A guerrilha do Araguaia no cinema

Dora Longo Bahia. Revoluções (projeto para calendário), 2016 Acrílica, caneta à base de água e aquarela sobre papel (12 peças) 23 x 30.5 cm cada
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Por ARTHUR MOURA*

O debate sobre a guerrilha não está encerrado, já que o capitalismo continua atuando e radicalizando o seu processo de exploração contra a classe trabalhadora

“Não existem forças que possam ocultar a história… Não há silêncio que guarde a dor em segredo…”
(Araguaia: campo sagrado).

“Quem crê no futuro não pode temer a verdade, nem o debate amplo e profundo que sua busca exige e enseja. É por isto que somente as forças autenticamente revolucionárias podem estar à frente da crítica de seus próprios erros, um dos aspectos mais importantes da incessante tentativa de fazer com que a palavra e o ato político correspondam à tendência da evolução histórica”
(Wladimir Pomar).

A Guerrilha do Araguaia passou por um processo de tentativa de apagamento do fato e desdobramentos, dos debates e consequências e principalmente dos motivos políticos, sociais e econômicos que levou a um processo de radicalização da luta contra a ditadura militar iniciada em 1964 no Brasil. O processo da luta armada se tornou inevitável, pois como afirma Danilo Carneiro no documentário Guerrilha do Araguaia: as faces ocultas da história (2007), “na medida em que a repressão mete o cacete ela obriga a outra parte a fazer o confronto.”

O filme Araguaya. A Conspiração do Silêncio (2004), de Ronaldo Duque, como o título sugere, buscou ir justamente na contramão dessa tentativa de invisibilização, trazendo à tona as feridas abertas na memória. O silêncio transforma tudo em especulação, sem possibilidade para o debate sociológico científico. O filme é uma busca por verbalizar os traumas do passado para que assim possamos refletir sobre a nossa própria história. Pelo que pude observar, esse foi um dos primeiros filmes produzidos sobre a guerrilha do Araguaia.[i] Trata-se de uma super produção que tem no elenco Cacá Amaral interpretando Maurício Grabois, Fernando Alves Pinto, o francês Stephane Brodt e Norton Nascimento interpretando Osvaldão. O filme, patrocinado pela Petrobras, Banco da Amazônia, Telemar, Banco do Brasil, Companhia Vale do Rio Doce e outras empresas grandes, também mistura a linguagem documental com depoimentos de José Genoíno, Zezinho do Araguaya, João Amazonas e Criméia Alice.

É claro que a questão do apagamento da memória das lutas não é algo exclusivo da Guerrilha do Araguaia, mas de praticamente todos os processos radicais que ousam e ousaram avançar para além dos limites da democracia representativa burguesa. A classe dominante age tanto no sentido da criminalização e repressão direta contra esses movimentos como no apagamento ou revisionismo da memória e da história. Isso acontece historicamente no Brasil e no mundo, a despeito do sucesso ou fracasso dessas lutas. Essa dinâmica faz parte das lutas de classes. Por isso, por mais que muitos esforços institucionais tenham sido feitos, como a Comissão da Verdade, é impossível conciliar interesses entre trabalhadores e a burguesia e suas classes auxiliares, principalmente quando os trabalhadores decidem se organizar e enfrentar o problema longe das instâncias legais. A convivência entre essas duas classes principais sempre está propensa a gerar conflitos cada vez mais intensos e sangrentos.

O papel da literatura e do cinema vem sendo fundamental para evitar o apagamento da memória e a despolitização desse importante processo social, que mesmo tendo fracassado em sua proposta principal, deve ser pensado criticamente por nós. Esses filmes foram produzidos grosso modo a partir dos anos 2000, sendo a maioria documentários, mas muitos curiosamente adotaram a linguagem mista como o longa de Duque, Belisario, Vandré Fernandes e o que eu dirigi com André Queiroz, Araguaia, Presente! (2018) Todos esses filmes utilizam dessa estética que mescla em sua narrativa depoimentos e cenas ficcionais para melhor ambientar o espectador ao contexto territorial, social e político da época, além de trazer elementos de ludicidade.

Há inúmeras produções muito relevantes que abordam questões específicas da luta. Soldados do Araguaia (2018), de Belisario Franca, por exemplo, aborda a participação dos soldados que atuaram diretamente na repressão. Esse processo foi extremamente brutal também no interior das forças armadas, que optou por este caminho para ter maior eficiência na repressão. Os depoentes, todos soldados, relatam que os escolhidos para servir na missão eram oriundos de setores mais pauperizados. “Os filhos de pessoas que tinham dinheiro, ninguém foi chamado”, afirma um dos soldados. Eles mesmos relatam que não sentem nenhum orgulho do que fizeram.

