Tábua de salvação

Eduardo Berliner, Osso, aquarela sobre papel, 14,5 x 14 cm, 2021.
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Por PRISCILA FIGUEIREDO*

Cinco poemas

Um dilema

Senhora, a sua cachorra está comendo toda a macumba lá.
Eu já me esparramava ao pé da árvore, certa de que ela corria
por entre as ramagens da praça.
Que estraga-prazeres! Por que o guarda veio me avisar disso?
E o que era “comer macumba”?
Não precisei bater a cabeça; era metonímia:
Sua cachorra, senhora, está comendo toda a comida do despacho.
E daí, pensei? Deve estar fresca, e um pouquinho
estragada que estivesse não ia lhe fazer mal.
Cada coisa que os cães metem na boca,
inda mais os vira-latas, como era o caso.
Mas o rapaz veio me advertir apavorado
como se fosse algo de grande, de grande perigo. De grande perigo?
Intoxicação estava descartado. Não seria bom se ela comesse doces
— isto às vezes tem nos despachos, mas morrer disso, não
morreria. Era um prazer raro e roubado
porque concedido jamais seria.

Então de onde vinha o alarme?
Decerto da superstição:
Senhora, a sua cachorra está comendo toda a comida da macumba [pros [espíritos.
Eu não queria desonrar o ritual de ninguém,
mas não contavam que aqueles petiscos,
deixados ao ar livre, sobre o chão,
podiam ser cobertos de formiga,
podiam até ser comidos pelo homem, do jeito que as coisas estão?
Eles também estariam furtando comida aos espíritos.
O temor dele afinal era que fossem vingativos?
E mais que ao animal punissem à dona negligente,
espichada ali na sombra?
Ou na verdade o alarme apenas se devia
a uma importante questão ética:
Seu cão, senhora, está pondo tudo a perder para o oficiante:
se quis o marido de volta, este não volta mais;
se quis um emprego, escafedeu-se o emprego.
A inveja seguirá empatando a vida da pessoa,
e acabou-se para sempre o crédito do pai-de-santo.

Sim, quando imaginei o quadro todo, levantei de um salto,
e me guiando de longe a cauda empinada e faceira
me aproximei do animal que comia o banquete
com sofreguidão demoníaca. Tive medo?
Não havia muito a salvar. Agora era rezar ou fazer
figas pra que o trabalho obtivesse o seu fim.
Mas e se o fim fosse ferrar com uma pessoa?
Uma vez ou outra isso não acontecia?
Ah mas que me importava seu propósito?
(era preciso ser firme no meu raciocínio.)
Que ela saísse ilesa, a magia, era o mais
lógico a desejar mesmo com o ebó já
dentro do bicho[i].

 

Espetáculo

O pastor garantiu
que ia numa perna e voltava noutra.
Ficaram esperando com o coração
rumoroso.
Sua mulher lhes dera toda a corda —
que boa e leal senhora esta,
na saúde e na doença,
na vida, na morte e no que não
vem a ser nenhuma nem outra
nem coisa outra nenhuma!
Proibiu as exéquias,
afrontou a funerária,
que então entregou pra Deus.
Era gente entrando pelo ladrão,
os desocupados de sempre,
mas também os que não se ocupavam
com mais nada naqueles dias porque tinham
temor de faltar ao grande momento.

Realizando-se o vaticínio de uma ressurreição,
teriam tido uma palhinha do grande espetáculo,
geral e futuro,
prometido por Cristo e depois por Paulo
de Tarso aos coríntios. A visão os armaria
de coragem para atravessar os últimos dias até lá,
que serão cada vez mais vazios, senão sombrios —
mesmo os últimos podem ser ainda muitos.
Há os que já nascem alegres e confiantes,
mas esse não é o caso da maioria, tampouco o meu.

Tudo bem, não foi desta vez. E tanto melhor — se é difícil
crer sem o auxílio de uma bela manifestação visível,
mais estimado de Deus
é quem persevera sem nada ver.
Sejam as Escrituras a nossa tábua de salvação;
com elas não haveremos de naufragar.

