A diáspora de cérebros
Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR; AFRÂNIO MENDES CATANI & EVERTON HENRIQUE ELEUTÉRIO FARGONI*
As motivações que promovem a emigração dos cientistas e jovens pesquisadores do Brasil
A realidade almejada no imaginário coletivo dos jovens pesquisadores e recém doutores é a estabilidade profissional ao concluírem a pós-graduação. Este também é um desejo de todos que buscam se qualificar em suas ocupações, a fim de se destacarem no mercado de trabalho cada vez mais competitivo. Em outras palavras, a humanidade que compõe o corpo social produz, consome e sobrevive por meio de políticas de natureza mercantis.
Chamamos de “diáspora de cérebros” o fenômeno de emigração de profissionais especializados, detentores de capital humano qualificado. Este fenômeno resulta na mudança geográfica de um cidadão e também na transferência de recursos na forma de capital humano. Tal configuração tem origem nos processos decisórios de determinados países, que buscam estabilidade econômica por intermédio da produção intelectual dos cientistas que não encontram guarida, principalmente economia do seu país de origem.
Os cientistas vivem no século XXI a maior realidade mercadológica da história econômica mundial, pois a matriz de novos produtos e das tecnologias de ponta são provenientes daquilo que Silva Júnior (2017) denomina “conhecimento-mercadoria” – termo esse originário do conceito inglês Raw material knowledge, elaborado pelos pesquisadores estadunidenses Sheila Slaughter e Gary Rhoades na obra Capitalismo Acadêmico e a nova economia. Este é o sentido e a tendência do trabalho, quer do experiente, quer do jovem cientista no mundo contemporâneo. Silva Júnior e Fargoni (2020) caracterizam essa conjuntura como a mudança na episteme da ciência, reduzida a tecnociência.
Nesse sentido, antes de examinarmos a realidade científica brasileira e a fuga de cientistas do país, buscamos em Larry Sjaastad, um dos primeiros teóricos da economia neoclássica e especialista sobre a deserção de profissionais qualificados de seus países de origem, o entendimento para ponderarmos sobre o contexto e as motivações que induzem a diáspora e, ademais, a internacionalização dos responsáveis pela produção de conhecimento no Brasil.
Para Sjaastad (1962) a fuga de cérebros de uma nação, ou ainda, a migração de profissionais no mesmo território, dá-se principalmente pelas condições econômicas na qual o profissional está inserido. O êxodo ocorre por diversas características que dependem do momento social e histórico de cada país sob predomínio do capital financeiro. Sjaastad (1962) identificou que despesas com alimentação, moradia e transporte em regiões com baixa remuneração são os principais motivos para que profissionais qualificados deixem sua região nativa. Os custos não monetários, como os problemas psicológicos provenientes da falta de segurança e apoio familiar, também estimulam a partida do país. Segundo o autor, o custo-benefício da mudança de região ou nação é elemento crucial na decisão do cientista, pois o destino investe em profissionais com capacidade de produzir novos conhecimentos que são atraídos pela lógica da busca de melhores condições de vida.
O que Sjaastad nos revelou pela racionalidade geopolítica e econômica, Chesnais (1996, p. 17) determinou pelo conceito de “mundialização do capital”, indicando que não somente os cientistas, mas todos, estãosob a globalização de uma massa de dinheiro que se valoriza. Para Chesnais (1996) o dinheiro é valorizado por meio da produção de mercadorias e pela sua conservação no mercado financeiro. Por consequência, o cientista que sai do seu país de origem em busca de reconhecimento, também evade para ajudar na produção de novos produtos que serão novas mercadorias, quiçá consumidas pelo próprio cientista.
Esse é um processo de análise da atividade humana que Chesnais buscou em seus estudos em Marx (1985, p. 153), para quem o trabalho é caracterizado, inicialmente, por meio da interação do homem com o mundo natural. Significando que elementos da natureza são modificados na busca de determinados propósitos. Isso quer dizer que o trabalho é a forma pela qual o homem apropria-se da natureza com a finalidade de satisfazer suas necessidades.
