A FFLCH-USP diante do horror

Sliman Mansour, “Rituais sob Ocupação”, 1989
image_pdf

Por ARLENE CLEMESHA, ADMA MUHANA & VLADIMIR SAFATLE*

Romper com as estruturas que normalizam o extermínio é um ato de rigor acadêmico e uma responsabilidade humana inalienável

1.

Após um debate longo, a Congregação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH-USP) decidiu, por ampla maioria (46 votos a favor, quatro contra e quatro abstenções), romper o Acordo de Cooperação mantido com a Universidade de Haifa, Israel.

Foi uma decisão meditada, após debates longos nos quais todas as posições foram ouvidas e tiveram espaço de argumentação. Prevaleceu o entendimento de que a prática de genocídio, cometido pelo Estado israelense e amparado por suas instituições, deve receber da comunidade internacional um gesto claro de repúdio.

Como resultado de sua postura ética, a FFLCH, a maior faculdade de humanidades do Brasil e da América Latina, vem sendo caluniada e acusada de praticar “intolerância” e “hostilidade seletiva” contra Israel. Seus detratores parecem querer ignorar que a Universidade de Haifa é parte orgânica do estado israelense, abrigando três colégios militares que compõem o Complexo Acadêmico Militar israelense, o qual a universidade afirma “constituir a espinha dorsal dos programas de treinamento de elite das IDF”.

Basta ler, no site da própria universidade, que esta oferece cursos na base militar de Glilot e equipamentos aos soldados que perpetraram o massacre em Gaza (Military-Colleges-Complex-October_2021.pdf).

Tais detratores divulgam que a FFLCH seria intolerante ao romper um Acordo acadêmico, mas escondem à opinião pública de que tal ruptura não se dirige contra pesquisadores individuais e afeta pouco a cooperação científica entre os próprios acadêmicos. A circulação de professores continua, a circulação de alunos sequer existiu.

Esse ato de ruptura é, na verdade, a maneira que as instituições acadêmicas têm de expressar sua forte oposição a uma situação de crime – o genocídio –, que vem sendo normalizado, ocultado e até apoiado, não só pela Universidade de Haifa e por outras instituições acadêmicas israelenses, como por diversos setores da sociedade civil brasileira.

A FFLCH da USP, do mesmo modo que a Unicamp e outras conscientes universidades brasileiras, não desviou os olhos, nem fingiu que não era da sua responsabilidade acadêmica se manifestar contrariamente a esse crime.

2.

A própria ONU e a Corte Internacional de Justiça reconhecem que é da responsabilidade de seus países membros, não colaborar com a violação da lei internacional promovida por Israel na sua ilegal ocupação dos territórios palestinos.

Ou seja, os boicotes acadêmicos e culturais, assim como as sanções econômicas contra Israel, enquanto este mantiver as mencionadas situações de flagrante ilegalidade, estão ancorados na lei internacional. Quando o sistema mundial falha, são os Estados, suas instituições e a sociedade civil que devem fazer com que a lei internacional seja aplicada.

As censuras à FFLCH ignoram, inclusive, a carta pública “Judeus Exigem Ação”, lançada há poucas semanas por um agrupamento internacional de acadêmicos e intelectuais judeus, e subscrita por milhares de judeus ao redor do mundo. A carta afirma enfaticamente que a “pressão [internacional] deve continuar para que possamos alcançar uma nova era de paz e justiça para todos, palestinos e israelenses”.

Portanto, longe de a decisão da FFLCH expressar “intolerância”, o que ela expressa é a adesão a todas as vozes que hoje clamam pelo fim do genocídio através de medidas, sejam elas simbólicas ou efetivas, mas sempre não violentas, de boicote acadêmico, cultural, comercial e militar ao Estado e às instituições do Estado que cometem ou normalizam uma situação de crime de genocídio e limpeza étnica.

A FFLCH se recusa a esconder-se atrás de uma pretensa neutralidade institucional, quando o que está em jogo são dezenas de milhares de vidas humanas, eliminadas e mutiladas por um longo processo de dominação, desumanização, colonialismo e, agora, sangrento genocídio.

*Arlene Clemesha é professora de história árabe contemporânea da Universidade de São Paulo (DLO-USP). Autora, entre outros livros, de Marxismo e judaísmo: história de uma relação difícil (Boitempo). [https://amzn.to/3GnnLwF]

*Adma Muhana é professora do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo (USP). Autora, entre outros livros, de Poesia e Pintura ou Pintura e Poesia. Tratado Seiscentista de Manuel Pires de Almeida (Edusp). [https://amzn.to/4oUd6xJ]

*Vladimir Safatle é professor titular de filosofia na USP. Autor, entre outros livros, de Maneiras de transformar mundos: Lacan, política e emancipação (Autêntica) [https://amzn.to/3r7nhlo]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
C O N T R I B U A

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES