Três funções do orientador

Imagem: Markus Spiske
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JEAN PIERRE CHAUVIN*

O orientador precisa estar consciente de que a sua tarefa não é reter os alunos e pesquisadores, já que eles não têm o estatuto de coisa

“What happens to his class now?’ I enquired. At this he guffawed loudly. ‘Without being too prophetic, I’d say you’re for it” (E. R. Braithwaite, To Sir with Love, 1959).

Há tempos, este pseudocronista intenta redigir um breve tratado sobre o ofício de ensinar: essa arte que, desde o advento da internet no final da década de 1990, rivaliza com os portais/buscadores de informação e, mais recentemente, com influencers (de quem, mesmo?) e produtores de conteúdo (de que procedência e qualidade, heim?).

Para além de protestar frente às acusações infundadas e injustificadas contra o professor – quase sempre disparadas por quem nunca pisou numa sala de aula, e nada sabe das violências que este profissional sofre diariamente, dentro e fora das instituições –, talvez seja oportuno dedicar uma lauda e meia a alguns papéis inerentes ao ofício de orientar.

Primeira função primordial: responder a mensagens enviadas pelos seres interessados em desenvolver pesquisa (sob nossa orientação, ou não). Soará contraditório sugerir que estudantes leiam atentamente e anotem rigorosamente ensaios que dissertam sobre as múltiplas formas de escuta e solidariedade, se não mostrarmos disposição em ler e responder a eles. Obviamente, isso não implica orientarmos a pesquisa de mil pessoas simultaneamente, nem estarmos disponíveis as vinte e quatro horas do dia. Não se trata de uma relação entre serviçal e cliente.

Atrelada à disposição para ler e escrever, está a habilidade de escutar e falar. Resultará inútil responder por escrito à mensagem do estudante, se não houver acolhida e direcionamento. Por acolhimento, quero dizer escuta atenta, combinada à resposta cordial, seja ela indício de uma parceria de trabalho; seja ela recomendação de que o aluno: (1) reflita sobre hipóteses de pesquisa derivadas do tema que tem em mente; (2) dialogue com outros colegas de ofício, caso não possamos orientá-lo; (3) estabeleça um repertório inicial de leituras; (4) inaugure uma rotina de estudos; (5) encare a pesquisa como um trabalho que demanda humildade etc.

Quanto ao direcionamento (supondo que a orientação tenha início), parece-me que o segundo papel do professor é incentivar o estudante a perseguir o tema de seu interesse, levando em conta a exequibilidade da pesquisa; os impasses existentes; a bibliografia incontornável; o prazo efetivo para a realização do trabalho; a necessidade de recortar o tema (por autor, obra, período histórico etc.) em havendo necessidade; a importância de o aluno não transformar o objeto de pesquisa em mera manifestação narcísica etc.

Salvo engano, a terceira função do orientador é alertar o estudante de que ninguém é autossuficiente. Daí a importância de sugerir modos de como conduzir a pesquisa sem arroubos de genialidade; manter-se atento às mensagens enviadas (não só) pelo orientador; dirigir-se grata e humildemente à banca avaliadora etc. No plano discursivo, propor modelos de como não soar pretensioso ou categórico, ao redigir o relatório de pesquisa, a monografia ou a tese, o resumo para eventos, a resenha ou o artigo científico.

Desde sempre, o orientador precisa estar consciente de que a sua tarefa não é reter os alunos e pesquisadores, já que eles não têm o estatuto de coisa: não são “sua” propriedade. De nossa parte, como não somos coach ou deidade, soa ridículo portar frases messiânicas de efeito, ainda que recorramos a elas como meras fórmulas de incentivo.

Respeitadas as atribuições de orientando e orientador, procure-se estimular a concepção solidária de mundo, justamente porque ela é poderoso antídoto contra o ultraliberalismo e marca posição contra os orgulhosos hiper-sujeitos – entes ciosos de sua máxima relevância a reproduzir pérolas do senso comum, como se se tratasse de máximas filosóficas, tais como: “o mundo é assim”.

Na quase totalidade das parcerias, os estudantes se mostrarão modestos nos contatos iniciais e adquirirão maior dose de pretensão, porventura respaldada por alguma autonomia, à medida que caminharem por relativa conta própria. Ao final do contrato de orientação (que pode levar de seis meses a alguns anos), o mais provável é que os estudantes sumam no mundo e apenas eventualmente se recordem de seus professores e orientadores, perguntando-lhes “como vai”?

Mas há algum consolo. Dos vínculos de pesquisa, restarão o registro da trajetória em comum no currículo Lattes e a declaração oficial (a resumir o longo e complexo trabalho de orientação em três linhas), emitida por eficientes sistemas on-line e validada por seres autômatos.

*Jean Pierre Chauvin é professor de Cultura e literatura brasileira na Escola de Comunicação e Artes da USP. Autor, entre outros livros de Sete Falas: ensaios sobre tipologias discursivas.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • O triste fim de Silvio Almeidasilvio almeida 08/09/2024 Por DANIEL AFONSO DA SILVA: O ocaso de Silvio Almeida é muito mais grave que parece. Ele ultrapassa em muito os eventuais deslizes deontológicos e morais de Silvio Almeida e se espraia por parcelas inteiras da sociedade brasileira
  • A condenação perpétua de Silvio AlmeidaLUIZ EDUARDO SOARES II 08/09/2024 Por LUIZ EDUARDO SOARES: Em nome do respeito que o ex-ministro merece, em nome do respeito que merecem mulheres vítimas, eu me pergunto se não está na hora de virar a chave da judicialização, da policialização e da penalização
  • As joias da arquitetura brasileirarecaman 07/09/2024 Por LUIZ RECAMÁN: Artigo postado em homenagem ao arquiteto e professor da USP, recém-falecido
  • O caso Silvio Almeida — mais perguntas que respostasme too 10/09/2024 Por LEONARDO SACRAMENTO: Retirar o ministro a menos de 24 horas das denúncias anônimas da Ong Me Too, da forma como foi envolvida em licitação barrada pelo próprio ministro, é o puro suco do racismo
  • A bofetada do Banco CentralBanco Central prédio sede 10/09/2024 Por JOSÉ RICARDO FIGUEIREDO: O Banco Central pretende aumentar a taxa Selic, alegando expectativas de inflação futura
  • Silvio Almeida — entre o espetáculo e o vividoSilvio Almeida 5 09/09/2024 Por ANTÔNIO DAVID: Elementos para um diagnóstico de época a partir da acusação de assédio sexual contra Silvio Almeida
  • Ken Loach – a trilogia do desamparocultura útero magnético 09/09/2024 Por ERIK CHICONELLI GOMES: O cineasta que conseguiu capturar a essência da classe trabalhadora com autenticidade e compaixão
  • Silvio Almeida: falta explicarproibido estacionar 10/09/2024 Por CARLOS TAUTZ: Silvio Almeida acusou a Mee Too de ter agido para influenciar uma licitação do MDH por ter interesse no resultado do certame
  • O caso Sílvio Almeidasilvio almeida 4 11/09/2024 Por ANDRÉ RICARDO DIAS: Considerações sobre a idealização reificada do negro pelo discurso identitário
  • Silvio de Almeida e Anielle Francoescada espiral 06/09/2024 Por MICHEL MONTEZUMA: Na política não há dilema, há custo

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES