A esquerda socialista deve ser oposição ao governo Lula?

Imagem: Cesar Pessoa
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Por VALERIO ARCARY*

O atual governo é um governo “anormal” porque de colaboração de classes, liderado pelo PT, o maior partido de esquerda do país

“Quem corre atrás de duas lebres, uma e outra perderá”. “Quem canta antes do almoço, chora antes do sol posto”. “Quem com porcos se mistura farelos come” (Ditados populares portugueses).

A esquerda está dividida diante do governo Lula. Um campo minoritário e muito fragmentado defende que, apesar de tudo o que aconteceu nos últimos sete anos, da estreita vitória eleitoral de Lula, e da permanência do bolsonarismo, é necessário ser oposição de esquerda radical ao governo Lula. A direção do PT repousa em uma maioria popular que apoia o governo e aceita ou até defende, sem maiores críticas, como inevitável as concessões que foram feitas ao Centrão, e que podem culminar com a integração de bolsonaristas no governo.

Uma parcela importante do ativismo nos movimentos sociais mantém referência na esquerda do PT e do PCdB, e no PSol e concorda que o centro da tática é a luta pela derrota do bolsonarismo, pela mobilização popular nas ruas em campanhas como a taxação dos ricos e Fora Campos Neto, pela inversão da relação social de forças desfavorável, o que exige uma Frente Única de Esquerda para sair da defensiva. O PSol defende, também, uma localização independente, sem participação no governo. Seis meses depois da posse de Lula, quem tem razão?

A votação da primeira parte da Reforma Tributária abriu uma polêmica porque três deputados do PSol se abstiveram, enquanto a maioria da bancada votou a favor. Tratava-se de uma decisão tática que não merece ser dramatizada. No PSol prevalece, corretamente, o critério de procurar construir uma intervenção unificada, mas com liberdade de diferenciação pública. Ademais, havia bons argumentos a favor das duas posições.

Os que protestaram com a abstenção defenderam que a Reforma Tributária mantém isenções fiscais indefensáveis, e que não havia perigo do bolsonarismo vencer. Por outro lado, os que votaram a favor alertaram que, apesar de muitos limites, a Reforma Tributária, um terreno de disputa interburguesa, foi uma medição de forças com Bolsonaro, e que uma confusão da esquerda combativa com a extrema direita seria um erro. Além disso, afirmaram, com razão, que a simplificação, já que o que está em vigor é uma insanidade que favorece a guerra fiscal, a cobrança de IPVA sobre bens de luxo, e a votação do Carf são mudanças progressivas.

Mas uma decisão de tática parlamentar sobre uma votação não é o mesmo que a definição de uma estratégia, ou seja, de posicionamento diante do governo. Não há somente dois caminhos, apoio incondicional ou oposição irredutível ao governo Lula. Nunca é tudo ou nada. Independência tampouco deve ser uma máscara seja para apoio envergonhado, ou para oposição dissimulada. A definição da tática deve obedecer a um juízo sobre o que está em jogo.

Esse cálculo responde a uma avaliação da conjuntura e das relações sociais e políticas de força. O mais importante entre todas as variáveis é que a classe trabalhadora e a juventude ainda não entraram em movimento. Infelizmente, até agora, a vitória eleitoral de Lula não reverteu a situação defensiva de refluxo. Não há ascenso. Tudo o que há de mais grave ainda está em disputa, e é incerto.

Encerrado os primeiros seis meses o governo consolidou suas posições. Está hoje mais forte, apesar da permanente chantagem do centrão no Congresso Nacional, porque os neofascistas foram derrotados no 8 de janeiro, e porque Jair Bolsonaro está inelegível. Os principais indicadores são: (a) aumento do crescimento acima das projeções do mercado, para 2%, talvez até 3% mantendo o patamar de 2022; (b) inflação desacelerando próxima de 3%; (c) reformatação do Bolsa-Família como programa de distribuição de renda, e 80% dos acordos salariais garantindo a recuperação da inflação, e até pequenos ganhos; (d) pesquisas indicando a percepção de uma ampla maioria de que a vida vai melhorar; (e) a popularidade do governo se mantendo estável com uma aprovação um pouquinho acima de 50%, ainda que algo em torno de 30% da população esteja alinhada com o bolsonarismo, (f) a perspectiva de redução da taxa de juros. Mas vários destes fatores são transitórios.

Mas, ao mesmo tempo, depois da resposta ao golpismo de 8 de janeiro, não ocorreram lutas populares importantes, somente greves defensivas. Todos os Atos foram de setores de vanguarda. Prevaleceu a expectativa face ao governo, porque a insegurança nas próprias forças ainda é o sentimento dominante no estado de espírito das massas, até dos setores mais organizados. Nenhuma convocação unitária de mobilização social foi sequer ensaiada, mesmo quando se abriu uma aguda necessidade diante da aprovação do Marco Temporal. As Frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo não tiveram iniciativas. Ou seja, os movimentos não apostaram na luta, e o governo abraçou, até agora, a estratégia de buscar a governabilidade “a frio”, custe o que custar. O que pode ser fatal no que está por vir.

A situação ainda não mudou, qualitativamente, quando consideramos, também, as relações políticas de força. A burguesia está dividida, mas a oposição bolsonarista continua muito forte, na institucionalidade, nas ruas e nas redes. O imbrochável é agora inelegível, mas a sua liderança dentro da extrema direita ainda não ruiu. A possibilidade de nova tentativa golpista não é uma hipótese plausível. Jair Bolsonaro se reposiciona para fazer a disputa por dentro das regras do regime liberal-eleitoral, apostando nas eleições municipais de 2024, ainda que a corrente neofascista mantenha um “pé” dentro da legalidade, e outro “por fora”. Já a fração burguesa que rompeu com Jair Bolsonaro, mantém um pé no governo, e outro por fora, agitando uma campanha permanente de exigências e críticas. O Brasil permanece fraturado, mas os neofascistas estão na defensiva.

