma reforma tributária altamente regressiva. O levante de massas mobiliza jovens, mulheres, indígenas, sindicatos e partidos, unificando movimentos e organizações de origens e características diversas numa frente político-social em ascenso, que coloca o governo em xeque e o uribismo em crise. No momento, o governo Duque está mais próximo da queda do que do fechamento do regime, defendido pelo uribismo mais radical. Isto mostra a força da mobilização popular, a ineficácia da repressão política e a possibilidade de que a ordem política do narco-Estado colombiano entre em colapso e seja superada.

O paralelo com o levante chileno de 2019 e com a situação brasileira é inevitável. Com características semelhantes ao atual levante colombiano, as massas chilenas se rebelaram contra um governo neoliberal extremado, herdeiro e beneficiário do pinochetismo, e que recorreu à violência política como recurso principal para a resolução da crise. Após semanas de mobilização permanente de uma grande pluralidade de atores sociais, antigos e novos movimentos e organizações, também unificados contra o neoliberalismo e a autocracia burguesa, o governo foi obrigado a aceitar a convocação de uma Constituinte, cujas eleições ocorreram neste final de semana. Apesar de todas as manobras e casuísmos do governo para impedir a vitória eleitoral da esquerda contra a ordem e das novas forças populares oriundas das ruas, e para esvaziar o conteúdo transformador da nova carta, para o que contou com o apoio da esquerda da ordem, as eleições representaram uma derrota para o pinochetismo e para as forças que dirigiram uma “transição democrática” que preservou grande parte da legalidade autoritária e aprofundou o legado neoliberal da Ditadura nas últimas décadas. Juntos, os partidos da esquerda socialista, os independentes de esquerda ligados aos novos movimentos e organizações e os indígenas também de esquerda detêm a maioria da Assembleia Constituinte. Por sua vez, a direita ficou com menos de um terço das cadeiras, o que lhe impede de vetar sozinha qualquer artigo constitucional aprovado pela maioria. Além disso, a esquerda contra a ordem ganhou a disputa nas eleições para prefeituras e regiões, ampliando seu espaço político-institucional. Com esta importante derrota política do governo Piñera e do pinochetismo abre-se um novo período da luta de classes no Chile, com possibilidades reais de superação da autocracia burguesa e de reversão das medidas neoliberais.

Ora, no Brasil percorre-se o caminho inverso, com a esquerda da ordem apostando todas as fichas na luta institucional e na disputa eleitoral, ao invés de na luta de massas, achando que assim é possível derrubar Bolsonaro e restaurar a situação política e econômica pré-golpe de 2016. Além de se desconsiderar que do ponto de vista dos trabalhadores a crise orgânica vigorante no país e o cenário internacional da ordem do capital exigem que se vá muito além da situação pré-2016, não se leva em conta que sem luta popular e mobilização de massas a ameaça do golpe bolsonarista permanece como uma possibilidade, enquanto a democracia restrita e o neoliberalismo extremado hoje vigentes podem se manter sem Bolsonaro ou mesmo com um governo da esquerda da ordem. A se manter este caminho, a derrota está dada, mesmo antes da luta!

*David Maciel é professor da Faculdade de História da UFG. Autor de História, política e revolução em Marx e Engels (edições Gárgula).

 

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