Por GUILHERME RODRIGUES*
A luta da voz rouca de Belchior contra a ordem melódica dos outros instrumentos traz um espírito do “Coração selvagem” do artista
Para Marcela, que me ensinou a viver de novo.
1.
A música produzida no Brasil parece ter sido, pelo menos desde o século XIX, um ponto de embate analítico, tensionando-se entre suas profundas raízes da formação social e psíquica no país e as más elaborações que buscam símiles europeus para estabelecer conceitos pretensamente transversais – como a divisão entre alta e baixa cultura e seus similares. O próprio Machado de Assis, um escritor muito musical (como já escrevia Antonio Candido[i]) lidou com isso em sua obra, seja com a tradição popular em contos como “O machete”, “Um homem célebre” e “Terpsícore”, seja com a tradição dos pianos de salão da burguesia fluminense nos romances Esaú e Jacó e Memorial de Aires.
José Miguel Wisnik, em primoroso estudo,[ii] buscou argumentar como a obra machadiana produz uma representação da música brasileira enquanto um fenômeno miscigenado entre erudito e popular, sendo que o traço escravo – o maxixe – teria sido recalcado em outras formas como a polca. A obra de Machado de Assis apresentaria neste sentido um traço mestiço e mulato fundamental para se fazer entender, na medida em que seus escritos demonstram uma cultura brasileira vacilante entre a tradição europeia e os traços nacionais tensionados entre as classes sociais.
Já aqui se poderia perceber que há algo peculiar na formação musical no Brasil, que não consegue ser reduzida a conceitos a-históricos ou muito genéricos. Em trabalhos mais recentes, Rodrigo Duarte vem argumentando como a leitura adorniana, por exemplo, não consegue dar conta de certas expressões musicais produzidas no Brasil, como o hip hop – aí sua formulação conceitual de “construtos estético-sociais, que buscaria descrever alguns fenômenos estéticos contemporâneos que apresentam por um lado elementos de mercadorias culturais, mas que ao mesmo tempo são constituídos por um fundamento crítico que tem como horizonte uma dissolução dos modos hegemônicos da mesma mercadoria cultural.[iii] Talvez este seja um meio interessante de entender também a canção da música brasileira produzida entre os anos 1950 e 1990, e não apenas da bossa nova de João Gilberto, mas também os tropicalistas e mesmo Belchior.
É conhecida a crítica que alguns intelectuais como Roberto Schwarz e José Ramos Tinhorão produziram ao tropicalismo, apontando seus músicos como alinhados de maneira inconsciente à “política de queima de etapas proposta desde 1964 pelo Ministro do Planejamento, Roberto Campos, com seu plano de liquidação e absorção das rudimentares estruturas de produção nacional por meio da importação de indústrias e pacotes de tecnologia estrangeiros”[iv]; isso na medida em que se apropriavam da música elétrica do rock junto ao que seria uma espécie de kitsch popular.
Tal crítica, que se estendeu também a uma tradição também chamada de pós-tropicalista, como é o caso de Belchior, perde de vista, porém, o fundamento crítico da obra deste músico, por exemplo, que olha para um horizonte de uma outra formação sensível, passando num profundo enlace entre a tradição literária e musical produzida no Brasil (e em outros lugares) e o tensionamento contemporâneo de uma desidentificação do sujeito, produzida, inclusive, pela própria forma melódica do canto.
A música de Belchior sempre se colocou nestes pontos de tensionamento, de um compositor que buscou um certo elemento estranho e desidêntico, que coloca tanto o sujeito que ali canta quanto aquele outro que escuta em uma posição de instabilidade. Tome-se como exemplo a canção “Divina Comédia Humana”, gravada no álbum Todos os sentidos, de 1978. Desde o título, a canção sugere um diálogo com a tradição, e passando ainda os olhos rapidamente pela letra-poema pode-se registrar uma citação do soneto XIII da Via-Láctea de Bilac.
Ainda que patentes, porém, todas estas referências aparecem deslocadas em direção a um terreno estranho e instável – vejamos. Lembre-se, primeiro, que a canção se inicia com um sujeito angustiado que ouve um conselho amoroso de um “analista amigo meu”, um sujeito de suposto saber, se quisermos usar o jargão lacaniano: a felicidade não estaria num encontro casual, ou numa transa sensual. Mas é na estrofe seguinte em que veremos o verdadeiro ato analítico: o eu lírico retruca este sujeito de suposto saber, com uma formulação de um desejo livre: “quero ficar colado à pele dela noite e dia”.
O interlocutor muda, então, para o que parece ser a moça amada, enquanto a poesia enuncia o desejo de gozo neste amor, ainda que não seja eterno – “posto que é chama”, escreveria Vinicius de Moraes. A canção finaliza ainda com outro interlocutor, para quem o eu lírico afirma uma potência produtiva do canto que vem de um “não”.