Assim como há variados tipos de regimes políticos compatíveis com a preservação do capitalismo – desde ditaduras, passando por diferentes formas de democracias eleitorais, mais autoritárias ou menos – há, também, muitos tipos diferentes de governos burgueses. A tática política não pode ser sempre a mesma. O governo Lula é um governo burguês, porém, “anormal”. Estamos diante de um governo burguês porque: (a) o seu programa respeita os limites institucionais do regime que sustenta o capitalismo periférico brasileiro; (b) porque a classe dominante está representada dentro do governo, através de Geraldo Alckmin, Simone Tebet, o partido de Gilberto Kassab e ministros do União Brasil; (c) porque o governo aceita as condições impostas pelo bloco do centrão liderado por Artur Lira que exige respeito ao papel de um “semi-primeiro ministro” para garantir a governabilidade na Câmara dos Deputados; (d) porque tem apoio da fração burguesa que fez aposta na terceira via, e está se transformando em um governo de Frente Amplíssima com setores, até ontem, bolsonaristas, com muitos custos para o projeto de reformas; (e) a aprovação do arcabouço fiscal, do Plano Safra turbinado e da reforma tributária garantiram estabilidade na relação com a classe dominante, inclusive o agronegócio.

Mas é um governo “anormal” porque é um governo de colaboração de classes, liderado pelo PT, o maior partido de esquerda do país. É uma anomalia porque os capitalistas, embora divididos entre os reacionários que querem disputar os rumos do governo, e os extremistas de direita que querem deslocá-lo, não podem reconhecer o governo como seu. Ao mesmo tempo, a imensa maioria dos trabalhadores e do povo se identificam com a liderança de Lula.

A classe dominante brasileira é a mais poderosa do mundo no hemisfério sul. Em 2016 não hesitou em apoiar um golpe institucional para derrubar o governo Dilma Rousseff, mesmo depois treze anos de ininterrupta concertação. Ficou claro no “laboratório da história” que não tem compromisso inquebrantável, a não ser com seus interesses de preservação de privilégios de classe. O apoio de uma fração burguesa a Lula no segundo turno de 2022 foi circunstancial, efêmero, condicional. A oposição de extrema direita liderada pela corrente neofascista, embora na defensiva, está viva, e continua sendo o polo que disputa o poder contra o governo Lula no horizonte que é previsível. A inelegibilidade de Jair Bolsonaro não deixou o bolsonarismo “acéfalo”. Ele pode ser substituído, porque, além do messianismo milenarista, há no país apoio político e ideológico ao programa da extrema direita.

Diante deste contexto se coloca o desafio de qual deve ser a estratégia da esquerda. Os que defendem a necessidade de construir uma oposição frontal esgrimem dois argumentos centrais: (a) o governo burguês de plantão é sempre o principal inimigo dos trabalhadores, e o centro da tática é a sua denúncia, porque senão a oposição de direita vai crescer; (b) o papel da esquerda anticapitalista é construir mobilizações de massas contra o governo de plantão, e não devemos nos apoiar nas medidas progressivas para ir mais além.

Estes dois argumentos são falsos porque ignoram as condições objetivas – a oposição de direita neofascista influencia pelo menos 30% do país – e subjetivas – viemos de sete anos de derrotas acumuladas – da realidade concreta, ou seja, a esquerda radical não pode ser “inocente útil”, ou pior, cúmplice da ameaça de volta ao poder do bolsonarismo. Quem não viu, no passado recente, o perigo do “inverno siberiano”, a derrota histórica, errou. Não há, por enquanto, uma situação revolucionária no horizonte.

É justa a luta pelas reivindicações dos trabalhadores e da juventude, e toda a esquerda deve impulsioná-las, mas sem perder a bússola de classe. Não se pode lutar contra as duas forças político-sociais, ao mesmo tempo, na mesma intensidade, porque é impossível. O inimigo central é o fascismo, e só pode ser derrotado com a Frente Única de Esquerda, inclusive com a esquerda moderada que lidera o governo Lula.

Mas estão, também, dramaticamente, equivocados os que defendem que o centro da tática é a consolidação da aliança com a fração capitalista liberal que rompeu com Jair Bolsonaro. A ampliação do governo até as alas mais oportunistas e fisiológicas das oligarquias compromete o destino de qualquer projeto de reformas. Trata-se de uma ilusão perigosa. Não adianta ter um acordo no Congresso com as dissidências burguesas, se perdemos o apoio das massas populares que querem mudar a vida, agora e já. Por maior que seja a paciência dos trabalhadores e do povo, tudo tem limites.

A tática é a definição de um caminho, ou uma orientação. É o desafio quando nos perguntamos, depois da análise da conjuntura, o que fazer? Tática se define considerando relação de forças, fatores objetivos e subjetivos. Mas o decisivo, finalmente, são os subjetivos: uma análise do que prevalece na consciência média da classe trabalhadora e do povo.

Essa consciência flutua, avança e recua, mas se o governo não é um ponto de apoio para a defesa dos interesses de classe, sucumbirá. Em 2016, quando era necessário colocar milhões nas ruas contra o golpe não era mais possível. Não teremos treze anos para errar outra vez.

*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de Ninguém disse que seria fácil (Boitempo).


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