Aquele processo fora fruto de um planejamento das altas hierarquias, que por sua vez respondiam a interesses da burguesia nacional e internacional, o que nem de longe chegava ao conhecimento das patentes baixas. Estes se contentavam com palavras de ordem ufanistas e deslocadas da realidade concreta que no máximo criava espantalhos para onde era direcionado o poder de fogo.

Ainda que hoje tenhamos clareza dos limites que estavam colocados, esse processo nos impõe a importante tarefa de pensar criticamente as lutas do passado e do presente de forma que continue pulsando possibilidades de luta que não esperem das lideranças instituídas qualquer saída para a crise social, que se aprofunda com o avanço e desenvolvimento do capitalismo, que revoluciona-se e adapta-se às novas etapas da modernidade, tanto em países de capitalismo central quanto periférico. É importante não cair simplesmente numa leitura apologética acrítica ou aquela que se encerra em apontar os erros num movimento condenatório deixando de reconhecer inclusive os esforços daqueles que tombaram na luta contra o regime militar. Como afirma Wladimir Pomar:

Esta (aqui ele se refere à concepção crítica) é também a melhor maneira de evitar que a burguesia e seus agentes desmoralizem o legado histórico dos que tombaram na luta contra o regime. Na ofensiva ideológica e política que empreende, a burguesia procura mesclar a defesa de pontos de vista reformistas com uma crítica niilista, e sem princípios dos erros cometidos pelos revolucionários. Com isso, preparam uma armadilha bem camuflada para aqueles que, em lugar de serem firmes tanto na luta contra o reformismo quanto na crítica aos erros, se deixam confundir e passam à apologia pura e simples da atividade revolucionária. (POMAR, 1980)

Os limites da guerrilha já são debatidos desde a década de 1970 pelo próprio PCdoB e em seguida pelos intelectuais, pesquisadores, militantes e interessados pelo tema. Resumidamente, o despreparo militar e material da guerrilha foi enorme ao passo que também houve contradições fundamentais na teoria política que fundamentou aquela organização. Um ponto importante também foi a precariedade na comunicação, que era feita por mensageiros. Os destacamentos tinham poucas armas e munição havendo até armas improvisadas. A alimentação também era um problema. Apesar da fartura da selva, era necessário caçar, plantar, etc. Os remédios e demais utensílios necessários para socorrer os guerrilheiros em caso de acidentes ou doenças era escasso. Havia inúmeras doenças e perigos na selva que expunha diariamente os militantes. Os víveres e armamentos eram enterrados para não serem descobertos, comprometendo esses equipamentos devido à umidade do solo que inutilizava as munições. A desproporção na correlação de forças era brutal e o apoio popular foi ínfimo. Por fim, um ponto não muito tocado, houve deserções entre a militância do PCdoB no contexto da guerrilha como Pedro e Tereza, que fogem em 1971.

Outras tensões também surgem no interior da organização. Danilo Carneiro relata que questionou Grabois dizendo não haver condições para a guerrilha por falta de treinamento. O treinamento que existia, mesmo aqueles realizados na China, eram insuficientes. Carlos Amorin em seu livro Araguaia histórias de amor e guerra chega a categorizar os guerrilheiros como infanto juvenis, inocentes e despreparados, movidos apenas pelo amor à luta demonstrando desespero com relação ao que estava acontecendo. Claudinei Rezende por sua vez escreveu o livro Suicídio Revolucionário, onde analisa de forma pormenorizada esse processo.

Há uma indagação permanente sobre os processos de luta das organizações de esquerda principalmente a partir dos anos 1960 que nos remete a pensar, entre outras coisas, sobre o fracasso ou possíveis vitórias das organizações. Este trabalho de pensar o conjunto de elementos que visa avaliar tais questões, perpassa tanto as ações práticas dos partidos, organizações e ações guerrilheiras como também refletir sobre as orientações teóricas de cada setor, assim como pensar a conjuntura do momento.

