Por MÁRIO MAESTRI*
Racismo, racialismo e identitarismo no sul do Brasil
Nenhum gremista raiz canta o hino do glorioso Esporte Clube Internacional. Nem um monarquista francês entoaria a Marseillaise. Um mexicano que se preze não coloca a mão no peito quanto tocam a “Bandeira Estrelada” estadunidense. Os hinos objetivam expressar valores e solidificar laços de uma comunidade real, construída ou inventada. São, assim, produtos culturais com objetivos performáticos.
São espécies de mercadorias que procuram determinar o comportamento do consumidor. A impugnação e a proposta de modificação de dois versos do Hino Rio-grandense devido ao seu pretenso racismo anti-negro discutem o secundário e saltam por sobre as duas questões principais. Primeira: qual é o caráter daquele hino, como um todo? Segunda: existe razão para que a população sul-rio-grandense, em forma conjunta, entoe aquele ou algum outro hino regional?
Os versos não são racistas, são classistas
Vamos por parte. Primeiro, sobre o caráter dos versos “Povo que não tem virtude/ Acaba por ser escravo”. (Destacamos) Os versos, em verdade, não se referem ao cativo negro brasileiro, pois a “letra foi desenvolvida no espaço da simbologia do século 19, tributária das representações da época sobre o mundo greco-romano. Como comprovam os versos retirados do hino: ´Entre nós/ reviva Atenas/ para assombro dos tiranos/ Sejamos gregos na glória/ e na virtude, romanos.´” (CARBONI & MAESTRI, 2021.) E mais ainda. Quando da República Rio-grandense, época em que foi produzido o hino, no Brasil e no Rio Grande do Sul, “povo” referia-se aos chamados “homens bons”, isto é, homens livres com algumas posses. O “povo”, na acepção de hoje, era denominado de “vulgo”, de “corja”, de “ralé”. Gente sem direito à voz e desprezada pelos grandes proprietários republicanos e monarquistas.
Naqueles dois versos, propunha-se que os proprietários farroupilhas deviam ter “virtude”, no sentido de coragem, patriotismo, etc., para não terminarem “escravos”, ou seja, submetidos politicamente à Corte do Rio de Janeiro, sede do Império do Brasil. O Império queria submeter os proprietário farroupilhas ao centralismo imperial, e não transformá-los em “escravos”. Os versos impugnados não se referem aos cativos coloniais, definitivamente. Não devemos amalgamar o termo “escravo”, no geral, com “escravo” negro-africano colonial, no particular. A confusão deve-se em parte à incompreensão do caráter da escravidão, forma de exploração social e não racial. Ainda que a componente racial tenha tido quase sempre importância nas formações sociais escravistas. (GORENDER, 2011.)
Escravizados podiam ser da etnia dos escravizadores. Porém, mais comumente, eram “estrangeiros”, de comunidades diversas dos escravistas. No escravismo clássico, os germanos, os itálicos, os hispânicos, os eslavos, os núbios, etc. foram as grandes sementeiras de cativos greco-romanos. No escravismo colonial, os trabalhadores e trabalhadoras escravizados foram sobretudo negro-africanos e, secundariamente, autóctones americanos. A desqualificação somática do cativo de todas as etnias pelos escravizadores, praticada na Antiguidade, precedeu de muito o ingresso extra-abundante dos negro-africanos como sementeiras da escravidão colonial americana. (MAESTRI, 1987.)
Os dois versos do Hino Rio-Grandense questionados são, porém, classistas, no sentido da escravidão greco-romana, ao sugerirem que um homem livre se tornava “escravo” quando lhe faltava “virtude” —valentia, coragem, etc.— para resistir ao escravizador. Visão platônica da escravidão, como resultado de um aprisionamento, em todo caso, menos ruim do que a concepção aristotélica, que defendia nascer a escravidão da natureza inferior do escravizado. Para Aristoteles, o cativo era escravizado devido a sua essência profunda, continuando sendo ser minorado, mesmo quando alforriado, por permanecer sua inferioridade nata. A visão aristotélica foi dominante na escravidão colonial e contribuiu sobremaneira ao racismo anti-negro. (CARBONI & MAESTRI, 2005.)