Essa lógica permanece na sociedade capitalista no século XXI. Chesnais vislumbrou que capitalistas exigem por meio mercantil novas e mais mercadorias. Assim, os cientistas são cruciais para criar novos produtos. Neste processo, é valorizado o trabalho imaterial[i] dos pesquisadores para materialização de artefatos ou criação de sistemas com valores de uso. Retomando Sjaastad, os cientistas detentores de capital humano qualificado e produtores de conhecimento-mercadoria, ao se estabelecerem em seus novos territórios, consideram os gastos monetários e não monetários para que os gastos de sua transferência sejam recuperados.
Entretanto, a “diáspora de cérebros” que aqui destacamos não pode ser confundida com “mobilidade acadêmica”. No caso da mobilidade acadêmica, o que acontece é o trabalho temporário de um pesquisador, na maioria das vezes em nível de pós-graduação, como parte de desenvolvimento de pesquisas colaborativas entre países. O que estreita as duas ideias é a experiência internacional e a comparação que o jovem cientista faz da realidade de origem com a que provisoriamente está imerso. Isso favorece a fuga de cérebros de uma nação, poisa razão estratégica da internacionalização da educação superior, com origem no início da segunda metade do século XX, foi desenvolver políticas públicas de promoção da ciência, tecnologia e inovação e, igualmente, de crescimento e competitividade (MOREIRA; ARAÚJO, 2012).
Para Breinhauer (2007) a emigração de cérebros é um forte fenômeno acolhido por interesses políticos que têm como propósito aproximar o máximo de possuidores de capital humano qualificado. Busca-se, nesse intento, se aproveitar principalmente dos jovens cientistas e recém doutores que vivem em países cujas políticas nacionais para pesquisa, tecnologia e inovação são insuficientes e não garantem a permanência dos novos doutores pela falta de oportunidades.
O Brasil é um caso exemplar para a ocorrência deste fenômeno, pois realizou reformas políticas recentes como potências indutoras da emigração de pesquisadores. (Cf, Novo Marco Legal da Inovação no Brasil, Lei nº 13.243, de 11 de janeiro de 2016; e o PEC do Teto dos Gastos, Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016; Reforma Trabalhista – Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017; Reforma da Previdência – Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2019 e a atualmente em trâmite, a Reforma Administrativa, Emenda à Constituição (PEC), nº 32/2020).
Sob esta conjuntura de reformas políticas e de outras especificidades teóricas, procuraremos analisar e definir um quadro analítico e crítico sobre a emigração de cérebros do Brasil. Tendo como base evidências do cotidiano que expõem o declínio do investimento em pesquisa, ciência e tecnologia percebe-se, simultaneamente que a ciência é a principal ou umas das medulares saídas para crises econômicas e, consequentemente, sociais. A ciência é que permite, no limite conquistar a soberania nacional. O texto divide-se em duas partes. Na primeira centramo-nos no esclarecimento de alguns dados fundamentais sobre o atual contexto da pesquisa e dos cientistas no Brasil. Tal conjuntura apresenta como maior problemática o profundo corte no investimento em educação e pesquisa em todas as áreas do conhecimento. Na segunda parte, focamos na realidade política brasileira, orientada sob o regime de predominância financeira, circunstanciada pela Reforma do Aparelho do Estado e tendo guarida nas políticas neoliberais intensificadas pelas práticas ideológicas pelo atual governo.