Claudinei Cássio de Rezende, autor de Suicídio Revolucionário trabalha com a hipótese de que a ameaça real ao Estado foi dissolvida junto com os movimentos populares de base já no início dos anos 1960, com a desmantelação do PCB que resultou numa constelação de organizações. Para Claudinei, a luta armada “agiu como forma de resistência democrática” e não simplesmente como um primeiro passo à revolução socialista. Diz o autor, que a influência popular da resistência armada foi pequena “em especial porque a esquerda pegou em armas tardia e desorganizadamente”.

Mas a ação armada foi processo pelo qual foram praticamente forçados parte da esquerda. Esse processo, segundo Gorender, deu-se tardiamente, concretizando-se somente em 1968, quatro anos após o golpe. E diz Gorender em Combate nas Trevas: “Em condições desfavoráveis, cada vez mais distanciada da classe operária, do campesinato e das camadas médias urbanas, a esquerda radical não podia deixar de adotar a concepção da violência incondicionada para justificar a luta armada imediata.” Apesar de toda dificuldade, a intenção da esquerda armada era de fato a revolução. No entanto, para Claudinei essa concepção ainda era difusa, primeiramente como já apontado por Gorender, pela distância com a base. Isso se deu obviamente por conta da eficácia da repressão em desmantelar as resistências e organizações de esquerda já que a ditadura militar travou uma verdadeira batalha contra a esquerda. O inimigo foi construído a partir de uma demanda das classes dominantes, muito parecido com a forma como o neofascismo vem atuando no Brasil desde 2014.

Em segundo lugar, houve, segundo Claudinei, um erro estratégico e teórico. É importante nesse sentido a seguinte passagem do capítulo 2:

Para Marighella, o aparecimento desse objetivo (e aqui ele se refere ao terrorismo revolucionário) levaria imediatamente as massas ao poder, num processo revolucionário, de tal sorte que o intento da luta armada propugnada pelo revolucionário baiano não era para que essa agisse como bastião da democracia, mas como movimento revolucionário. Todavia, não foram diretamente apresentados por Marighella quais seriam os processos de revolução e suas fases, tanto que estava em curso quanto as que viriam em seguida, para que então a esquerda pudesse empreender lucidamente uma revolução dupla: primeiro, que a colocasse contra a ordem política imediatamente estabelecida, ou seja, a ditadura; e segundo, que almejasse a ultrapassagem de todo o metabolismo social vigente. Em detrimento disso, o que foi apresentado era a afirmação, que não se efetivou, de que a guerrilha levaria a ditadura a um cerco intransponível.            

E continua:

Dado esse contexto geral, como fica a ALN no tocante à revolução brasileira? Situa-se na idéia de revolução antifeudal, embora em seus jornais e em suas teses de divulgação seus integrantes jamais tenham logrado estabelecer um debate mais profundo sobre a estratégia revolucionária.

É uma crítica fundamental; ao passo que aponta os méritos também evidencia as suas fragilidades para concretizar seus projetos. Isso o coloca a afirmar que a tragédia da esquerda estava posta desde sua gênese. Um ponto importante sobre isso: “Este é o caráter particular da luta armada no Brasil: uma parcela fundamental da esquerda incorre no imbróglio do etapismo e do foquismo ora recorrendo à revolução cubana, ora recorrendo ao maoísmo, mas sem nunca romper de fato com o etapismo.”

A conclusão é que Marighella não rompeu de fato com a tradição que a esquerda vinha seguindo, pois seu rompimento, segundo Claudinei, “foi puramente formal e de ordem tática, mantendo intocada a estratégia.” É importante observar também que a construção teórica de Marighella se deu ao longo do processo histórico. A concepção de uma possível aliança com a burguesia nacional foi uma vez afirmada e logo em seguida em 1968 com o agravamento do contexto político fora rejeitada pelo próprio Marighella com o advento do Ato Institucional nº5. A ideia de uma frente única, portanto, cai por terra. Três pontos foram decisivos para o seu rompimento com a política institucional:·         

  • A reação pacífica ao golpe por parte do PCB
  • A chamada retirada estratégica do PCB
  • E a montagem do comitê anti-Marighella por Luis Carlos Prestes

Por isso, diz Claudinei mais adiante: “Se, inicialmente, para Marighella, era apenas uma forma de luta complementar, a luta armada passa a ser a única forma possível de resistência contra a ditadura militar.”

A gênese do fracasso inicialmente apontada por Claudinei é complexa e diz respeito entre os fatos já apontados anteriormente a uma subestimação da esquerda com relação à repressão e, como aponta Claudinei:

Há uma total incapacidade de precisar a estratégia e os métodos da guerra revolucionária no Brasil. (…) O que causou um problema ainda maior na esquerda brasileira foi o fato de que o imbróglio não se referia somente à tática guerrilheira, mas à estratégia comunista, isto é, a como determinar a natureza da revolução brasileira.

