Por REGES SODRÉ*
A estratégia da extrema direita transforma a desigualdade regional em arma política, convertendo a crise econômica em ódio tribal que beneficia as mesmas elites que exploram todo o território nacional
O preconceito regional não é uma novidade na cena social e política brasileira. Ele acha suas origens na formação territorial do país, marcada por uma composição social de origem diversa e profundas desigualdades regionais. Revoltas históricas como a Confederação do Equador, em Pernambuco (1824), a Revolução Farroupilha, no Rio Grande do Sul (1835-1845), e a Revolução Constitucionalista, em São Paulo (1932), dão conta de momentos de grande ebulição regional embebidos de sentimentos separatistas.
Em períodos de crises conexas[1], como esse que vivemos desde o final dos anos de 1980, mas intensificado nos últimos 15 anos, os sentimentos regionalistas recrudescem e a discussão separatista volta à tona[2]. Trata-se de mais um dispositivo que vai se constituindo em um dos elementos centrais de governamentalidade de uma sociedade cada vez mais ingovernável[3], por isso, a extrema direita o estimula e dele se apropria.
O preconceito regional na cena política brasileira (2010-2025)
Em 31 de outubro de 2010, Dilma Rousseff era eleita, com 56,05% dos votos validos, a primeira mulher presidenta do Brasil. A petista ganhou em todos os estados do Nordeste, conquistando 70% dos votos, ante 30% de Serra, seu oponente naquele pleito. Nos três maiores colégios eleitorais nordestinos o percentual superou os 70% dos votos validos – Bahia (70,8%), Pernambuco (75,6%) e Ceará (77,3%). No dia seguinte um mapa na capa da Folha de S. Paulo mostrava a polarização regional da votação eleitoral e uma das manchetes da cobertura dizia: “Dilma constrói vitória no nordeste”[4].
Na noite de eleição de Dilma, uma estudante de direito de São Paulo, fez um Twitter que gerou grande repercussão: “Nordestisto [sic] não é gente. Faça um favor a SP: mate um nordestino afogado”. Ela ainda disse em outra publicação: “AFUNDA BRASIL. Deem direito de voto pros nordestinos e afundem o país de quem trabalha para sustentar os vagabundos que fazem filho pra ganhar o bolsa 171”. A partir daí uma série de mensagens de ódio contra os nordestinos foram propagadas na rede social ao que foi seguido de defesas e repúdios.
Naquela noite do dia 31 de outubro, o assunto ficaria entre os três mais comentados do mundo no Twitter. Nos dias seguintes, a estudante foi identificada e depois condenada pela Justiça, mas, a tampa do preconceito regional não foi mais fechada e esse evento pode ser considerado um marco de sua circulação e mobilização nas últimas décadas no Brasil. Aí foi plantado uma das sementes que se transformou em uma ferramenta política de aglutinação da extrema direita nos anos seguintes.
No pleito eleitoral de 2014, em uma votação apertada, Dilma Rousseff foi reeleita presidenta, vencendo Aécio Neves, com 51,64% dos votos válidos. Mais uma vez, a região Nordeste teve um peso importante no resultado, e com isso, houve uma verdadeira explosão de casos de xenofobia. Naquele ano, menções ofensivas a pessoas do Nordeste nas redes sociais cresceram 365,46%, com 9.921 casos[5].
Toda aquela campanha eleitoral teve no preconceito regional dirigido aos nordestinos um papel importante. O candidato do PSDB chegou a acusar o PT de plantar nas redes sociais mensagens de ódio aos nordestinos e em seguida mobilizar hashtags do tipo #MenosÓdioMaisNordeste para angariar votos. Até os ex-presidentes Lula e FHC trocaram acusações após o primeiro dizer que Dilma crescia nos “grotões” do país com os votos dos “desinformados”, sendo acusado por Lula de se referir ao Nordeste.
No entanto, essa aspiral de difusão do preconceito regional ganha dimensão central a partir da ascensão de Bolsonaro na cena política brasileira na eleição de 2018. Um dos eixos centrais de seu discurso foi mobilizar o ódio contra nordestinos, tanto no período eleitoral, como no exercício da presidência e depois de sair dela. Se no início ele direcionou ataques a moralidade, a estética e a intelectualidade[6], em um segundo momento, em discursos proferidos na região Sul, pregou ações de hostilidade contra os migrantes nordestinos que ali viviam[7].
