Paulo Freire, a cultura e a educação

Marika Mäkelä, Sem título, Colagem de óleo sobre papel e cartão, 48,5 × 64,5 cm, 1986.
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Por CARLOS RODRIGUES BRANDÃO*

Prefácio do livro recém lançado de Débora Mazza

Por que Paulo? E mais: por que ainda Paulo Freire?

Porque, afinal, Pedagogia do Oprimido foi escrito há mais de cinquenta anos. E, assim como aconteceu e segue acontecendo com outros escritos de seu campo do saber, há algum tempo este e outros livros de Paulo Freire deveriam ter passado da estante dos livros sobre a educação para a dos livros de “história da educação”.

Devo confessar que, como antropólogo, entrei na educação pela porta, ou pela trilha, da cultura. Assim como imagino que tenha acontecido em boa medida com Paulo Freire, ao tempo dos movimentos de cultura popular do começo da “década de 1960 – a década que não acabou”. Não devemos esquecer que ele e a sua equipe do Serviço de Extensão Cultural da então Universidade do Recife promoveram e coordenaram em Pernambuco um Primeiro Encontro Nacional de Alfabetização de Movimentos de Cultura Popular, em 1963.

Imagino que, ao longo da geografia do mundo e da história das eras, raros terão sido os educadores e as educadoras cujos escritos permaneceram tão presentes, tão lidos, tão consultados e tão debatidos dentro e fora do mundo das universidades. E não apenas para efeito de conhecimento de um passado realizado, mas para estabelecer projetos e fundamentar práticas pedagógicas do absoluto presente.

Entre Anísio Teixeira, Lourenço Filho, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro (cujo centenário de nascimento deveria ser celebrado em 2022), Marilena Chauí e Demerval Saviani, desde o começo do século XX até agora tivemos, no passado recente – e seguimos tendo – pessoas notáveis dedicadas a pensar, propor e praticar a educação. No entanto, foi Paulo Freire quem se tornou um educador ainda tão assertivamente vivo e vigente. Uma personalidade universalmente presente, reconhecida, combatida, controvertida, lida e relida, além de muito homenageada.

Entre Pestalozzi, Rousseau e Montessori, terá uma outra pessoa dedicada à educação um dicionário próprio, exclusivo? E terá merecido a imensa quantidade de estudos, encontros e lives (em tempos de pandemia) esse homem de Pernambuco que cedo desistiu de uma frustrada “carreira de advogado” e que, durante alguns poucos anos, foi bedel e professor de “língua portuguesa” – a sua primeira paixão – em uma pequena escola de bairro no Recife?

Teria outro educador dos anos mais recentes merecido um livro inteiramente a ele dedicado, com 606 páginas em inglês, com artigos escritos por 31 estudiosos de sua obra saídos dos cinco continentes, entre educadores de carreira e outros nomes de dentro e de fora da academia? Eis que, lado a lado, tenho em minha estante: o Dicionário Paulo Freire, de 2008; Pedagogia do Oprimido – o manuscrito, de 2018; e The Wiley handbook of Paulo Freire, de 2019.

A bibliografia a respeito de Paulo Freire continua sendo espantosamente grande e variada. E tantos anos depois, ela segue sendo tão brasileira quanto hispano-americana e, em menor escala, internacional. Eis algo que quase sugere o qualificador “espantoso”. E por que não? Como estudioso de culturas e de religiões populares, quase ousaria dizer que o que se passa com a presença ativa de Paulo Freire entre nós está mais no plano dos mistérios do que no campo dos dilemas.

No entanto, não é tanto a quantidade de estudos do passado e do presente a respeito de Paulo Freire que deve nos chamar a atenção. O que mais espanta é que, tantos anos após a escrita de um de seu último livro em vida, e mesmo após a publicação de fragmentos de sua “obra póstuma”, Paulo Freire se mantem um pensador lido, estudado, dialogado e contraditado como um fundador de teorias, propostas e projetos no interior e para além da educação, por pessoas dos mais diferentes campos do saber e da ação social.

