A COP30 na Amazônia

Imagem: Min Na
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Por MONICA LOYOLA STIVAL*

O verdadeiro palco da COP é o conflito entre Norte e Sul, corporações e populações. Transformar o evento em mera vitrine de “valores comuns” esvazia seu potencial como arena para confrontar os reais responsáveis pela crise

1.

O Brasil vai receber o maior evento sobre clima em plena cidade amazônica, Belém. André Corrêa do Lago tem se dedicado à tarefa diplomática de presidir o evento global. A primeira carta do Embaixador que preside a COP30 exalta de partida os “valores humanos compartilhados” que animam “nossa espécie” a construir um “futuro comum”.

Essa bela imagem de uma comunidade humana virtuosa começa a se desfazer na descrição do conflito que está na gênese do próprio objeto da Conferência. André Corrêa do Lago observa, afinal, que os ricos “se isolam atrás de muros resilientes ao clima”, enquanto os pobres “sofrem cada vez mais”. Ao que parece, a assim chamada humanidade não compartilha efetivamente os valores evocados de partida. Disso decorre inclusive a necessidade de negociar, ou seja, de arranjar de algum modo os interesses e valores diversos e antagônicos que organizam a vida social. Sobretudo, na história do capitalismo moderno.

Existem efetivamente valores comuns a todos que compõem a “humanidade”? A célebre luta de classes é capaz de situar a diferença no modo concreto como se definem valores, isto é, como conflito. Ao contrário do mundo ideal mobilizado por André Corrêa do Lago e, ademais, pela própria definição do evento que preside, o novo slogan do governo brasileiro dá indícios de uma nova e esperada maneira de atuar na disputa política. “Governo do Brasil do lado do povo brasileiro”! Escrevi a respeito do debate sobre o Brasil que queremos apontando que slogans como “O Brasil é dos brasileiros” traçam uma linha tênue entre a soberania que devemos sempre ressaltar e o nacionalismo que obscurece os conflitos sociais.

Estar não apenas “ao lado” do povo brasileiro, como um governo que apoia, mas “do lado” do povo, como um governo que define sua trincheira, é um ato efetivamente político, no melhor sentido possível. Ao reconhecer o antagonismo entre ricos e pobres na questão climática, é também um lugar na disputa que é preciso definir.

A COP não pode ser – porque é impossível – o espaço de realização de um pacto humanitário comum a todos, considerando países, corporações, comunidades e indivíduos. Poderia ser, por outro lado, a expressão consciente de um conflito a ser explicitado. Só assim, talvez, o conflito inescapável entre valores distintos e com implicações distintas para o clima poderia ser visto e compreendido como objeto da grande reunião. Saem os “valores humanos compartilhados” e entra a intenção de alguma justiça climática e ambiental. No limite, esta última é a demanda em termos ambientais da justiça social e econômica que os valores humanitários replicados em nacionalismos diversos costumam silenciar.

2.

A carta evoca a Segunda Guerra Mundial como exemplo de uma aliança “contra um inimigo comum”. Esse combate à ameaça existencial, entretanto, teve um inimigo concreto. A analogia proposta por Lago quer definir, para a ameaça existencial em questão na Conferência, um inimigo comum. O inimigo comum seria “a mudança do clima”. Isso confunde o sujeito – cada vez mais oculto – a ser combatido, que são elites políticas e econômicas, com o efeito de seus interesses, o aquecimento global. Perde-se o essencial da analogia: a certeza de que estamos em guerra. Além disso, o “inimigo” é dissolvido em um não-sujeito, já que do lado de cá estaria nada mais nada menos que a humanidade como um todo.