É nesse contexto que o autor em seguida analisa o aniquilamento da Guerrilha do Araguaia que acontece num momento em que a ditadura já havia desmantelado a esquerda brasileira, apontando para o desastre futuro da guerrilha ao sul do Pará. Sobre isso, afirma Claudinei: “Essa guerrilha caminhou para um suicídio ainda mais provável que o da guerrilha urbana de fins dos anos 1960, sobretudo por sua localização geográfica limitada e pela completa ausência do apoio de massas.”

Alguns filmes, no entanto, vão trabalhar com depoimentos de camponeses que de alguma forma foram afetados pela guerrilha indo na contra-mão dessa avaliação. “O atrativo de ter acontecido os conflitos aqui não foi só o difícil acesso. Também aqui já era uma região de conflitos fundiários antes dos anos 1960 e 1970. Esse contexto social, essa movimentação social levada ao conflito pelo direito, pelo o que é escasso, como diz alguns autores também atraiu o pessoal do PCdoB a vir pra cá.” Alex – Camponeses do Araguaia – a guerrilha vista por dentro (2010).

Ainda que tenha sido pouco e insuficiente, a guerrilha interferiu diretamente na vida das populações locais e a intensidade como ocorreu criou vínculos profundos, tão profundos que foram relatados em filmes mais de 40 anos depois. Os filmes Araguaya – a conspiração do silêncio (2004), Araguaia: campo sagrado (2011), Camponeses do Araguaia: a guerrilha vista por dentro (2010) e Osvaldão (2015) abordam a guerrilha a partir da experiência dos camponeses. É fato que o trabalho de base fora insuficiente, mas não foi ausente enquanto os paulistas lá estavam. Para além disso, as derrotas são inevitáveis em lutas contra grandes e poderosos inimigos. O exército brasileiro promoveu em três campanhas um ataque fulminante contra a guerrilha e a população. O exército realizou a Operação Mesopotâmia em 1971 eliminando 50 suspeitos. Em outubro de 1973 aconteceu a 3ª Campanha. Foi uma mega operação que envolveu 20 mil homens entre exército, marinha, aeronáutica, polícia militar e civil. No caso do Araguaia, não foi somente o exército que atuou na repressão, mas também os bate paus e pistoleiros a mando da elite local, que auxiliaram o exército a se localizar nas matas.

A disparidade na correlação de forças é elemento já colocado. A classe dominante é dona do Estado e de todo o seu aparato. A justiça e a repressão agem a seu comando. A repressão é a nível econômico por meio da super exploração do trabalho ou física contra não só aqueles que radicalizam as lutas, mas trabalhadores que tão somente exigem respeito diante das duras relações de trabalho, sofrendo nas mãos das forças armadas que agem historicamente na neutralização das organizações revolucionárias. Os moradores locais que não quiseram ou simplesmente não sabiam de nada foram duramente reprimidos, torturados e ameaçados.

Essa tentativa de apagamento e despolitização, no entanto, falhou. Ainda que exista hoje produtoras especializadas em produzir uma releitura reacionária do passado como a Brasil Paralelo[ii], as produções críticas falam mais alto. Isso por outro lado faz com que a direita invista cada vez mais no cinema. E são cifras onerosas.

Os filmes sobre a Guerrilha do Araguaia em todo caso colocam a responsabilidade dos crimes cometidos na conta do Estado. Essa filmografia tem relação direta com a bibliografia produzida sobre o caso, que comprova que mesmo diante das mais variadas justificativas, houve uma desproporção brutal nas forças envolvidas. Romualdo Pessoa, por exemplo, participou de alguns desses documentários. Para além disso, a repressão contra a guerrilha foi um desdobramento que incidia contra os militantes na zona urbana. O documentário Guerrilha do Araguaia – as faces ocultas da história (2007) mostra que os militantes que atuaram na guerrilha já eram fichados porque muitos deles atuavam no movimento estudantil e em 13 de outubro de 1968, a polícia reprimiu cerca de mil estudantes que participavam do 20º Congresso da Une no interior de São Paulo. Trata-se de uma contrarrevolução permanente, preventiva, que anula não um movimento revolucionário, mas pequenos avanços sociais, que do ponto de vista dos setores dominantes é inadmissível, já que comprometeria suas altas taxas de lucro. Tanto no campo como nas cidades, a criminalização foi intensa e a bibliografia sobre o tema é vasta. História imediata é a primeira publicação sobre a guerrilha.