A crise da ciência brasileira
Coincidentemente, no ano em que se celebra 70 anos da promulgação da Lei nº 1.310 que estabeleceu a criação do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq), com a finalidade de “promover e estimular o desenvolvimento da investigação científica e tecnológica em qualquer domínio do conhecimento”, o Brasil passa por um dos piores cenários no âmbito da ciência. Políticos aliados do presidente Jair Bolsonaro se apoiam no argumento de que a redução de investimentos em áreas essenciais como educação básica e superior e ciência foram provocadas pela “globalização” e pela pandemia do novo Coronavírus. Sabemos que a crise sanitária mundial proporcionada pelo COVID-19 atrapalhou o desenvolvimento de pesquisas em todo planeta. Porém, o argumento de que a crise científica brasileira é culpa da pandemia não se justifica pelo fato de que o declínio do investimento neste domínio vem ocorrendo há meia década.
Com mais de 500 mil mortes[ii] por COVID-19, número que por si só já diz muito, o fato teve como força indutora deste valor o negacionismo do Presidente. A dimensão da tragédia poderia ser menor se campanhas utilizando de informações científicas e orientações baseadas na ciência fossem realizadas desde o início da pandemia. Tal negligência com a ciência é representada pela figura do Presidente Jair Bolsonaro que, em vez verbalizar a importância do isolamento social e de outras medidas preventivas de propagação do/pelo contaminação do vírus, optou pelo negacionismo e por ações anticientíficas. Provocou aglomerações e, sobretudo, influenciou seus aliados políticos e seguidores por meio das redes sociais a ignorarem[iii] as recomendações de órgãos competentes como a Organização Mundial de Saúde (OMS). Vale destacar que o Brasil tem 2,7% da população do planeta e concentrou em maio de 2021,30% das mortes pela doença no mundo inteiro.
Acerca dessa tragédia de grandes proporções, indagamos: como tais fatos influenciam para emigração de cientistas do Brasil? A resposta pode ser encontrada na realidade política do país que vem se desenhando, principalmente, após o impeachment da ex-Presidenta Dilma Rousseff: desde 2016 o Estado brasileiro vem reduzindo em média o montante de 1,5 bilhão de reais por ano os recursos do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), com redução acelerada a partir de 2019, quando se retiraram mais de 2 bilhões de reais da pasta.
Gráfico 1 – Evolução dos Recursos para o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) – (2009 a 2021). Orçamento em R$ bilhões, atualizado pela inflação, Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA)
Fonte: Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e Lei Orçamentária Anual (LOA), 2021. Gráfico criado pelos autores.
No Gráfico 1 podemos observar o declínio de recursos para pesquisa no Brasil. O orçamento do MCTI para2021 é 78,25% menor do que o executado em 2008. Esta circunstância contribui para a desmotivação do trabalho de pesquisadores no país, induzindo a saída de profissionais qualificados uma vez que não há reconhecimento pelo seu trabalho no domínio da ciência. A pandemia é o epicentro desta conjunção de fatos, porque amalgamou negacionistas da política brasileira com o poder político, tendo como efígie máxima da anticiência o presidente eleito em 2018. Porém, a fuga de brasileiros da nação não se iniciou próximo da pandemia. Há uma década vem crescendo o número de brasileiros que se registram por meio da Declaração de Saída Definitiva do País, tendo seu ponto máximo no final da década passada. Segundo a Receita Federal[iv], o número de emigrantes brasileiros passou de 8.170 em 2011 para 23.271 em 2018, apresentando o crescimento de 184%. Até dezembro de 2019, 22.549 pessoas fizeram saíram definitivamente do Brasil. Tal crescimento pode ser verificado pelos seguintes números: 14.981 em 2015, 21.103 (2016)e 23.039 em 2017.
Segundo informações do Departamento de Imigração norte-americano[v], mais de 3 mil profissionais especializados nas mais diversas áreas do conhecimento – professores, engenheiros, programadores, médicos entre outros, pediram visto preferencial em 2020, no palco da pandemia, constituindo-se no segundo maior número de solicitações no século XXI. Esses pedidos são provenientes de trabalhadores com alta qualificação, principalmente cientistas, representando um aumento de quase 11% em relação ao ano anterior. No biênio 2019-2020, a procura pelo visto[vi] permanente dos tipos EB-1A, EB-1B e EB-2 cresceu quase 50% quando comparada aos anos de 2017 e 2018, e 135% com relação a 2015 e 2016.