Eis um pensador do humano através da educação lido e estudado “em todo o mundo, e por todo mundo”, entre pedagogas, professoras “do chão da escola”, estudiosos da educação, das ciências sociais, do serviço social, da saúde, das artes. Eis um estranho homem cuja obra até hoje alimenta pedagogas, pesquisadoras, professores, poetas e profetas.

E o fato de que nos últimos anos o governo federal de seu próprio país desencadeou uma ferina e frustrada campanha, entre sua difamação e seu apagamento, talvez seja a melhor evidência da forte presença do pensamento de Paulo Freire entre nós. E está justamente na indigência política, cultural e pedagógica dos escritos e das proclamações contra o “professor Paulo Freire”, o infeliz lugar cultural em que com mais evidências encontramos a indigência de conhecimentos e capacidades críticas de reflexão presente entre os seus detratores.

Assim sendo, porque mais um demorado e meticuloso estudo a seu respeito, como neste Paulo Freire, a cultura e a educação: pensando a sombra de uma mangueira? Depois da quantidade de estudos em livros, coletâneas e revistas, sobretudo nestes três últimos anos, haverá lugar para mais alguns? Penso que sim. E alicerço a minha opinião com base em diferentes momentos de sua vida, quando ao vivo ou por escrito Paulo Freire conclamava quem o lesse e o seguesse a: “me superar”. E entendo o seu apelo não como algo “para cima” no espaço acadêmico, mas como um “para a frente”, no tempo humano-cultural e socialmente político.

Débora Mazza traz neste livro, um conjunto de escritos antecedentes, revisitados e alinhavados. Uma colheita de plantios em diferentes momentos, como frutos entre a memória e a pesquisa, em que, com sensibilidade e sabedoria, ela reúne lembranças pessoais pouco conhecidas de momentos compartidos com Paulo Freire, colocadas ao lado de uma fecunda série de “achados” extremamente relevantes para a compreensão da real “pessoa de Paulo”.

Eis o que poderia ser apenas mais uma “biografia de Paulo Freire”, mas é, na verdade, um trabalho excelente e indispensável, elaborado a partir da investigação de feitos e fatos raramente presentes em outros escritos a respeito de Paulo Freire. E este “exercício de revelação” vem desde uma criteriosa pesquisa dos acontecimentos da “constituição de um pensamento educacional”, retratado desde a década de 1930 no Brasil, a década de 1960 em Pernambuco, às peripécias para a contratação do “professor Paulo” na Universidade Estadual de Campinas, casa em que Débora foi sua e minha aluna e, depois, orientanda, parceira de viagens, pesquisas e trabalhos, e na qual Paulo e eu nos tornamos amigos de vida, mais do que apenas colegas de ofício.

Em meio à fecunda pluralidade de escritos “sobre”, “desde”, ou “através” de Paulo Freire, Paulo Freire, a cultura e a educação: pensando à sombra de uma mangueira realiza com felicidade o que lido “de dentro para fora” foi também a interação do sentimento, do pensamento e da obra de Paulo Freire: escrever desde a vida e os seus momentos; escrever desde a pessoa e o pensamento; escrever desde a memória e o presente. E, se possível, escrever ciência entre a poesia, a sociologia e a pedagogia.

E por quais motivos Débora Mazza começa o livro com Canção Óbvia, a tão conhecida poesia de Paulo Freire? Teria ela sido escrita “à sombra de uma mangueira”? Provavelmente, porque ela começa assim:

Escolhi a sombra desta árvore para
Repousar do muito por que farei
Enquanto esperarei por ti.

*Carlos Rodrigues Brandão é professor Emérito aposentado do Departamento de Antropologia da Unicamp e professor visitante sênior da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Autor, entre outros livros, de A cultura na rua (Papirus).

Referência

Débora Mazza. Paulo Freire, a cultura e a educação: pensando à sombra de uma mangueira. Campinas, Editora da Unicamp, 2022, 232 págs (https://amzn.to/45rfnXh).


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