A quantidade de produções em torno do tema também propiciou a variedade nas abordagens das principais questões que atravessou esse importante episódio ocorrido no Pará. Camponeses do Araguaia: a guerrilha vista por dentro (2010), de Vandré Fernandes, é baseado em relatos dos camponeses que de alguma forma experienciaram esse contexto. Os camponeses daquela região foram atraídos pela possibilidade de ter acesso a terras, trabalhar na roça de forma autossustentável. Era comum o garimpo de diamantes e cristais, a colheita da castanha e extração da borracha e atividades de pesca, caça e plantio, sendo pessoas pobres, segundo Pedro da Mata um dos depoentes, que chegou na região de São Domingos do Araguaia em 1971 pela Transamazônica. Zé da Onça também conta que na infância foi vendedor de geladinho em Marabá. Esses camponeses não tinham conhecimento de quem eram aquelas pessoas que chegavam carregados de mercadorias e que mais tarde foram chamados os paulistas.

Mesmo filmes com uma linguagem mais novelesca e caricata como o já citado Araguaya – a conspiração do silêncio (2004) que representa os guerrilheiros de forma quase infantil, mostra que a mobilização naquela longínqua região foi um desdobramento das impossibilidades que a ditadura militar produziu ao optar pela repressão brutal a um processo social que fora visto como perigoso, que incluía basicamente reformas dentro dos marcos do capital. Mesmo um pequeno avanço tão recuado como as reformas de base de João Goulart, foram inviabilizadas demonstrando o nível de atraso do país e o seu forte ranço colonial. A leitura que impediu o avanço de questões básicas da economia nacional fora produzida pelos Estados Unidos e acatada pela cúpula das forças armadas do Brasil. O documentário Cidadão Boilesen (2009), de Chaim Litewski, aborda a participação direta do embaixador Lincoln Gordon no golpe de Estado de 1964. Hoje sabemos por meio da própria documentação dos Estados Unidos que caso houvesse resistência armada popular, as forças armadas brasileira teria o auxílio da Operação Brother Sam, que contava com um porta-aviões com alto poder destrutivo.

O medo naquele momento era real. A Guerra Fria era a sombra que não passava. Essa sombra estava presente desde o fim da II Guerra Mundial com os desdobramentos das disputas econômicas e territoriais entre as potências mundiais, que colocava o mundo em perigo de fato, já que uma outra guerra de grandes proporções simplesmente devastaria boa parte do mundo. A bomba atômica foi a novidade que colocou os países mais avançados como os verdadeiros condutores da política e economia mundial. Ainda que houvesse revolta ao redor do mundo, os setores da esquerda não ameaçavam concretamente o domínio da burguesia, assim como a hegemonia das forças armadas. O PCUS abandonou por completo a possibilidade de uma revolução mundial contentando-se com um modelo de capitalismo de Estado. As experiências revolucionárias da Revolução Russa, Chinesa e Cubana apesar de inspirar não davam conta da especificidade brasileira havendo uma distância abissal entre essas realidades históricas e o Brasil. Até mesmo as lutas na Argentina e Chile tinham proporções maiores tanto a nível da organização popular quanto no que se refere às intervenções do Estado, sempre associado aos Estados Unidos.

O clássico A Batalha do Chile (1975), de Patricio Guzmán, é indispensável para compreender os métodos da reação burguesa contra o avanço do reformismo de Salvador Allende. O desfecho é simplesmente trágico. Isso pode nos dar uma ideia do que poderia ter acontecido no Brasil caso a luta de fato avançasse a nível das massas e os Estados Unidos entrassem na ofensiva contra a resistência. É claro que não nos cabe aqui fazer qualquer tentativa de previsão daquilo que não ocorreu, mas algumas peças que estavam presentes nesse tabuleiro poderiam ser usadas a depender dos desdobramentos do golpe de 1964.

Há poucas referências de personagens negros na luta armada no Brasil. O documentário Osvaldão (2015), de Vandré Fernandes, aborda a participação decisiva dessa importante liderança na conformação e preparo da Guerrilha do Araguaia, que sempre esteve no imaginário da população local, da militância e juventude. Havia muitos quadros importantes: João Amazonas e Maurício Grabois exerceram papel fundamental no comando da guerrilha. Maurício Grabois foi da direção do PcdoB, ex-aluno da Escola Militar, também foi jornalista e líder da bancada comunista em 1946-47. Elza Monerat, Angelo Arroyo, Osvaldão eram também quadros importantes do partido.