Outro drama da ciência que assombra cientistas brasileiros é a dinâmica neoliberal que busca initerruptamente privatizar os serviços públicos. A produção de conhecimento, neste caso, muitas vezes é interrompida e pesquisas são descontinuadas por falta de verbas. Sob a racionalidade neoliberal, organizações privadas devem fomentar pesquisas científicas para seus interesses e as instituições públicas têm que se orientar da mesma forma, buscando fontes de investimento que não sejam provenientes do fundo público.
Dessa maneira, há heroísmo dos produtores de conhecimento no Brasil. Conseguem no contexto de crise produzir grande número de artigos científicos e colaborar no aumento da produção de patentes. Observa-se este fato por meio da alta produção científica brasileira, conforme indicam os dados do SCImago Journal& Country Rank de 2020: os cientistas brasileiros publicaram mais de 80 mil artigos científicos apenas em 2019, sendo 12 mil a mais que 2018, posicionando o Brasil no 15º lugar entre os países que mais produzem conhecimento, o que fez crescer também o número de citações de artigos científicos produzidos por pesquisadores do país.
Gráfico 2– Crescimento de número de pedidos de patentes por meios das instituições de ensino superior (IES) no Brasil entre (2000-2019). Valores em milhares.
Fonte: Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), 2021. Gráfico criado pelos autores.
Gráfico 3 – Bloqueios contínuos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), (2019 a 2021), valores em R$ bilhões.
Fonte: Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e Lei Orçamentária Anual (LOA), 2021. Gráfico criado pelos autores.
Dois conjuntos de informações relevantes que precisam ser racionalizados e influenciam de modo direto na emigração dos cientistas brasileiros é o volume de conhecimento produzido x verbas concedidas pelo Estado. Conforme esclarecemos, se a produção científica no Brasil atinge patamares elevados com relativamente baixo volume de investimentos, cada vez mais reduzidos, um dos notórios caminhos para os jovens cientistas e pesquisadores é buscarem oportunidades em outros países. Compensar esta disparidade nunca foi objetivo da atual presidência do Brasil. Segundo Silva Júnior e Fargoni (2020, p. 9), a realidade política brasileira após o impeachment em 2016 e, sobretudo, com as eleições de 2018, produziu um novo ciclo autoritário imposto de fora, por meio do novo regime de acumulação com guarida no neoliberalismo[vii]. Podemos observar este fato ao comparar a discrepância de produção x investimento nos Gráficos 2 e 3. Enquanto cientistas do Brasil produzem conhecimento próximo aos números das economias mundiais hegemônicas, ocorre o contingenciado do fundo público para desenvolvimento científico e tecnológico, sendo que os valores bloqueados desde 2019atingiram montante superior a 90%.
O volume da produção científica brasileira decorre do intenso trabalho de professores-pesquisadores e de jovens cientistas alocados nos programas de pós-graduação. Mesmo sendo sabotados por políticos negacionistas, buscam alternativas, muitas vezes em outras nações, como acolhimento para desenvolverem seus trabalhos.
Todavia, a emigração de cérebros não é somente uma preocupação da academia, é também política e, sobretudo, social. Ao configurar a saída de cientistas do Brasil, exterioriza-se a fragilidade do governo em produzir oportunidades e mecanismos que assegurem e fortaleçam a ciência nacional. Para Peixoto (1999), perder profissionais com capital humano qualificado é perder parte de sua economia e cultura, com incidência em outros âmbitos. Torna-se claro que o conjunto da produção científica tem caráter social indiscutível, gerando vacinas, soluções para o meio ambiente, modelos educacionais alternativos dentre outros fatores cruciais que não se resumam a dimensão meramente mercadológica.
