Por Lynn Steger Strong*
Talvez a crise abra espaço para reconhecermos que nossas perdas e falhas não são individuais. A crueldade do sistema está agora escancaradamente à mostra
Quando iniciei esta coluna em fevereiro, não havia o Covid-19. Sabemos agora que havia, mas ainda não era nossa realidade diária.
Sou escritora de ficção, professora adjunta da Ivy League, mãe de dois filhos. Eu deveria escrever sobre todas as maneiras pelas quais não havia mais espaço para pessoas como eu conquistarem uma vida estável; todas as maneiras pelas quais a falta de rede de segurança deste país – a adesão implacável ao capitalismo tardio, a economia sobre demanda, o sistema de saúde falido – estava afligindo muitos de nós. Escrevi, antes e depois do Covid-19, sobre eu não ter plano de saúde. Eu também poderia ter escrito sobre não termos plano odontológico, a dor que sinto e sinto há anos, cada vez que mastigo.
Eu deveria escrever sobre percepção versus realidade no que faço profissionalmente. A proprietária do restaurante Prune, em Nova York, Gabrielle Hamilton, escreveu um ensaio sobre isso recentemente – descrevendo como, por tanto tempo, muitos de nós fingimos que chegamos ou estávamos prestes a “chegar lá”. Tínhamos riscado todas ou quase todas as metas que nos disseram para alcançar em nossas profissões, mesmo quando nossas vidas permaneciam em constantes estados de ansiedade e medo. O trabalho – a capacidade não apenas fazê-lo, mas de nunca parar – é o atributo que talvez seja ostentado e comemorado acima de tudo. Uma das razões pelas quais muitos de nós não compartilhamos a maneira como não temos dinheiro suficiente é, eu argumentaria, porque temos vergonha de dizer que estamos com dificuldades. Nós internalizamos que nosso sofrimento é culpa nossa – é porque não devemos estar trabalhando duro o suficiente.
Eu queria escrever sobre a difusão desse sentimento de que não há mais caminhos para a estabilidade, porque queria que houvesse menos vergonha em torno disso. Eu queria explorar as maneiras pelas quais, de maneira arraigada e fundamental, nossas lutas eram mais sistêmicas do que apenas nós.
Em seu ensaio, Hamilton fala em conversar com outras pessoas que ela também considerou bem-sucedidas, que na verdade estavam apenas performando sucesso da mesma maneira que ela. Ouvi-los dizer agora que estavam a uma semana ou um mês de falir mesmo antes da Covid-19 foi chocante para ela. Ela descobriu que, de fato, tudo isso tem sido só um estratagema há algum tempo.
Não é apenas a vergonha que nos mantém calados também. Mantemos nossas “falhas” em segredo, porque sabemos, especialmente os mercados em que Hamilton e eu trabalhamos – arte, livros, restaurantes – tem muito a ver com aparência. Esse livro ou aquele chef, esse artista são importantes? Por que alguém deveria pagar o aluguel, o estúdio, a turnê? Fingir que não estamos nos afogando é a prova que temos de que ainda pode valer a pena nos salvar. Nossa atuação de estabilidade é uma das poucas maneiras pelas quais esperamos navegar pelas avenidas estreitas que ainda podem nos apontar uma saída.
Uma coisa, no entanto, é perpetuar percepções errôneas, fingir – porque você está ocupado sobrevivendo, que você não pode parar de jogar o jogo fraudado na hipótese de ser mais esperto do que o outro, porque você não pode deixar de sentir que suas circunstâncias devem, de alguma forma, ser sua culpa – isso é o que torna muito mais difícil para qualquer pessoa no grupo dizer a verdade.
No último capítulo desta coluna [Two in five, no The Guardian), escrevi sobre a imaginação individual. Escrevi que nossas vidas não funcionam há muito tempo e muito disso foi resultado direto das escolhas que fizemos – sou individualmente responsável por escolher ser escritora, sou responsável por escolher ter filhos. Talvez eu consiga fugir para a zona rural do Maine se não pudermos pagar nosso aluguel no meio desta crise. Talvez possamos encontrar uma maneira de nos manter na mesma posição. Mas isso não é uma possibilidade para outras pessoas em todo o país, que, sem culpa alguma, se encontram sem válvula de segurança.
A vergonha individual e o desejo individual de ter sucesso em sistemas cruéis mantiveram muitos de nós calados sobre as falhas deste país [Inglaterra]. Elas agora estão descaradamente à mostra.
Uma das coisas para as quais espero que essa crise abra espaço é para reconhecermos e dizermos em voz alta que nossas perdas e falhas não são nossas falhas individuais. Espero que possamos começar a dizer em voz alta todas as maneiras pelas quais o sistema falhou conosco. Admitir como grupo que estamos sendo massacrados e explorados, que nossos corpos estão sobrecarregados e subvalorizados, tirar o ônus de qualquer um de nós. Pode e deve nos fazer sentir menos vergonha e menos medo.
*Lynn Steger Strong, escritora, é colunista do jornal britânico The Guardian.
Tradução: Stéfanni Mota
Publicado originalmente no jornal The Guardian.