A relação entre diferentes é o que está em questão, afinal, em qualquer negociação. André Corrêa do Lago se dirige a diversos setores da “aliança”, dentre os quais os “negociadores do clima”. Estes negociam com quem? Em nome de quem? No mínimo, é preciso deixar claro o conflito por trás da urgência climática e, com isso, que não há exatamente um inimigo comum a todos, nem valores humanitários comuns – os mocinhos do progresso ou, nos termos de André Corrêa do Lago, do “renascimento planetário”. Se as COPs são espaços de negociação, há sem dúvida interesses opostos e uma desproporção gigante entre as partes.

Entre Norte e Sul Global, como não se nega há um bom tempo, e entre países mais ou menos desenvolvidos. Poderíamos dizer que a desproporção é também entre alguns Estados, de um lado, e outros Estados, as grandes corporações, a agropecuária (cf. O dinheiro na sacola de vinho) e o sistema financeiro, de outro. Se os primeiros representam a sociedade civil global na mesa redonda, estes (Estados centrais em parceria com as corporações) dominam o tabuleiro desde pelo menos a Revolução Industrial, berço do capitalismo atual.

A aposta na Conferência apresentada como esforço conjunto para o bem comum global é análoga à mesa redonda de negociação apresentada pelos defensores da reforma trabalhista: empregados e patrões negociando o salário. É óbvio que não pode dar certo – nos dois casos, a ideologia da igualdade e da liberdade organizam a ideia de negociação entre partes iguais, ou cujas diferenças – desigualdade – são circunstanciais, próprias da conjuntura e, portanto, no máximo, signos de “crise”.

3.

Na primeira carta do presidente da edição amazônica da Conferência das Partes lemos que “a COP30 pode ser o momento em que alinharemos os fluxos financeiros internacionais e integraremos as transições digital e climática em uma única nova revolução industrial que seja consciente em relação ao clima”. No fundo, a questão toda aparece como a possibilidade de um novo capitalismo, igual só que diferente; um sistema “consciente”, assim como a negociação trabalhista requer um patrão consciente ou minimamente condescendente – afinal, diriam, compartilhamos valores humanitários.

Mais uma pequena observação sobre a COP30 na Amazônia. O valor simbólico da escolha é inegável. Mas é também sua geografia – no Sul Global e em um país extremamente desigual – que faz dessa escolha a vitrine das contradições essenciais do capitalismo. Como se sabe, falta espaço, acomodação. O valor da hospedagem revela a legítima disposição da população local em aproveitar a chance para lucrar – capitalizando o evento, digamos.

É uma ironia infeliz que o espaço seja disputado na lógica da oferta e da demanda, enquanto se apela à compreensão do valor (moral, não apenas econômico) da atividade. Há um apelo pela abnegação em nome do bem comum, como nas expectativas de redução de consumo por indivíduos com alta pegada de carbono em favor de um decrescimento. Um capitalismo consciente…

Divulgar a COP como ponto para alavancar um mundo novo e fundamentado em valores universais obscurece o sentido último do espaço como palco de negociações tensas e de um jogo de forças atroz. Isso esvazia a luta social mais ampla, a atenção da chamada opinião pública ao evento. Ao invés de um encontro para intensificar apelos à consciência ética dos capitalistas, cada COP precisaria assumir-se espaço de conflito com possibilidade (reduzida, ademais) de arrancar alguma concessão.

Os valores que, segundo André Corrêa do Lago, “nos mantêm unidos” (paz e prosperidade, esperança, unidade, generosidade e diversidade, dentre outros) são aqueles que forjam uma identidade de valores, interesses e projetos sobreposta aos conflitos concretos decorrentes de valores, interesses e projetos antagônicos.

Para definir um lugar na disputa política é preciso nomear com clareza o inimigo – que não é a crise climática, mas quem a causa – e assumir a negociação como enfrentamento – negociar com quem e em nome de quem? Também na COP, é preciso estar claramente “do lado do povo”.

*Monica Loyola Stival é professora de filosofia na UFSCar. Autora, entre outros livros, de Que sujeito somos nós? Poder, racionalidade (neo)liberal e democracia (Edufscar). [https://amzn.to/41eZjaD]

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