Por SÉRGIO DE CARVALHO*
Comentário sobre o último livro de Augusto Boal
Em certo sentido, A estética do oprimido é uma re-escritura do nome de seu autor. Sua metáfora central parece estar num relato sobre os índios Pirahá, de Roraima. Segundo Augusto Boal, ao longo da vida eles mudam de nome porque acreditam que o avançar da idade os transforma em outras pessoas: “mentiriam se guardassem os mesmos nomes: já não são o que foram”.
É uma obra de recusa à imobilização do próprio legado. Sábio na arte de chamar as coisas pelos nomes certos, porque “as coisas precisam ser nomeadas para serem reconhecidas”, Boal compõe nesse livro um caleidoscópio negativo em que, para fluidificar o nome “Teatro do Oprimido” tantas vezes identificado com o autor, repensa seu sentido a partir de uma questão crucial: a necessidade da superação da estética.
Mais do que qualquer outro artista do teatro brasileiro, foi Augusto Boal quem levou às últimas conseqüências o projeto modernista de, por meio da arte, ultrapassá-la. Aquilo que se apontava no trabalho do Teatro de Arena, cuja força estava em extrair seus critérios teatrais da luta social e política, ganhou atitude ainda mais extraestética no Teatro do Oprimido.
O livro publicado em 1974, O teatro do oprimido e outras poéticas políticas, era apenas um primeiro passo do movimento. Correspondia antes a uma síntese teórica do aprendizado como dramaturgo e diretor na fase de espetáculos do que a uma abertura de projeto. Mas o nome – que aludia à pedagogia de Paulo Freire – estava dado. E o que ele invocava era novo, um deslocamento maior para fora do mundo da cultura teatral. Amplificado pela condição de autor exilado, o posicionamento teria consequências.
Desde então, Augusto Boal passou a ser visto pelo teatro brasileiro como um estrangeiro. Algo que sua formação em química e sua especialização em drama pela Universidade de Colúmbia já anunciavam, e que sua difusão latino-americana confirmava. A celebridade mundial posterior só fez reforçar a imagem do ilustre desterritorializado. Mas o desconforto real vinha da recusa à idéia de cultura como privilégio de classe.
O fundamento conceitual do Teatro do Oprimido, cujas várias estratégias são definidas nos trabalhos seguintes (sobretudo no livro Stop c´est magique) é muito simples, quase uma fórmula que só ganha sentido na prática: toda pessoa têm, mais do que o direito à produção artística, o dever da prática poética como instrumento de libertação. Para Boal, existe um sufocamento social da “atividade estética” num tempo de predominância do consumo passivo de imagens. Em contrapartida, “quando às pessoas comuns se oferece a possibilidade de realizar um processo estético do qual foram alienadas, isso pode aprofundar sua percepção da vida, dinamizar o desejo de transformação”.
Desde sua origem, portanto, o Teatro do Oprimido se entende como um “ensaio de transformação do real” realizado por grupos de pessoas que enfrentam sua condição de seres coisificados – social, econômica e culturalmente. E o exercício da autonomia artística surge como símbolo do descondicionamento social, político e cultural.
A novidade contida em A estética do oprimido está na retomada enfática de uma valorização estética que nunca esteve afastada do projeto, mas que agora se dá a partir de sua desmontagem. Não sendo propriamente um retorno do Teatro do Oprimido ao campo artístico, é como se Boal precisasse reafirmar a origem do projeto para evitar descaminhos. O remédio, a arte, é também veneno, conforme a dosagem.
Nascido de uma crítica ao que considerou uma tendência populista de sua geração – manifesta na idéia de “levar arte ao povo” – o Teatro do Oprimido se desenvolveu como ferramenta de intervenção social dos oprimidos com base na ativação artística. Nunca se destinou, portanto, aos consumidores de arte, mas a formar multiplicadores.
Por ser um trabalho de fronteiras, no entanto, não é incomum que alguns desses multiplicadores se utilizem do método a partir de um dos aspectos isolados, separando o que é inseparável na poética de Boal: teoria e prática. Para alguns, bastaria a simples menção temática do problema social por parte dos participantes para que o efeito pedagógico do teatro se anunciasse. Para outros, o contato com a dimensão desalienante do trabalho artístico já conteria em si o germe da libertação.
Recusando a simplificação, A estética do oprimido enuncia a convicção de que o necessário aprofundamento da dimensão estética exige uma desconfiança das formas hegemônicas de arte. Desde O arco íris do desejo, Boal não retomava com tanta insistência a idéia de que “o policial está na nossa cabeça”. Só que alusão, agora, não é psíquica, mas anti-ideológica. Assim como o oprimido carrega o opressor nas suas representações mentais (o que refuta uma representação dualista do conflito), a arte teatral carrega formalizações estéticas dominantes que enunciam a visão de mundo dos dominadores.
E se “nenhuma estrutura de dança, música ou teatro é vazia”, surge a necessidade de uma confrontação estética inédita. Já não basta – ainda que daí que nasça o embate – o “lampejo de descontentamento” dos dominados em relação às idéias e formas dominantes. É preciso uma oposição maior, interna e externa, contra os ritmos impostos pelos bombardeios da indústria do imaginário, num tempo em que a estética converteu-se em serviçal eficaz do imaginário capitalista.
Assim, na mesma medida em que defende o desenvolvimento de uma razão sensível, capaz de superar a hegemonia verbal do pensamento simbólico, Boal observa que o principal efeito dos “estímulos sensoriais violentos da sociedade do espetáculo” é o obscurecimento de qualquer forma de pensamento.
Um Teatro do Oprimido realmente ativador – em tempos de superindústria cultural – têm que levar em conta – de um modo sensivelmente crítico – o “princípio básico da hipnose televisiva”, que é “olhar sem ver”, processo de acúmulo anestesiante de informações estéticas que não passam pela consciência.
A “transcendência estética da razão” de que fala Boal está, assim, longe de qualquer irracionalismo ou sensorialismo pós-moderno. Se a arte pode mesmo ajudar a melhorar a vida, como ele acredita (e tantos de nós), isso passa pela instauração de processos desapassivadores em que os estragos têm nome. E mesmo a opressão, tão fluida, pede que suas estruturas se revelem como realizações de agentes concretos existentes.
É um trabalho que exige uma mudança das práticas produtivas, a invenção de outras modalidades de produção e comunicação (conceito de origem do Teatro do Oprimido). E que se completa neste livro de Boal com a radicalização de uma prática da “distância estética” como ferramenta de compreensão. Não basta saber que “imagens, palavras e sons não circulam livres pela sociedade”, é preciso saber como participamos desse processo para construirmos lugares e formas de oposição.
A cada vez que declarou sua múltipla identidade, Augusto Boal reinventou sua ação artística. Sua atitude, impressa em cada recanto de sua obra notável, é de uma impressionante alegria. Só alguém que conheceu de perto a “nefasta e mortal melancolia” seria capaz de uma obra tão avessa à resignação e ao conformismo. Tão capaz de tornar-se coletiva. Seu nome continua em movimento.
*Sérgio de Carvalho é dramaturgo, diretor da Companhia do Latão e professor na ECA-USP.
Referência
Augusto Boal. A estética do oprimido Rio de Janeiro. Garamond / Funarte,
254 p (https://amzn.to/3KJw3kW).