República latifundiária-escravista
Na época dos sucessos, o hino em questão foi produzido para galvanizar a população farroupilha livre, com destaque para os proprietários, em torno dos objetivos e dos valores da República Rio-Grandense, Estado-nação secessionista do meridião do Brasil, proclamado em 1836 e dissolvido em 1845. Questionado militarmente desde seu início pelos proprietários provinciais monarquistas e pelo Estado imperial, o movimento separatista foi obra dos grandes criadores pastoris-escravistas sulinos, muitos deles proprietários de imensos latifúndios no norte do Uruguai. (PALERMO, 2013) Os proprietários rio-grandenses desses latifúndios em territórios uruguaios, localizados aquém do rio Negro, se comportavam neles como se estivessem na província de São Pedro e exploravam suas estâncias orientais com o trabalho cativo — os “cativos campeiros”. (LIMA & MAESTRI, 2010).
Havia identidade social plena entre os senhores da República Rio-Grandense e os do Império do Brasil. Ambos convergiam na defesa da escravidão, do latifúndio, da ordem censitária e no desprezo pelas classes subordinadas, escravizadas e livres. Republicanos e monarquistas eram elitistas e racistas. Os chefes farroupilhas jamais prometeram liberdade aos cativos e terra aos gaúchos, libertos, índios. Eles lutavam por mais poder, mais terras, mais cativos. (ASSUMPÇÃO, 1996.) Anos antes, em 1815, José Artigas não só prometera como iniciara a distribuição de terras entre o povo oriental em armas, privilegiando ex-cativos e gauchos. (TORRE; RODRIGUES; TOURON, 1969.) Não havia sentimentos republicanos, consolidados, mesmo conservadores, entre os chefes farroupilhas. Em 1850, poucos anos após a rendição, ricos chefes farroupilhas, entre eles o general Antonio de Souza Neto, senhor de milhares de hectares e centenas de cativos no norte do Uruguai, lutaram sob a bandeira do Império, em defesa da posse de suas terras e seus cativos orientais. Também para eles, “Paris valia uma missa!” (MAESTRI, 2016.)
Não procede a proposta de que Bento Gonçalves ou outros farroupilhas tenham prometida a liberdade aos escravizados para lutarem nas tropas republicanas. Os chefes republicanos se adonavam pela forças das armas dos cativos de escravistas favoráveis ao Império, obrigando-os a lutarem em suas tropas. Trabalhadores escravizados eram arrolados como “substitutos” de proprietários farroupilhas convocados pelo Estado republicano sulino e não dispostos a morrer pelo movimento. Alguns soldados negros foram doações de proprietários republicanos para as tropas farroupilhas. Outros foram comprados pela administração republicana.
Marchar ou morrer
É anacronismo projetar para a escravidão negociações contratuais entre escravizadores e escravizados, no estilo “tu lutas por nossa República que no final da guerra te damos a liberdade”. Em verdade, ao ingressarem nas tropas, os ex-cativos tornavam-se formalmente libertos, como era tradicional na época. Gozariam, assim, após o conflito, de liberdade de caráter não bem definido. No frigir dos ovos, para além daqueles que se adaptaram com gosto à vida militar, a manutenção dos ex-cativos nas tropas republicanas, assim como na Guerra contra o Paraguai (1864-70), devia-se sobretudo à contrição: quem desertava era chicoteado, retornava à escravidão dura, era fuzilado. Trabalhadores e trabalhadoras escravizados rio-grandenses aproveitaram o conflito entre os senhores republicanos e monarquistas para fugirem, aos milhares, para as matas da Encosta da Serra, tornando-se quilombolas, ou refugiarem-se no Uruguai, onde escasseavam os trabalhadores pastoris. (PETIZ, 2006; MAESTRI, 2014.) Sobre eles, veremos por que se fala pouco ou se silencia totalmente.
Há também grande confusão sobre a Traição de Porongos. Nos momentos finais da guerra secessionista, com os republicanos militarmente derrotados, os ex-cativos tornaram-se o grande problema das negociações de paz entre os chefes farroupilhas e o Império, representado pelo barão de Caxias — que foi duque apenas no contexto da Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870). O Império negava-se a reconhecer a liberdade dos ex-cativos e exigia sua devolução aos proprietários. Era difícil incorporar os ex-combatentes negros, como homens livres, à sociedade latifundiária-escravista de então. As tropas imperialistas permanentes eram escassas e juntar a elas centenas de soldados negros farroupilhas era um enorme risco, sobretudo no período de ocupação militar posterior à rendição farroupilha.