A forma política do bolsonarismo
O diagnóstico da ciência brasileira, ponderado nas linhas anteriores, tem como fonte de sua assolação as políticas neoliberais provenientes do regime de predominância financeira. A Reforma do Aparelho do Estado (Cf SILVA JÚNIOR; SGUISSARDI, 1999), derivada do regime de predominância financeira foi, e ainda é, a principal política que estabeleceu e estabelece mudanças em toda Esfera Pública no Brasil. As políticas fragmentadas em Projetos de Lei, Emendas à Constituição, Medidas Provisórias, entre outros formatos são parte da lógica da reforma do Estado que vem se desenvolvendo desde a década de 1990 e tem, em 2021, abrigo e expansão na forma política de Jair Bolsonaro.
Chamamos de expansão da reforma do aparelho do estado, por se tratar da intensificação das políticas neoliberais repaginadas como ultraliberais. Por isso, há no ultraliberalismo econômico Bolsonarista particularidades que não são completamente avançadas no neoliberalismo, uma vez que no campo neoliberal ainda há espaço para a crítica, enquanto no Bolsonarismo a crítica é recebida como um ataque. Em consequência, temos o vislumbre de políticas públicas que propõem a redução[viii] dos direitos para transformá-los em mercadoria. Esta é a tática do Ministro da Economia Paulo Guedes, que em vez de desenvolver projetos para crescimento econômico do país, desenvolve que aprofundam a crise econômica, ao mesmo tempo em que agrava a vida dos brasileiros.
Silva Júnior e Fargoni (2020, p. 22) denominam esta forma política do Bolsonarismo de “necropolítica brasileira”, que funde como pacto ultraliberais com figuras políticas totalitárias, que reproduzem atitudes e estética fascista (Cf GOMES, 2020; MARTINEZ, 2020; PUCCI, 2020). Neste sentido, Tales Ab’Sáber, em entrevista para a Revista Cult, vai além do pensamento econômico, identificando no neofascismo bolsonarista o resgate do fascismo brasileiro alimentado inconscientemente pela “profunda tradição reacionária, colonial escravocrata, luso monarquista, que cindiu nação de sociedade, riqueza e trabalho escravizado, nas raízes do país” (AB´SÁBER, 2021).
Sobre a ciência em tempos de bolsonarismo, uma característica se constitui na base principal do declínio no investimento em pesquisa e educação superior: o negacionismo. Antes de aprofundarmos esta questão, vale ressaltar que tal característica é também uma das categorias fundantes do bolsonarismo. E não são poucas. Silva Júnior e Fargoni (2020, p. 11-15) ao analisarem o contexto histórico e político brasileiro, apoiaram-se em Arendt (1989), Adorno (1995), Butler (2019), Mbembe (2016), Pochmann (2017), dentre outros intelectuais de diversas áreas do conhecimento,estabelecendo13 categorias que definem o bolsonarismo:
1) Idolatria às tradições; 2) Reacionarismo; 3) Anti-intelectualismo ou negacionismo; 4) Autoritarismo e prepotência; 5) Aversão à pluralidade; 6) Pacto com as elites; 7) Nacionalismo servil; 8) Necropolítica ou necro-estado; 9) Belicosidade; 10) Milicianismo; 11) Meritocracia; 12) Intolerância e preconceitos (machismo, homofobia, xenofobia) e 13) Propaganda. Das treze categorias, destacamos o anti-intelectualismo ou negacionismo:
Da mesma forma que fascistas não são adeptos do conhecimento científico, no Bolsonarismo existe aversão ao pensamento aprofundado ou de reflexão. Existe estratégia, exercício de controle e ideias na cúpula dos políticos bolsonaristas para dominação de massas, mas o Bolsonarismo em prática, absorvido pelo eleitor, na forma de agir, está na ação rápida por violência física ou verbal. A maioria das decisões fascistas é tomada por instintos e não por estudos ou pesquisa. No fascismo ideológico, considera-se como “fraqueza” o planejamento científico. A repulsa ao mundo intelectual é típica do fascismo e do Bolsonarismo, como pode ser observado no ininterrupto ataque dos bolsonaristas às universidades públicas. (SILVA JÚNIOR; FARGONI, 2020, p. 12)
É no negacionismo bolsonarista que se abriga a repulsa pela ciência e, por conseguinte, a atual e intensa desvalorização da ciência no país. Nesta conjuntura, os jovens doutores se sentem desamparados pela falta de oportunidades no mercado de trabalho, afetada pela crise econômica provocada pelas políticas neoliberais e, além de se encontrarem desassistidos pela ineficiência política na gestão da ciência no país.
