A fuga adiante de Jair M. Bolsonaro

Foto de Ciro Saurius
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Por MARCELO GUIMARÃES LIMA*

As manifestações indicam o esgotamento progressivo e geral do apelo ideológico do voluntarismo de extrema direita alimentado pelo golpe de 2016.

Algo que ocorre com veículos progressistas de comunicação na internet é a reprodução de pautas do monopólio de direita da chamada “grande” imprensa: jornais (cada vez menos importantes), rádio e televisão, e portanto a reprodução, desavisada, dos pontos de vista imbuídos nestas pautas.

Dito deste modo, minha observação dá margem à contestação imediata: afinal eu estou enunciando algo que todos os progressistas, gente de espírito crítico por natureza, já estão, na linguagem popular, carecas de saber. Mas entre saber e praticar o que se sabe há distâncias maiores ou menores conforme circunstâncias, percepções, disposições e iniciativas.

A bravata, o bate-boca, o insulto e a provocação fazem vez de métodos de governo do bolsonarismo: a criação de crises conjunturais é também um procedimento que serve, entre outros resultados, para desfocar ou acobertar a crise maior, a crise mais do que conjuntural que atinge o país, crise material intensa, incluindo a da saúde pública, com seu correlato de crise moral profunda, e para a qual o desgoverno neofascista não tem resposta a não ser o almejado golpe militar cujo resultado imediato seria reprimir e calar protestos e críticas, aguçar a violência de fato contra a maioria e intensificar a atual guerra econômica contra a população brasileira em favor dos setores hegemônicos do capital local associado ao capital global.

Aparentemente, Bolsonaro, protegendo o seu intendente Pazuello e evitando sua punição por participação em evento político-partidário público e consequente infração ao regulamento militar, segundo as interpretações disponibilizadas, enquadrou o comando das Forças Armadas, e o golpe e nova ditadura militar sob comando do Messias autoritário estão novamente na ordem do dia do desgoverno neofascista. O general Pazuello livre de punição encoraja a insubordinação dos adeptos de Bolsonaro nas Forças Armadas e no aparato policial. Narrativa dominante no momento e não sem elementos reais próprios da situação geral, do projeto e das práticas conspiratórias e subversivas dos bolsonaristas e do regime da “pós-democracia” brasileira, inaugurado como o golpe de 2016.

Das análises e observações que li sobre a conjuntura atual, sobre a crise Pazuello e afins, me parece interessante por contraste a do cientista político Rudá Ricci (1). Segundo o analista, Bolsonaro perdeu a iniciativa política que já foi sua e, na atual conjuntura, suas ações são reativas aos ataques e reveses que tem sofrido tanto no congresso, onde, apesar de negociatas para comprar apoio, de fato não controla o chamado centrão, como na imprensa golpista que teve papel fundamental na eleição do demagogo de extrema direita, na relativa relutância do comando militar em subscrever publicamente o projeto golpista, e nas pesquisas de opinião pública que mostram seu acelerado desgaste, para o qual contribui a exposição da desordem administrativa e política do seu governo na CPI da pandemia.

Em tal situação, Bolsonaro, com suas limitadas luzes e inflexível nos seus métodos e procedimentos, reage de modo intuitivo atuando em diversas frentes ao mesmo tempo, buscando, sem sucesso até aqui, retomar o controle das pautas públicas para consumo da opinião popular.

As grandes manifestações pelo impedimento e derrubada de Bolsonaro do dia 29 de maio, surpreenderam o presidente “acidental” do país e os seus aliados, a direita em seu conjunto e, de fato, produziram uma nova conjuntura política, e mesmo uma renovada situação anímica no país, mostrando uma nova articulação e iniciativa dos movimentos e agremiações da oposição de esquerda, aglutinando setores de classe, grupos diversos, minorias, setores populares e setores da classe média.

As manifestações indicam também o esgotamento progressivo e geral do apelo ideológico do voluntarismo de extrema direita alimentado pelo golpe de 2016. Oposições várias confluem no repúdio `a violência, contra a irresponsabilidade e os negacionismos no poder. Movimentos populares se opõem ao racismo, protestam contra a deterioração das condições materiais de vida, o empobrecimento dos brasileiros, contra a degradação moral imposta à nação pelos arautos da administração da morte como política de estado na crise da pandemia, contra os comandantes do genocídio planificado e os promotores da barbárie como horizonte único da vida nacional.