Em torno desta e de muitas outras questões, dividiram-se os principais comandantes farroupilhas, quando das negociações pela deposição das armas. A solução articulada pelo general farroupilha David Canabarro, com o barão de Caxias, constituiu uma traição a outros chefes republicanos, às custas das tropas negras farroupilhas que, desarmadas propositadamente, foram massacradas no serro de Porongos, em 14 de novembro de 1844. Seguiram-se outros sucessos semelhantes ao massacre de Porongos, que obrigaram os chefes farroupilhas renitentes a uma rendição segundo o figurino do Império. Bento Gonçalves, escravista empedernido até sua morte, foi um dos chefes farroupilhas traídos, e não participou da conspiração. Jamais houve tratado de paz assinado em Poncho Verde. (FLORES, 2004.),
Nem toda a população, nem toda a Província
A mal-denominada República Rio-Grandense nunca foi um movimento da totalidade das classes proprietárias regionais e jamais controlou todo o território da província. Foram tropas de proprietários provinciais monarquistas e anti-liberais que travaram os primeiros combates aos farroupilhas. O Planalto Médio e as Missões, regiões então pouco habitadas, não aderiram à revolta. O litoral, a Depressão Central, a Região Colonial Alemã também não o fizeram, pois o movimento nada lhes oferecia. A população de Porto Alegre expulsou os farroupilhas e resistiu a três cercos, tendo sido bombardeada pelos republicanos. Por isso, a cidade foi agaloada com o título “Leal e Valorosa”, em 1841, pelo … Império. (FRANCO, 2000.)
A rebelião farroupilha foi movimento essencialmente da Campanha e da Fronteira Sul, território dos grandes proprietários escravistas, que defenderam os princípios do latifúndio, da escravidão, do governo censitário — apenas os ricos elegem os mais ricos. A Traição de Porongos foi apenas reafirmação da defesa daqueles princípios. Bento Gonçalves não saiu bem da revolta, sendo proprietário, quando morreu, em 1847, em Pedras Brancas (Guaíba), de mais de meia centena de cativos. O general Neto, ao contrário, emigrou para o norte do Uruguai onde possuía léguas de terras e enorme quantidade de cativos. (SILVA, 2011.)
Através do Brasil, talvez o Rio Grande do Sul seja o único estado em que se pratique a esquisitice de cantar comumente o hino regional. E, ainda por cima, cantar uma canção patriótica produzida para celebrar a defesa de república elitista, latifundiária e escravista, como proposto. Trata-se de tradição criada e alimentada pelas classes dominantes e proprietárias sulinas. Elas se esforçam para que os trabalhadores, os subalternizados e a população como um todo abracem simbolicamente, por um lado, a proposta de sociedade rio-grandense sem contradições e, por outro, os princípios e valores gerais que as classes dominantes de hoje compartilham com os opressores do passado. O Movimento Tradicionalista Gaúcho é outro instrumento poderoso dessa socialização simbólica e ideológica, dos valores dos donos das riquezas e do poder, com os submetidos, subalternizados e ofendidos. Por isso, é financiado pelo Estado e divulgado pela mídia do capital.
Exploradores abraçando-se com explorados
O objetivo da criação e difusão desses hinos, ritos, tradições patrióticos regionais e nacionais é criar a ilusão do pertencimento de toda a população a uma comunidade unitária, com valores comuns, sem contradições econômicas, sociais, políticas essenciais. Todo o povo rio-grandense pertenceria a uma única comunidade fraterna, solidária e irmanada em tradições do passado e objetivos comuns do presente. Haveria, assim, comunhão e não oposição entre empresários e operários; bancários e banqueiros; comerciantes e comerciários; latifundiários e peões; milionários e miseráveis; moradores de coberturas e de rua; governadores, deputados e senadores e eleitores; exploradores e explorados.