Segundo Oliveira (2020), ocorreu no Brasil uma crise epistêmica, motivada pela queda de investimentos em ciência a partir de 2016 e agravada em 2019. Este fenômeno encontra-se associado ao que Silva Júnior e Fargoni (2020) e Ab´Sáber (2021) caracterizaram como uma troca de governo que se baseava, ainda, em dados e protocolos científicos e na “confiança nas instituições, para um outro regime regulado pela crença individual e pela experiência pessoal, dando voz a movimentos conspiratórios em que a informação é um campo de disputa sobre a produção de narrativa” (Oliveira, 2020, p. 22).
Bolsonaro utiliza o negacionismo como política. A pandemia global de 2020 e 2021 é o retrato desta prática. Recordemos que antes de 5 mil mortes por COVID-19, em março de 2020, o presidente do Brasil verbalizou[ix] que nenhuma “gripezinha” o derrubaria. Em junho de 2021, são mais de 500 mil mortes derivadas de muito negacionismo e negligência com a ciência e a pesquisa no Brasil. Uma das consequências do desdém pela ciência, segundo dados do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE),é que o desemprego entre mestres e doutores em 2020 atingiu 25%, enquanto a taxa de desocupação desse mesmo grupo no restante do mundo encontra-se em torno de 2%. Portanto, a fusão do pensamento negacionista bolsonarista com as políticas neoliberais e ultraliberais que orientam a economia brasileira desde o Consenso de Washington, atualmente acentuado por reformas políticas fracassadas, contribuem de modo direto para o que chamamos de diáspora de cérebros no Brasil ou, também, o abandono dos novos doutores e cientistas de suas carreiras de formação pela carência de oportunidades.
Considerações finais
Apresentamos no presente texto breve análise e descrição do que é a diáspora de cérebros ou o famoso braindrain no Brasil. Retratamos, por meio de dados cotidianos, o drama que os cientistas experimentam para produzir conhecimento num país que se afunda cada vez mais na crise econômica. Mostramos, também, como a forma política do bolsonarismo desprezou (e continua a desprezar) a ciência, mesmo sendo um dos âmbitos em que mais se escoram os países que se desenvolveram e conquistaram espaço no mercado capitalista mundial.
O fenômeno das diásporas de cérebros encontra-se relacionado com a forma mercantil de condução das políticas e da economia praticadas pelas nações capitalistas em todo o mundo. O governo brasileiro poderia se valer do melhor da inteligência nacional que possui, espalhada pelas universidades estatais em todo o território nacional, em que se encontram milhares de profissionais qualificados, com trajetórias e carreiras já consolidadas, e em formação, que vem colaborando com diversas outras nações na produção de conhecimento científico não apenas com caráter mercadológico, mas também inovativo, criativo, crítico e, sobretudo, estruturante de políticas públicas – isso integra as melhores práticas internacionais.
A título de exemplo, a emigração de cérebros na Coréia do Sul foi revertida por meio de um grande esforço do governo, em especial através do desenvolvimento de políticas públicas que asseguraram o emprego, novos projetos para pesquisadores em formação ou para que os jovens doutores permanecessem no país. Privilegiou-se o desenvolvimento de novas tecnologias e foram incentivados trabalhos críticos para fomentar o desenvolvimento da educação. O apelo político doméstico teve como base ações estratégicas por meio de reformas legais para benefício da autonomia e permanência dos seus pesquisadores. De acordo com Yoon (1992), as políticas exitosas para preservar intelectuais e cientistas em formação no país requer subsídios para pequenas e médias empresas nacionais, oportunidades para pesquisadores autônomos e para todos os cientistas que tiverem interesse em produzir conhecimento inédito ou crítico para sua área de conhecimento, com ou sem vínculo nas instituições de ensino superior no país.