Osvaldo Orlando da Costa virou uma espécie de figura mitológica que tinha uma série de habilidades e uma desenvoltura grande para lidar com situações extremas. Ele era mateiro, caçador, lavrador e comandante no contexto da guerrilha. Foi também boxeador defendendo a camisa do Vasco da Gama. Atuou num filme na Tchecoslováquia em 1961 chamado Encontro na Antibabilônia, aprendendo a língua em cinco meses. Essa facilidade com as línguas já estava presente desde o período escolar; suas maiores notas eram em latim e francês. Osvaldão dizia ser neto de escravos e filho de padeiro. Seu senso por justiça era presente desde a década de 1950, quando em período escolar liderou uma ação contra uma empresa de ônibus que havia atropelado um estudante. Como a empresa não quis pagar uma indenização à mãe do rapaz morto, Osvaldão estimulou os estudantes a queimarem um ônibus da linha 109 no Leblon.

Alguns militantes relatam suas experiências com ele, como Eduardo Pomar e José Genoíno. Eduardo fala da experiência na Tchecoslováquia em 1960, fruto de uma reivindicação de estudantes que lutavam por bolsa de estudo. Em Praga, eles estudaram engenharia mecânica. O contato de José Genuíno com Osvaldão se deu na formação do destacamento B. Osvaldão estava na preparação da guerrilha desde 1966 junto com Maurício Grabois e João Amazonas que pesquisavam uma área adequada para o conceito de guerra popular e guerra prolongada, cerco das cidades pelo campo. Essa pesquisa girou em torno do Norte de Goiás (hoje Estado do Tocantis), parte do Maranhão até se fixar no sul do Pará. 

Genoino foi para o Araguaia em julho de1970 saindo de São Paulo e seguindo para Campinas, depois Anápolis e por fim Imperatriz. Encontrou com Osvaldão e o vice comandante Humberto Bronca do destacamento B. Seis dias após o início da guerrilha Genoíno foi preso. Já Osvaldão morreu num combate na região da Gameleira. As prisões aconteceram apenas na primeira campanha. A partir de 1973, a orientação da ditadura era eliminar. A tortura era feita publicamente para causar pânico na população.

A região do Araguaia virou uma área estratégica da fronteira agrícola. O lema era integrar para não entregar, que começou a abertura da Transamazônica (BR-230) nos anos 1970, governo de Emílio Médici, que esperava em dez anos um movimento de dois milhões de pessoas sendo um instrumento do progresso do país. Boa parte dessas pessoas desistiram e migraram para regiões do Norte e Nordeste do país. Os danos causados ao meio ambiente foram devastadores. A área devastada daria para cobrir todo o Rio de Janeiro. A BR foi antes de tudo parte de uma estratégia militar. A intenção era estimular grandes projetos agropecuários, madeireiras, mineradoras e o modelo concentrador do sul da Amazônia.

A transamazônica, que tem 4.260km (só para se ter uma ideia, daria para ligar Moscou a Lisboa e ainda sobraria 100 km), serviu para unir o lado oriental e ocidental do Brasil. Começa em Cabedelo (PB), passando pelo Ceará, Piauí, Maranhão, Tocantins, o Pará inteiro (Estado onde tem a maior parte do percurso da rodovia), terminando no Amazonas. Nesse contexto, o sul do Pará foi a grande fronteira agrícola. Lá não existia um Estado legal. Essa região era controlada pelos bate-paus, pistoleiros e chefes locais. Portanto, foi o período que a ditadura queria ocupar a Amazônia, havendo uma corrida para a região. Serra Pelada talvez seja um grande exemplo do que havia e há de riqueza em minério na região. É possível que os guerrilheiros já tivessem plena noção das riquezas da região, o que consequentemente traria disputas intensas tanto do ponto de vista doméstico quanto internacional. Romualdo Pessoa afirma, no documentário Osvaldão (2015), que o “Osvaldão já havia estado ali na área onde surgiu depois Serra Pelada e tudo indica que os guerrilheiros tinham estudos e conhecimento da riqueza que havia ali naquela região.”