O discurso sobre o Rio Grande do Sul, como uma pátria pequena habitada por população sem contradições, repete-se, ao igual, no relativo à pátria grande, o Brasil. No caso do Brasil, os dois instrumentos simbólicos (de alienação) mais fortes são o Hino Nacional e a Seleção Canarinho. Não poucos brasileiros choram de emoção ao entonar o hino nacional, ainda mais quando abre partida da seleção! No Rio Grande do Sul, a fusão-separação da celebração do nacionalismo e do regionalismo chega às raias do ridículo. Festejam-se o unitarismo nacional do Império do Brasil, em 7 de setembro, e, a seguir, o separatismo da República Rio-Grandense, na Semana Farroupilha em 13 a 20 do mesmo mês. O que une as duas celebrações em contradição é a proposta, das classes dominantes nacionais e regionais, de sociedades fraternas sem oposições sociais, de destinos comuns.
A oposição objetiva, material e espiritual, entre explorados e humilhados, no Rio Grande do Sul e no Brasil, é um fato histórico, atualmente em aceleração desenfreada e alucinante. Portanto, as populações trabalhadoras, marginalizadas, discriminadas, ofendidas devem separar-se também simbolicamente de seus opressores, para mais facilmente superarem a opressão vivida, no aqui e no agora, e logo, nesse processo, para todo o sempre. Portanto, devem celebrar e criar suas próprias referências simbólicas e celebrativas, profissionais, étnicas, municipais, estaduais, nacionais, etc.: o 1º de Maio, dia dos Trabalhadores; o 8 de Março, Dia Internacional da Mulher; o 13 de Maio, conclusão da Revolução Abolicionista; o 20 de agosto, insurreição do RS contra o golpe militar de 1961; o 20 de Novembro, morte de Zumbi dos Palmares; 8 de Outubro, primeiro grande revolução operária vitoriosa, entre tantas outras.
No Rio Grande do Sul, haveria que celebrar a resistência dos cativos e dos trabalhadores da capitania, da província e do estado sulino. Quanto aos quilombolas, talvez protagonista a ser destacado seja o capitão Manuel Padeiro, da Serra dos Tapes, em Pelotas. E, certamente, a maravilhosa saga, “cancelada” da história sulina, de Alexandre José de Queirós e Vasconcellos, o “Quebra”, e seu companheiro de luta e correrias, o ex-cativo Pedro, “capitão da Pátria”. Eles, sozinhos ou acompanhados, a partir de 1803, por diversas vezes, tentaram pôr abaixo a ordem escravista sulina! Foi o primeiro movimento abolicionista armado do Brasil! (MAESTRI, 2014.) Haveria que comemorar as grandes lutas operárias, como a grande greve rio-grandense de 1917 e os massacres operários anti-comunistas de 1949, 1950 e 1952, em Porto Alegre, Rio Grande, etc. (BANDEIRA, 1967.).
Destruir e não reformar
Devemos destruir e não reformar os símbolos das classes dominantes. A proposta reafirmada pelos vereadores negros porto-alegrenses de modificação de dois versos do hino oficial rio-grandense é emenda que piora o soneto. Por um lado, a correção, legitimaria, como não-escravista, canção patriótica de movimento latifundiário-escravista do meridião do Rio Grande do Sul. Por outro, corroboraria a apologia conservadora de unidade de exploradores e explorados sul-rio-grandenses, como vimos. Trata-se de iniciativa que deprime e dificulta a luta da população sulina pela autonomia, resultado certamente em contradição ao procurado pela bancada de vereadores negros porto-alegrenses.
Vejamos de mais perto as raízes profundas dessa proposta, para além dos bem intencionados e dos mal informados. Como na chamada esquerda, o movimento negro divide-se em facções e tendências que também expressam classes e facções de classes, com objetivos singulares e, não raro, com projetos discordantes e mesmo contraditórios. Em um e outro caso, na esquerda e no movimento negro, subsistem dois pólos referencias: o classista e o integracionista. Atualmente, na oposição à situação política nacional, o núcleo classista se mobiliza pelo “fora Bolsonaro”; pelo fim do golpe; pela volta dos generais aos quartéis; pela recuperação de tudo que os trabalhadores, a população e a nação perderam. Luta pela imprescindível transformação essencial da sociedade, para não afundarmos totalmente na barbárie. Se mobiliza, portanto, nas mais difíceis condições, pela autonomia e consecução do programa e dos objetivos do mundo do trabalho, em favor de toda a sociedade.