Sobre a “crise Pazuello”, penso, como Rudá Ricci, ou mesmo como o antigo golpista de 2016, hoje convertido em “oposicionista”, Renan Calheiros, que a “vitória” de Bolsonaro é menos conclusiva do que aparenta. O caso Pazuello, creio, não termina aqui, com Bolsonaro satisfeito e cantando vitória junto aos seus e o comando militar publicamente humilhado e subordinado. Como agente provocador “profissional” e desagregador “natural” de grande talento, Bolsonaro conseguiu implantar a desordem no comando das Forças Armadas. A possibilidade de total cooptação das Forças Armadas para o projeto, tantas vezes anunciado, de golpe e ditadura neofascista bolsonarista não me parece maior neste momento do que antes, me parece de fato mais e mais problemática. Se é certo que o poder militar incrustado nos aparelhos de estado pela iniciativa do capitão neofascista e a aquiescência do comando militar contribui para a salvaguarda do extremista no poder, a crescente impopularidade do atual presidente e a mais do que evidente incapacidade político-administrativa de seu governo nas desastrosas crises da saúde e da economia exigem maior prudência dos apoiadores ocasionais, dos simpatizantes e beneficiários da vez.

As apostas do comandante neofascista se mostram, ao desfavor das circunstâncias, cada vez mais altas e, ao mesmo tempo de realização mais e não menos incerta. Como de hábito, Bolsonaro dobra a aposta quando se vê acuado.

O regime golpista sob o qual vivemos desde 2016 vê-se diante de um problema que podemos caracterizar como vital: Bolsonaro, o chefe ou chefete político marginal, substituindo no comando da nação o golpista Temer, foi instrumento de ocasião do processo golpista “legitimado” em 2018 por eleições controladas, e no entanto, o atual desastre popular do desgoverno Bolsonaro expõe, sob a unidade genérica das forças promotoras do golpe de estado de 2016, dificuldades internas, conflitos de interesses e projetos divergentes, no varejo como no atacado.

Hoje vemos que na aventura golpista, setores da classe dominante, da chamada grande imprensa, do aparato jurídico, das Forças Armadas, apesar dos lucros até aqui auferidos, podem ter dado um salto maior do que as pernas. A facilidade, e com ela a virulência inicial do processo golpista de 2016 se transforma, presentemente, em dificuldade crescente de uma saída dentro do golpe do impasse Bolsonaro: mudar para permanecer, mas como, o que e quem deve mudar?

Vivemos, de fato, um momento de inflexão. Dizer o que virá amanhã é coisa para profetas. Mas que assistimos o início de um outro processo político com o crescente protesto popular organizado nas ruas é sim possível afirmar. As contradições internas e as externas do golpe, isto é, entre as diversas forças golpistas e entre estas e a experiência popular, crescem e o papel do presidente tem sido, por necessidade ou por hábito, o de aguçar os conflitos sempre que possível.

O desfecho do caso Pazuello, penso eu, é mais ambíguo no seu significado do que pode parecer no primeiro momento. Não termina com o simples “enquadramento” dos chefes militares. O impasse Bolsonaro dentro do processo golpista, como no caso específico do trêfego general bolsonarista em confronto com a cúpula militar, não está superado ou resolvido, mas adiado, conforme a capacidade do capitão neofascista de administrar a instabilidade que ele mesmo fomenta como método de poder e de se contrapor ao crescente e decisivo repúdio popular expresso nas ruas.

É claro que os golpistas como um todo não cometerão suicídio e o interesse maior que os une é a submissão da nação e a derrota do campo popular. Por seu lado, Bolsonaro necessita das crises conjunturais renovadas como meio de afirmação, de sobrevivência e de prevenção de alternativas no campo golpista. E no entanto, a relação custo-benefício do seu desgoverno para o processo golpista da “pós-democracia” se mostra mais e mais problemática, e para o povo, o custo em vidas e sofrimento chega ao intolerável.

Neste contexto, o pacto golpista de 2016 não pode mais “voar por instrumentos” e o piloto designado se mostra mais e mais incapaz no mau tempo. A iniciativa política dominante ou exclusiva, tanto para Bolsonaro como para seus competidores no campo golpista, se faz mais e mais difícil, complicada, incerta, mais custosa.

Sopram novos ventos da iniciativa do campo popular. Da força crescente deste dependerá o nosso futuro imediato e o futuro do Brasil que se quer e deverá se reconstruir em bases novas, após a aventura neofascista da anacrônica e desqualificada classe dominante brasileira, como nação inclusiva, soberana e verdadeiramente democrática.

Marcelo Guimarães Lima é artista plástico, pesquisador, escritor e professor.

Nota

[1] Essencial do DCM – Bolsonaro sodomiza o Exército e Pazuello não é punido: sem reação, o Brasil acabou – Kiko Nogueira conversa com o cientista político Rudá Ricci

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