“Criança esperança” – no Brasil e em Gaza

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Por RUBENS PINTO LYRA*

Não é necessário ser “radical de esquerda” para compartilhar o entendimento sobre a ineficácia de iniciativas que não sejam de caráter social para problemas sociais

“Uma parte da burguesia, filantropos, humanitários, organizadores da caridade, reformadores sociais os mais variados, desejam remediar os males sociais para assegurar a existência da sociedade burguesa” (Karl Marx, Manifesto do Partido Comunista).

Essas palavras do ainda jovem Marx, escritas há mais de 170 anos, guardam toda a atualidade. O grande pensador alemão endereçou-as ao que chamou, à época, de “socialistas burgueses” (MARX: 1998, p. 40). Não obstante, elas se ajustam como uma luva aos nossos atuais filantropos – apesar de nada terem de socialistas – humanitários e “organizadores da caridade”, que buscam, conscientemente ou não, tapar o sol com a peneira, pretendendo conferir eficácia a ações notoriamente ineficazes.

Essa ideologia pode ser assim resumida: se cada um fizer sua parte, os problemas do país serão resolvidos, ou, pelo menos, consideravelmente mitigados.

Os meios de comunicação, especialmente a Rede Globo, fazem questão de destacar atos de generosidade de caráter individual, como os do Natal sem Fome e os de marketing empresarial, de que é exemplo o programa “Criança Esperança”, como iniciativas da maior importância para diminuir a desigualdade social. Trata-se, na verdade, de meros paliativos que servem, conscientemente ou não, para dar boa consciência aos que imaginam que campanhas como ela, valem a pena serem realizadas.

O Natal sem Fome é uma promoção, como outras similares, fruto da generosidade de muitos indivíduos desinteressados, que querem realmente promover o bem. Mas não objetiva alcançar o que interessaria: que seus beneficiários não passem fome durante todo o ano. Destarte, essa iniciativa funciona – sem que disso os seus promotores tenham consciência – como uma cortina de fumaça que oculta a necessidade imperativa da busca por mais igualdade social, e pela identificação dos meios que a viabilize.

Todavia, não é difícil perceber que os patrocinadores das campanhas referentes às diferentes “filantropias” – regra geral, os meios de comunicação – sabem muito bem que essa é maneira de elidir a necessidade do debate sobre as causas estruturais da fome e sobre como eliminá-la.

Dentre elas, destaca-se o programa Criança Esperança, objeto, anualmente, na Rede Globo, de campanhas midiáticas de grande impacto, que divulgam, à exaustão, experiências exitosas, conferindo-lhes virtudes quase demiúrgicas. Elas transmitem a falsa impressão de que os problemas brasileiros seriam consideravelmente diminuídos, se programas desse gênero se disseminassem.

Funcionam como um biombo que oculta o contraste entre o que se arrecada nas doações – nunca mais de 23 milhões de reais – (CRIANÇA ESPERANÇA: 2019), e os bilhões que seriam necessários para garantir a todas as crianças brasileiras, conforme preceitua a Constituição, alimentação, saúde e educação de qualidade: “Para que se tenha idéia de quão modestos são os recursos desse programa, considerando-se o objetivo de ‘transformar a vida das crianças brasileiras: basta dizer que sua arrecadação representa menos de 1% do lucro que obteve a Rede Globo. Ela, sozinha, poderia arcar com programas de muito maior alcance que o atual” (LYRA: 2018, p. 79).]

O que a Rede Globo, pretende, de forma subliminar, é inculcar nos seus expectadores uma concepção minimalista do Estado, considerado necessariamente perdulário e que sufoca a todos com escorchantes impostos. Daí seu empenho em fazer crer que a solução dos problemas do Brasil passe pela “sociedade”, isto é, sobretudo pelos assalariados e outras categorias trabalhadores, através do apoio que venham a dar a iniciativas voluntaristas de caráter paliativo (LYRA: 2018, p. 79-80).

Quem endossa tais campanhas contribui, nolens volens, para a manutenção de uma ordem social injusta, pois elas pretendem substituir iniciativas consequentes para superá-la – com políticas sociais mais justas, por ações de benemerência, de caráter individual ou empresarial, que pouco ou nada contribuem para reduzir a clamorosa desigualdade social do país.

Nessa mesma perspectiva se inserem os comentários de apresentadores de meios de comunicação e outros famosos. Consideram que iniciativas desse gênero terão o condão de mudar para melhor as pessoas e a sociedade no convívio social. Trata-se de raciocínio enganoso, eivado de ideologia conservadora, que – consciente ou não – escamoteia as verdadeiras alternativas para a melhoria da condição humana e social no Brasil.

Sobre elas – e não por acaso – vigora absoluto silêncio da mídia. Não se discute políticas públicas que mudem substancialmente a desigualdade abissal que, com a pandemia, tende a se agravar.

Os meios de comunicação também dão grande destaque a filantropia das grandes corporações financeiras e industriais, como, por exemplo, a do Bradesco e a do Itaú. Alardeiam que se trata de iniciativas generosas. Mesmo que suas doações correspondam à renúncia de parcela insignificante de seus lucros, atribui-lhes o condão de contribuir para a diminuição da desigualdade – da qual são as principais responsáveis.

Esse gênero de filantropia não passa de um investimento lucrativo, pois serve para conferir-lhes a imagem de organizações que não visam apenas ao lucro, mas também ao bem do país. E serve ainda para desviar a atenção para o fato de que as grandes empresas, especialmente as do sistema financeiro, constituem os pilares de uma ordem social cruelmente injusta. Com efeito, “em um país que é um dos campeões mundiais da desigualdade social, apenas cinco bilionários detêm a mesma riqueza que metade mais pobre do país!” (GOMES: 2020). Nessas condições, não é de admirar que “a pandemia tenha escancarado a desigualdade social e revelado que pretos e pobres são os mais afetados” (PANDEMIA, 2020).

Não se há de pretender, portanto, que se possa avançar em dignidade humana, e que tenhamos saído “melhores do que antes”, sabendo que os direitos fundamentais dos pobres e excluídos desse país se tornarão ainda mais vulneráveis no pós-pandemia. Algo bem diverso de iniciativas que propõem soluções ilusórias, como as acima descritas, são os laços de solidariedade que se pode estabelecer, para fins transformadores, entre os que são, em maior ou menor grau, explorados pelo capital.

Estes sim, capazes, no âmbito da sociedade, de promover ações eficazes para transformá-la, quando se conscientizam que somente a efetivação de políticas sociais inclusivas pode dar, no Brasil e alhures, a esperança de redenção às crianças pobres.

No plano internacional, recente declaração do jornalista Jorge Pontual, da Rede Globo, vai na contramão dessa alternativa, ao endossar ações voluntaristas violentas para alcançar objetivos sociais supostamente defensáveis.

Com mais de cinco mil crianças mortas em Gaza e mil e quinhentas desaparecidas, segundo o Presidente Lula (2023), a emissora do “Criança Esperança” defende, pela voz de um dos seus mais conspícuos colaboradores, o genocídio praticado por Israel, até mesmo por meio de ataques a ambulâncias (COSTA:2023).

Mas que efeito teria a generosidade de alguns para com elas, estando em vigor uma política militarista que ceifa aos milhares as suas vidas? Que importância tem para os porta-vozes dos interesses dos ricos e poderosos o morticínio praticado a um povo pobre, sem meios de se defender contra a permanente opressão política, social, econômica e militar de que é vítima? Para eles, as quatro mil mortes de crianças em Gaza não importam, como também não importam as milhões que no Brasil continuaram a padecer de fome e de miséria, condenadas à morte precoce ou à marginalização social, em virtude de um sistema econômico excludente.

Propiciar apenas a poucas crianças uma vida melhor, deixando-as, quase todas, em situação de permanente vulnerabilidade, é uma forma ingênua, em alguns casos, e pouco honesta, em muitos outros, de se dar boa consciência. A esperança com que acena a Globo não passa de uma máscara ideológica que oculta a solução efetiva para as crianças, no Brasil ou alhures: a promoção da inclusão na sociedade.

Não é necessário ser “radical de esquerda” para compartilhar o entendimento sobre a ineficácia de iniciativas que não sejam de caráter social para problemas sociais, conforme se depreende no documento Carta ao povo de Deus, subscrita por cento e cinqüenta e dois bispos brasileiros. Nela, os prelados afirmam que “a resposta aos problemas brasileiros não deveria ser entendida como uma soma de gestos pessoais a favor de alguns indivíduos, uma série de ações destinadas a tranquilizar apenas a própria consciência” E acrescentam: “as mudanças de que necessitamos exigem que despertemos do sono que nos imobiliza e nos faz meros espectadores da realidade de milhares de mortes que nos assolam”.

Ao concluir alertam, como o fez o apóstolo Paulo, que “a noite já está avançada e o dia se aproxima: rejeitemos as obras das trevas e vistamos a amadura da luz” (BERGAMO:2020).

*Rubens Pinto Lyra é Professor Emérito da UFPB. Autor, entre outros livros, de Bolsonarismo: ideologia, psicologia, política e temas afins (CCTA/UFPB).

Referências


BERGAMO, Mônica. “Discurso de Bolsonaro não é ético e se baseia em economia que mata, diz carta assinada por 152 bispos brasileiros.

COSTA, Filipe. Massacre em Gaza. https: aterraeredonda.com.br, 11 nov. 2023.

CRIANÇA ESPERANÇA bate recorde histórico ao alcançar 22.5 milhões. Disponível em 15.uol.com.br Acesso 6 jul. 2020.

GOMES, Helton.Cinco bilionários brasileiros concentram a mesma riqueza que metade mais pobre do país, diz estudo. Disponível em https//g1globo.com 14.jun.2020. Acesso em 24 set. 2022.Folha de São Paulo: São Paulo, 28 jul. 2020.

LULA, Luiz Inácio. Declaração divulgada pela Rede Globo. 14.11.2023.

LYRA, Rubens Pinto. Criança esperança: caminho para a mudança? In: Jornalismo e cidadania. João Pessoa: Ed. da UFPB, 2018.

MARX. Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo:Cortez, 1998.

PANDEMIA escancara desigualdade social e revela que pretos e pobres são os mais afetados. Central Única dos Trabalhadores. 25.jul.2020.


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