Apesar da região ser favorável para o plano militar dos guerrilheiros, o fator de mobilização popular e conscientização era difícil, haja a vista a facilidade em serem descobertos pela repressão. Esse trabalho de base (muito precário) então só começou quando se deu início as hostilidades. Naquela época não existia trabalho de base na região, nem sindicatos, partidos ou qualquer tipo de associação política. A população não tinha experiências coletivas de luta. As casas eram muito distantes umas das outras, o que dificultava o processo de politização. Ainda que tenha tido todas as debilidades, a guerrilha durou dois anos. E o que fez com que a guerrilha durasse tanto tempo? Justamente o manejo que os guerrilheiros tinham da região, o conhecimento do território, da população etc. A guerrilha pressupõe iniciativa, liberdade de movimento e surpresa. As referências naquele momento eram a Guerra do Vietnã e a Revolução Chinesa.

Quando nos foi incumbida a tarefa de produzir um filme sobre a Guerrilha do Araguaia, também foi colocado o tema central, que deveria nortear a narrativa: a questão teórica nos obrigaria a pensar a gênese dos principais problemas em torno do que aconteceu, colocando também a compreensão dos desdobramentos e conclusões que poderia apontar para os rumos das lutas atuais. Tanto é que a LCP (Liga dos Camponeses Pobres) fora citada e a conclusão é a de que seria preciso organizar um partido verdadeiramente revolucionário, abandonando certas questões incômodas como o stalinismo, a institucionalização e burocratização própria da cooptação do Estado de classe da burguesia, como coloca Danilo Carneiro em seu longo depoimento de 12 horas! Esse longo material, que denominei “Memórias de um Guerrilheiro”, foi disponibilizado na íntegra e dividida em capítulos em meu canal do Youtube 202 filmes e venho trabalhando na produção de um novo documentário há alguns anos nele até como forma de homenagear Danilo, que faleceu em janeiro de 2022 aos 80 anos. Particularmente guardo profundo apreço por Danilo por ter nos ajudado e estimulado uma produção independente o que certamente significou um avanço para nós naquele momento (ainda que o processo de produção tenha sido contraditório).

Araguaia, Presente! (2018) foi possível graças a um documentário produzido anteriormente chamado El Pueblo que Falta (2015), produzido por mim e André Queiroz. Numa ocasião em que exibia este filme, aproximou-se Danilo Carneiro e ofereceu a possibilidade de financiar um novo filme sobre a Guerrilha do Araguaia, mas sem chover no molhado, já que a filmografia sobre o tema era extensa. Danilo financiou a obra dando no total R$100.000,00. O orçamento total do filme foi R$120.000,00. Na primeira etapa de produção, filmamos os depoimentos do Danilo Carneiro, José Genoíno, Criméia Alice, Dagoberto Costa, Wladimir Pomar e Victoria Grabois. É importante destacar aqui que a entrevista com Danilo exigiu de nós maior esforço. Fomos para Florianópolis e registramos uma longa entrevista de 12 horas, onde Danilo faz uma análise sobre a guerrilha do Araguaia e o contexto histórico brasileiro. É realmente algo espantoso, dado o nível intelectual de Danilo, exímio leitor e conhecedor do marxismo e da história brasileira. A montagem desse material exigiu alguns meses de trabalho somando um total de 17 cortes. Num segundo momento, filmamos as cenas de ficção com quase vinte atores e diversos figurantes na região de Lumiar e em Niterói no Teatro Popular.

O debate em torno da questão teórica é ampla e remonta a princípio à década de 1950, quando o PCB deixa claro a sua posição diante da burguesia nacional e do desenvolvimento industrial do Brasil. Para o PCB, o papel da burguesia nacional era fundamental e a aliança com esse setor depositava esperanças de uma relação possível, haja vista o caráter supostamente progressista da classe dominante brasileira. Pomar (1980) afirma que:

A ideologia destacava e exagerava unilateralmente o caráter progressista do desenvolvimento capitalista nacional, negando ou escondendo os traços essenciais do capitalismo, traços que sobressaem tenha a burguesia a nacionalidade que tiver. Nada dizia sobre o processo de exploração da classe operária, sobre a criação de um enorme e miserável exército industrial de reserva, sobre o desemprego e as crises inerentes ao capitalismo, ao mesmo tempo que reservava à burguesia um papel “revolucionário” para o qual ela jamais demonstrou estar capacitada, em toda a sua história.