Capilaridade do preconceito regional no tecido social
Se for realizado uma reconstrução considerando o mesmo período analisado na seção anterior, de 2010 a 2025, dos casos de preconceito regional para além do campo político-partidário, veremos uma notável correspondência. Para começar, a menos de um ano depois da vitória de Dilma em 2010, no dia 11 de maio de 2011, após o Ceará eliminar o Flamengo pela Copa do Brasil, um tsunami de ataques foi dirigido aos nordestinos por torcedores do time carioca. Em uma das mensagens, uma usuária do Twitter, dizia: “esses nordestinos pardos, bugres, índios acham que tem moral, cambada de feios. Não é atoa [sic] que não gosto desse tipo de raça”.
Em 2014, ano de pleito eleitoral, a cearense Melissa Gurgel, foi escolhida Miss Brasil e logo após sua eleição, a internet foi inundada com frases preconceituosas direcionada a ela e aos nordestinos. Já em 2017, um caso bastante emblemático e que sai das redes sociais, aconteceu em um jogo entre Paraná e Vitória, em Curitiba, quando torcedores do time paranaense entoaram gritos de “Bolsa Família” direcionado aos torcedores do rival[8]. Trata-se, nesse caso, de mobilizar o estigma de que os nordestinos seriam dependentes dos recursos desse programa e em virtude disso, se recusariam a se inserir no mercado de trabalho.
Embora o preconceito regional contra os nordestinos seja predominante, é necessário lembrar que há também um forte preconceito contra os amazônidas, envelopado no secular desprezo pelos indígenas. E mais uma vez o futebol nos fornece um exemplo, que vem de um confronto entre Manaus F.C e Caxias, pela série D do Campeonato Brasileiro, em 2019. Naquele jogo, torcedores do time gaúcho proferiram diversas frases preconceituosas contra os moradores da região: “Eles usam internet por lá? Pra cima deles Caxias”, “Vamos levar uns jesuítas pra educar esses índios”, “Não existe nada mais chato que essas baratas humanas manauaras trocam o acesso por espelho e escova de cabelo”, “Tá fácil subir esse ano. O time dos índios paparrola é muito fraco”[9].
Nesse contexto, nota-se que se preconceito regional já havia saído da esfera da internet e ido além dos ciclos eleitorais, nos anos recentes ele ganha materialidade nas geografias da vida cotidiana, especialmente de nordestinos e nortistas que vivem em cidades da região sul. Os crescentes episódios de ameaças verbais, xingamentos, conflitos com vizinhos, tem feito com que diversas pessoas do Nordeste e Norte evitem espaços públicos e modifiquem suas rotinas com medo de violência em diversas cidades sulistas[10].
Até mesmo a vida no trabalho pode ser importunada e violentada pela simples suposição de que se trata de um migrante nordestino/nortista, o que só mostra o quanto o regionalismo no Brasil é uma categoria racializada. Para citar apenas um exemplo recente, no início de 2025, um visitante começou uma discussão com um vigilante do Parque Malwee, em Jaraguá do Sul (SC), em razão de uma infração de trânsito, e sem mais, direcionou aos gritos a seguinte frase ao trabalhador: “Era para ficar no Nordeste passando fome”[11].
Regionalismo neoliberal e a extrema direita
Esse preconceito regional difuso tem sido apropriado pela extrema direita como um modo de organização e governo da sociedade. Seus agentes passam a estimular controle migratório interno e separatismo. No primeiro caso, temos o exemplo da proposta apresentada, no dia 25 de agosto, pelo vereador Mateus Batista (União Brasil), que defende a restrição de migração de pessoas do Norte e Nordeste para Joinville. Na ocasião ele disse que “Santa Catarina vai virar um grande favelão” se não restringir a migração de habitantes daquelas regiões. Ele foi apoiado por vários deputados federais do PL de SC.