A composição ainda constituirá uma complexificação deste panorama apresentado, no que diz respeito a suas linhas melódicas e harmônicas. Na versão que é lançada em 1978, a canção se inicia com o teclado e violão, e, na medida em que progride, ganha instrumentos: o baixo entra na fala do analista, como um grave conselho, que é rebatido com a entrada da bateria em um ritmo dançante de baile, como se o eu lírico puxasse para a dança a moça que ama. Os risos e suspiros que são gravados ainda junto à canção dão a forma do gozo que o eu lírico frui depois da contestação deste saber suposto.
A versão dos anos 1990, gravada apenas com voz e dois violões, insere um elemento até mais significativo – que subjaz praticamente a toda obra de Belchior –: há uma irregularidade rítmica no canto, que não acompanha os outros instrumentos, como se a voz lutasse contra a ordem imposta pelo andamento do violão. Daí a dificuldade de tantos intérpretes do músico, que, de maneira frustrada, encaixam a melodia da voz no violão, subjugando a força do “não” cantado no final da canção. Esta, afinal, é a potência da não identidade – conceito tão caro a Theodor Adorno, ironicamente – o canto que não se deixa amarrar, como o amor deste eu lírico, que só se deixa fruir numa livre elaboração, de um se colar à pele do outro, noite e dia.
Agora, poderíamos nos perguntar o que isso tem de fato a ver com a Comédia de Dante, a Comédia humana de Balzac, ou a Via-Láctea de Bilac. Bom, vejamos que, antes de Belchior, os três textos são bastante díspares, em praticamente tudo. Neste sentido, a canção já produz uma verdadeira montagem ao melhor gosto moderno: despotencializando seus materiais originais, reorganizando-os por meio do estranho, o que lhes dá outra potência: realizada, enfim, pela negatividade.
Lembre-se que é Dante quem caminha pelo Inferno e pelo Purgatório até se libertar da autoridade de Virgílio, seu poeta-mestre, para que possa se encontrar com Beatriz, num gozo divino, ainda que breve, no Paraíso. A Comédia de Balzac, muito diferente da de Dante, não é assim chamada por qualquer tom aristotélico ou revelação divina; o autor francês em verdade provoca o poeta florentino do séc. XIV ao escrever um conjunto de prosa de costumes mundanos – mas é também neste mundo em que o amor finito e muito potente encontra suas belas formulações; são obras como A mulher de trinta anos, Eugénie Grandet e Ilusões perdidas em que isso se poderia ver. Por fim, é na Via-Láctea em que se encontram alguns dos mais belos poemas de amor de Olavo Bilac, que sonha em subir às estrelas e descer de lá para encontrar com a amada, porque “só quem ama pode ter ouvido / capaz de ouvir e de entender estrelas”.[v]
Ainda que se possa referenciar por que tais obras estão aí na canção, não se perca de vista a negatividade de Belchior: todo este material da tradição aparece atravessado pelo canto irregular, pelo ritmo do baile e, sobretudo, por uma quebra analítica do saber suposto. O sujeito poético reformula todo o referencial, que agora opera no interior de suas formulações desejantes, de alguém que assim o faz porque simplesmente ama. É “deixando a profundidade de lado” que este eu lírico produz a ruptura, que, enfim, um canto de tal natureza é capaz de fazer no tecido da sensibilidade.
2.
A luta da voz rouca de Belchior contra a ordem melódica dos outros instrumentos traz um espírito do “Coração selvagem” do artista. A canção que leva este nome, gravada no álbum homônimo, é toda um movimento de fato selvagem, que usa dos instrumentos típicos de uma canção de amor – o saxofone em especial – para produzir um chamado que busca “deixar sempre de lado a certeza / e arriscar tudo com paixão; / andar caminho errado pela simples alegria de ser.” Correr perigo, então, faz parte deste amor, que, como já escreveu Drummond, é o “risco desejado”.[vi] Esta paixão que vem da música de Belchior lembra uma certa potência criadora que se vê em grandes poetas e músicos – tal potência, enfim, se encontra com o ímpeto de uma composição cujo processo é de crítica ao próprio material musical. Afinal, como o próprio Belchior canta, há um risco que só a paixão dá, mas é com ele que se pode ir de encontro com o mundo, que está perto, “naquele estrada ali em frente”.
*Guilherme Rodrigues é doutor em teoria literária pelo IEL da Unicamp.
Notas
[i] Candido, Antonio. “Música e música”. in: O observador literário. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2008, p. 27.
[ii] Wisnik, José Miguel. Machado Maxixe: o caso Pestana. São Paulo: Publifolha, 2008.
[iii] cf. Duarte, Rodrigo. “Desartificação da arte e construto estético-sociais”. in: Viso: cadernos de estética aplicada: Revista eletrônica de estética. v. VI, n. 11, 2012, pp. 1-10.
[iv] Tinhorão, José Ramos. Pequena história da música popular segundo seus gêneros. 7ª ed. São Paulo: Editora 34, 2013, p. 306.
[v] Bilac, Olavo. Poesias. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 53.
[vi] Andrade, Carlos Drummond de. Claro enigma. 1ª ed. São Paulo: Companhia das letras, 2012, p. 58.
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