A oposição política integracionista esforça-se para afastar o povo das ruas, sob as mais diversas escusas; propõe o parlamento e as eleições como únicos campos de manobra da oposição e do movimento social; defende aliança com os golpistas e os burgueses “democráticos” e “anti-fascistas” contra Bolsonaro, e apenas contra ele, ficando perdido tudo o que se perdeu com o golpe. Preocupa-se, sobretudo, em eleger governadores, senadores, deputados, vereadores e por aí vai, garantindo-se a situação de oposição consentida e faz-de-conta, mui bem paga, enquanto a população escoa pelo ralo escuro da miséria e opressão. Esforçam-se para aniquilar a autonomia da população trabalhadora, função que vêm cumprindo há décadas. (MAESTRI, 2020, I.)
Autonomia e submissão
O movimento negro é parte deste mundo político geral. Sua tendência classista procura expressar e organizar as comunidades negras trabalhadoras, exploradas, marginalizadas, ofendidas, como um todo, em torno de programa e reivindicações civis, políticas, econômicas, sociais, etc. atinentes a toda a comunidade negra oprimida e marginalizada, sem exclusões, no “aqui e no agora”. Compreende as comunidades negras oprimidas e discriminadas, nas suas singularidades, como parte da generalidade do mundo do trabalho e de sua luta pela emancipação. Dirigem-se a uma comunidade em boa parte de difícil acesso e mobilização, pois super-explorada, alienada e esmagada por toda sorte de necessidades: sobretudo trabalhadores não especializados, camponeses, desempregados, marginalizados, prisioneiros, etc.
O setor integracionista do movimento negro defende, no geral, visão racialista do mundo, um separação radical, objetiva e histórica entre as comunidades definidas como negras e brancas. Torcendo a história, propõe que, na escravidão, a opressão foi dos negros pelos brancos, e não dos escravizados pelos escravizadores, sobretudo brancos mas também, negros e pardos, em forma minoritária. (LUNA,1981.) Sobre os dias de hoje, a visão racialista da sociedade propõe oposição essencial entre trabalhadores brancos e negros, a exploração dos segundos pelos primeiros. Presta, assim, inestimável serviço aos opressores. (MAESTRI, 2018)
A proposta racialista da sociedade defende o direito exclusivo do negro de discutir e se pronunciar sobre o racismo, sobre a escravidão, sobre a África Negra, etc., já que todo branco se privilegia, no presente, do racismo, ou seus ancestrais se privilegiaram, no passado, do escravismo — “lugar da fala”, “apropriação cultural”, etc. Exige o reconhecimento pelo Estado de direções negras racialistas e facilidades pontuais possíveis de serem gozadas sobretudo por parte dos segmentos médios, imensamente distante das necessidades das classes negras trabalhadoras e marginalizadas.— “cotas”, “discriminação positiva”, etc. Defendem o “empreendedorismo negro”, uma “burguesia negra”, “milionários negros”, etc.
O cativo que trabalhou e resistiu
O racialismo nega o trabalhador escravizado, construtor no passado da nação brasileira, como sua referência paradigmática. Sugere, ao contrário, uma descendência direta do negro brasileiro de uma África romantizada e inventada, povoada de reis, princesas, príncipes e por aí vai. Esquece que a aristocracia negro-africana podia comportar-se despoticamente para com os segmentos plebeus, e, não raro, escravizá-los, para vendê-los como cativos. Renega o estudo da escravidão e das múltiplas formas de resistência de multidões de cativos coloniais. (MEILLASSOUX, 1975; MOURA, 1988) Em lugar da resistência do cativo, promove “histórias de vida” da ínfima minoria de escravizados que se libertou, enriqueceu e, não raro, transformou-se em pequenos escravistas. O paradigma eterno da visão racialista de mundo é a sociedade estadunidense que produz pequena elite negra conservadora, com seus Barak e Michelle Obama, Colin Powell, Oprah Winfrey, Condoleezza Rice. E, agora, Kamala Harris, implacável como procuradora-geral com os prisioneiros estadunidenses, sobretudo negros. Isso, enquanto o grande capital estadunidense mantém enorme parte da população afro-descendente na prisão e no inferno do capitalismo racista excludente. Racialistas festejam (corretamente) que a bandeira confederada seja baixada, por ser símbolo da defesa da escravidão, e celebram (paradoxalmente) que seja hasteada, em seu lugar, a bandeira das cinquenta estrelas brancas do grande capital e do imperialismo ianque, tingida do sangue de populações de todo mundo. Como a oposição faz-de-conta, os dirigentes negros integracionistas procuram implementar seu projeto e, com ele, conquistar os favores do grande capital. Reivindicam apenas colocar alguns poucos rostos negros na vitrine bem arranjada da desapiedada sociedade de classes brasileira. Dizem que alguns opressores negros serão benéficos para a “auto-estima” da massa de oprimidos negros! Como o mundo político colaboracionista, não quer virar a mesa dos exploradores. Procura, ao contrário, sentar-se a ela, mesmo que seja nas bordas, para alimentar-se com as sobras.