Em relação ao separatismo, figuras como o Dep. Federal Paulo Bilynskyj (PL-SP) e o governador Jorginho de Melo (PL-SC), fizeram falas recentemente explicitas sobre a criação de um país a partir das regiões Sul-Sudeste. Essas intervenções reforçam e reverberam uma verdadeira inflação discursiva que tomou conta das redes sociais, inclusive com ilustrações cartográficas, de um país decomposto, o qual seria dividido em Brasil do Norte e Brasil do Sul.
O modo de governo neoliberal se expressa na dimensão espacial no crescente amuralhamento da sociedade, seja com os controles de fronteiras internacionais, os condomínios fechados nas cidades ou os filtros nas divisas regionais. O solo e o sangue, são os ingredientes centrais da mobilização do preconceito regional. O primeiro, elemento de raiz, o segundo, a seiva da vida que corre e o irriga[12]. Assim, o regionalismo sulista-sudestino se traduz na proteção do destino da comunidade, das origens das tradições oriundas da Europa, dos valores familiares e da religião cristã.
Como não há no horizonte a possibilidade de construção de uma sociedade igualitária, o que se mobiliza são identidades tribais como forma de justificar a pobreza crescente, que aparece nesse cenário como uma decorrência de fluxos migratórios ou de regiões exploradoras. Cria-se a lógica do inimigo externo que impede um futuro brilhante para a região e ainda ameaça o passado de valores sólidos. O potencial de mobilização e de fonte de autoestima para parte dos moradores empobrecidos é enorme – ganha-se uma causa para lutar. É nesse cenário que aparecem os políticos de extrema direita oferecendo a solução separatista.
Dessa forma, as identidades regionais são mobilizadas como único horizonte de salvar uma parte da população do próprio empobrecimento. A queda do nível de vida da classe média e trabalhadora do Sul/Sudeste não aparece como decorrente da concentração de renda nas mãos das suas próprias elites, mas da exploração advinda de pobres do Norte/Nordeste. Ao mesmo tempo, os moradores dessas últimas tendem a ver mais o ressentimento vindo do centro-sul do que as raízes da degradação geral. O sentimento regionalista atua como ópio das massas, encobrindo as verdadeiras causas de seu empobrecimento.
*Reges Sodré é professor de geografia na Universidade Federal de Rondonópolis (UFR).
Notas
[1] SAFATLE, V. Violências e libido: fascismo, crise psíquica e contrarrevolução molecular. Estilhaço, v. 1, p. 1-18, 2023.
[2] ANDRADE, M. C. As raízes do separatismo brasileiro. São Paulo: Editora UNESP/Sagrado Coração, 1999.
[3] CHAMAYOU, G. A sociedade ingovernável: uma genealogia do liberalismo autoritário. São Paulo: Ubu, 2020.
[4] Folha de São Paulo. Acervo. 2010. Disponível neste link.
[5] MATSUURA, S. Relatório detalha em números explosão de preconceito na internet em 2014. O Globo, 10 fev. 2015. Disponível neste link.
[6] SARDINHA, E. Cabeçudo, pau de arara, paraíba: dez vezes em que Bolsonaro foi preconceituoso com nordestinos. Congresso em Foco, [s.l], 09 out. 2022. Disponível neste link; SENA, Y. Vamos acabar com coitadismo de nordestino, de gay, de negro e de mulher, diz Bolsonaro. Folha de São Paulo, [s.l], 23 out. 2018. Disponível neste link.
[7] SCORVO, T. VÍDEO: Bolsonaro volta a atacar nordestinos em evento em Santa Catarina. Fórum, [s.l], 31 jul. 2024. Disponível neste link.
[8] PIRES, B. Torcedores do Paraná debocham de nordestinos com gritos de “Bolsa Família” em estádio. El Pais, [s.l], 20 abr. 2017. Disponível neste link.
[9] BLINK, C. Torcedores do Caxias usam redes sociais para destilar preconceito contra Manaus. Congresso em Foco, [s.l], 21 jul. 2019. Disponível neste link.
[10] ANÍBAL, F. Cercados pela intolerância. Revista Piauí, [s.l], 08 nov. 2022. Disponível neste link.
[11] COSTA, M. Vigilante sofre preconceito em parque de SC: ‘Era para ficar no Nordeste passando fome’. Nd+, Joinville, 24 fev. 2025. Disponível neste link.
[12] MBEMBE, A. Brutalismo. São Paulo, N-1 edições, 2021.
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