O PCB adotou uma orientação abertamente conciliatória, liberal e reformista por acreditar que naquele momento a burguesia nacional precisava ser apoiada. Era necessário promover o processo de industrialização do Brasil, ainda bastante atrasado em comparação com outros países. Segundo Pomar (1980),

O marxismo desses setores passou a dar cobertura àquela “ideologia”, nitidamente nacional-reformista, e a influenciar amplas camaradas do proletariado, alimentando ilusões na capacidade reformista e transformadora da burguesia. (…) Argumentava que a contradição com o imperialismo norte-americano unia toda a nação e que, após sua solução seria possível resolver mais facilmente a contradição com os latifundiários.

E conclui: “foi em torno do caminho, da concepção e do método da luta armada é que surgiram as maiores divergências no seio da esquerda brasileira.” (POMAR, 1980) A conformação da guerrilha começa justamente com debates internos sobre a violência revolucionária. O método do PCdoB naquele momento era revolucionário, mas a teoria não. Por isso, os possíveis resultados cairiam em imbróglios já historicamente conhecidos, como a conciliação de classes.  O rompimento e o surgimento do PCdoB em 1962 é um dos desdobramentos de uma política abertamente conciliatória e enganosa promovida pelo PCB. O Relatório Kruschov de 1956 foi crucial para o racha.

Ao reformular o partido e concentrar forças nas decisões necessárias a serem tomadas naquele momento, o PCdoB afirma que as condições para a guerrilha estavam dadas. Nesse contexto, o debate sobre a violência revolucionária é colocado como pedra de toque juntamente com a busca pela região que pudesse se desenvolver a guerrilha. Esse debate, no entanto, foi aventado apenas internamente. A conclusão de que as condições históricas para essa luta estavam colocadas e todos os demais pontos como o esgotamento de outras formas de intervenção e reivindicação da classe trabalhadora, estabeleceu como verdade esse diagnóstico tendo com isso a necessidade de se colocar em prática organizações capazes de a partir de uma organização centralizada alastrar a luta pelo campo com a participação das massas que se politizariam nesse processo.

Araguaia, Presente! (2018), portanto, foi o mais recente filme produzido sobre o tema, mas certamente não o último; o debate sobre a guerrilha não está encerrado, já que o capitalismo continua atuando e radicalizando o seu processo de exploração contra a classe trabalhadora. Os filmes servem também como fator de mobilização das massas, já que tais produções têm como foco não deixar que a leitura produzida sobre a guerrilha caia no engodo de meramente criminalizar ou condenar seus métodos. Sabemos que a luta é feita de avanços e recuos e deve continuar partindo dos próprios trabalhadores suas formas de organização capaz de sustentar todas as fases do processo revolucionário brasileiro.

*Arthur Moura é doutorando em História Social na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

Referências


POMAR, Wladimir. Araguaia o partido e a guerrilha. São Paulo: Brasil Debates, 1980.

AMORIM, Carlos. Araguaia histórias de amor e de guerra. Rio de Janeiro: Record, 2014.

REZENDE, Claudinei. Suicídio Revolucionário a luta armada e a herança da quimérica revolução em etapas. São Paulo, Unesp, 2010.

GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. São Paulo: Expressão Popular, 2014.

Notas


[i] A filmografia que conheço e pesquisei sobre o tema da Guerrilha do Araguaia foram onze: Araguaya – a conspiração do silêncio (2004); Guerrilha do Araguaia: as faces ocultas da história (2007); Araguaia: campo sagrado (2011); Guerrilha do Araguaia (documentário da TVE) (2010); Camponeses do Araguaia: a guerrilha vista por dentro (2010); Araguaia (2015); Osvaldão (2015); Soldados do Araguaia (2017); Araguaia, Presente! (2018); Guerrilheiros – os comunistas que lutaram no Regime Militar (2022); Memórias de um Guerrilheiro (previsão 2025). Se pensarmos que a Guerrilha do Araguaia foi parte do contexto geral do período ditatorial, há uma quantidade razoável de produção de filmes sobre o tema.

[ii] A Brasil Paralelo produziu o mini documentário Guerrilheiros – os comunistas que lutaram no Regime Militar (2022), que começa com a voz em off dizendo que “mesmo antes de 1964, guerrilhas rurais e movimentos armados já existiam e estavam determinados em fazer a revolução. Após o 31 de março, esses grupos passam a adotar métodos hediondos e submetem o Brasil a anos tenebrosos. O terrorismo revolucionário se torna cotidiano. O crime, o medo e o sangue marcam presença na vida dos brasileiros.”


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