As ideias estão postas. Boas referências existem no mundo inteiro. Cabe aos atuais (ou a outros) políticos brasileiros colocarem em prática, por meio do estado democrático de direito e valendo-se da melhor inteligência nacional, os mais criativos projetos. Tudo isso se encontra na base territorial brasileira, nas mais diversas áreas, aguardando investimentos adequados em ciência, tecnologia e inovação.
*João dos Reis Silva Júnior é professor titular do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
*Afrânio Mendes Catani é professor titular na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).
*Everton Henrique Eleutério Fargoni é doutorando em educação na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
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Notas
[i] Com base nos escritos de Marx, em sua obra Grundrisse(2011),Gorz (2005) eLazzarato (1993) definiram que trabalho imaterial é caracterizado como um trabalho sem substância física, tendo forte predominância nos trabalhos intelectuais por meio da pesquisa, da produção de conhecimento, da administração e da gerência. A informação e o conhecimento são, assim, considerados o núcleo do trabalho imaterial.
[ii] ‘Marco sombrio’ de 500 mil mortes e ‘protestos contra o presidente’: a tragédia brasileira na imprensa internacional. BBC News Brasil, 20 jun. 2021. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/
internacional-57545730> Acesso em: 20 jun. 2021.
[iii] Bolsonaro critica OMS dizendo que a entidade “não acerta nada”. Ele também colocou em dúvida novamente os números de mortes divulgados pelas secretarias estaduais de Saúde. SCHUCH, M. Valor Investe, 18 jun. 2020. Disponível em: <https://valorinveste.globo.com/mercados/brasil-e-politica/noticia/2020/06/
18/bolsonaro-critica-oms-e-diz-que-entidade-no-acerta-nada.ghtml>Acesso em: 14 jun. 2021.
[iv] Disponível em: <https://receita.economia.gov.br/interface/cidadao/irpf/2018/declaracao/declaracao-de-saida-definitiva> Acesso em: 13 jun. 2021.
[v] Disponível em: <https://br.usembassy.gov/pt/news-events-pt/> Acesso em: 13 jun. 2021.
[vi] EB-1A é o visto para profissionais com habilidades extraordinárias, EB-1B para professores e pesquisadores e o EB-2 é a petição em que se enquadram profissionais dos mais diferentes setores, mas que tenham mais de dez anos de experiência comprovada,devendo também atestar que seus trabalhos podem colaborar com a economia, cultura ou educação nos EUA.
[vii] Segundo Fargoni Et. Al (2021, p. 20), o novo modo de regulação política noBrasil, por meiodo Bolsonarismo, amalgama reacionarismoe negacionismo com neoliberalismo, produzindo rápida destruição de direitos, aomesmo que acentua a mercantilização das atividades humanas, precarizando trabalhos enquanto reduzir aEsfera Pública.
[viii]Conforme citamos anteriormente, as ações governamentais materializaram na PEC do Teto dos Gastos, Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016; Reforma Trabalhista – Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017; Reforma da Previdência – Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2019 e a atualmente em trâmite, a Reforma Administrativa, Emenda à Constituição (PEC), nº 32/2020.
[ix] ‘Não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar’, diz Bolsonaro sobre coronavírus. COLETTA, R. D.; CHAIB, J.; URIBE, G. Folha de S. Paulo, 20 mar. 2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.
com.br/poder/2020/03/nao-vai-ser-uma-gripezinha-que-vai-me-derrubar-diz-bolsonaro-sobre-coronavirus.shtml> Acesso em: 15 jun. 2021.