Com a avalanche neoliberal e a derrota mundial do mundo do trabalho, em fins dos anos 1980, passamos a viver em dura Era Contra-Revolucionária. Nela, o mundo do trabalho perdeu o caráter referencial anterior, político, social, ideológico. Enfraqueceram-se terrivelmente as tendências, as propostas, os programas, as organizações revolucionárias e internacionalistas que se mobilizavam contra a opressão de classe, de sexo, de raça, de nacionalidade, etc. Em sentido contrário, com o avanço geral da barbárie social, os setores colaboracionistas e integracionistas, políticos e identitários, não raro em simbiose quase perfeita, conquistaram enorme hegemonia sobre o movimento social. Conquistaram extenso apoio sobretudo entre sectores e militantes das classes médias, em geral pouco politizados e informados. Dominaram as propostas de construir um mundo melhor para as classes médias no contexto de ordem capitalista já em estágio senil. (MANDEL, 1985.).
Polícia é polícia, bandido é bandido
Na luta política e social, sob a pressão das classes médias, organizações que se propõem marxistas abandonaram o mundo do trabalho e social como pólo referencial na luta pela superação da exploração e opressões, abraçaram as reivindicações identitárias referentes sobretudo aos direitos civis de mulheres, gays, lésbicas, negros etc., possíveis de serem alcançadas total ou parcialmente na sociedade capitalistas. Seguiram no caminho aberto pelo Partido Democrata ianque, nas gestões de Bill Clinton (1993-2001), que abandonou o eleitorado trabalhador manufatureiro pelo identitário, ao abraçar as políticas econômicas globalistas — desindustrialização USA, deslocalização fabril, etc. (MAESTRI, 2020, III.) No Brasil, as eleições municipais de outubro de 2020 consagraram o viés colaboracionista-integracionista, no contexto de enorme derrota político-eleitoral das classes populares e triunfo aplastante dos setores conservadores. (MAESTRI, 2020, II.)
Foi magistralmente didática a negativa da bancada negra porto-alegrense de cantar o Hino Rio-Grandense. Entretanto, referendá-lo, após ser expurgado de dois de seus versos, como canção da comunidade rio-grandense, é parte do projeto integracionista regional. Ao igual que a romantização dos “Lanceiro Negros”, como heróis traídos de “saga” farroupilha, que passaria a pertencer também à população negra, apesar de os soldados ex-cativos terem lutado forçados, em prol da consolidação de seus grilhões, como vimos. Enquanto permanece no Rio Grande do Sul o silêncio sobre a história referencial dos quilombolas, dos fujões, dos cativos insurretos sulinos, que romperam com a escravidão, não apenas durante aquela guerra. A proposta de recuperação do Hino Rio-Grandense levará ao paradoxo de vereadores negros e não negros, que se reivindicam da esquerda e da democracia, participar no culto às tradições unitárias rio-grandenses, cantando o Hino Rio-Grandense, pretensamente purificado, ao lado da comandante Nádia e todos os iguais a ela.
1 – S. Agradecemos a leitura da linguista Florence Carboni
*Mário Maestri foi professor de história na UFRJ e na PUC-RS. Autor, entre outros livros, com Florence Carboni de A linguagem escravizada: língua, história, poder e luta de classes (Expressão Popular).
Referências
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