No documento que teve firma reconhecida em Goiatuba,
o pastor afiançou que sua carne, mesmo sem os sinais vitais,
não ia cheirar mal nem se desfazer. Que a gente toda esperasse!
Duas testemunhas mais o tabelião consagraram civilmente
a profecia obtida em sonho já lá se vão quatorze anos.
Mas estes dias o cadáver urrou de tão fedorento; ocorre
que cada um é dono do seu nariz e lhe disse: “Eu quero
que você aguente, sem escândalo,
esse odor do outro mundo”,
e ele, nariz, deu um jeito. Como não seria assim
se a vontade indômita de Huber Carlos Rodrigues
poria os vermes pra correr e alinhavaria a carne
que se desmanchava? Ele era sistemático e pretendeu
um espetáculo perfeito e sem putrefação.
Ora, mas que tour de force não seria se esta avançasse
e do fétido lodo o espírito voltasse a fazer um homem.

Quatro dias e quatro noites,
e nenhuma autoridade ousou dizer ao povo que isso
tudo era uma tremenda bizarrice, senão capricho,
como se ele soubesse quão grande pode ser a fúria
contra quem tenta separá-lo ou dissuadi-lo quando
unido por expectativa altamente concentrada,
tão rara como um milagre.
Mil corpos que não se aguentavam em pé,
uns tantos deles fétidos, ulcerados e pustulentos em vida,
subitamente se tornaram vigilantes, ou ébrios de orações,
animados de energia infantil.
As picuinhas, mas também as exigências imediatas
da vida não puderam distraí-los. Aguentaram firmes
em torno do corpo que apodrecia.
Se fosse possível falar em povo ressuscitado,
eu falava.

 

Poema que vi andar disfarçado num artigo da Superinteressante

“Um vírus é menor que uma titina.”
Não sabia o que vinha a sertitina,
mas essa repetição
silábica, tão íntima e onomatopaica, nunca
haveria mesmo de engrandecer ninguém.

O nanico nanométrico não come,
não respira,
não se locomove nem se reproduz
lá com os seus, as suas,
não obedece ao dogma central de Crick.
Simplesmente não obedece.
Incorreto dizer que seja um extremófilo.

Trocinho impossível, se existe
é para tirar cópia de si mesmo
através de um passante incauto,
tanto faz se um cachorro, uma bactéria, um homem.
Existir não é bem a palavra,
pois os que se dedicam a estudá-lo garantem
que não vive tampouco está morto.

Frequentam os três domínios atuais da Vida,
mas penso que formam a nova demonologia.
Por tremenda deficiência
“multiplicam-se como um exército cossaco”
(o qual se expandiu glorioso pelas estepes
e pelos séculos só para virar esse símile).
Como pode a impossibilidade
resultar em tanto domínio?

Ele, que não é,
sem nós
não mostraria a que veio.
Na célula viva acharam um mimeógrafo,
oh não, sua deep web, e aí enxameiam
preparando a revolução.

 Inativados,
contribuem com o inimigo
numa zona intermédia
em que são menos que si, mas ainda
sabem o shibolleth de sua tribo,
guardam o semblante antigo
pra seduzir como um deus seduziria.

(Quem nasceu com mais astúcia
pra mimese, nós ou eles? Vivi pra
ver que tudo é guerra e cópia.)

Não tramam, atuam apenas
segundo sua tendência íntima.
São impotentes? São despóticos?
Em si, por si ou para si?
São assunto para a metafísica,
concluiu o cientista. Outro talvez diga
que são mesmo de política.

 

Sirva-se

A beleza dos pratos intocados.

A iguaria, pronta, ela te olha
na cara, sem vexame, sem duplicidade.
Está posta,
clara como as cartas que decidimos por na mesa.
Nada sabe de diferenças sociais,
nada sabe de almas, de números, de quantas bocas
haverá para alimentar, se será um punhado
de acionistas ou gente enfileirada na rua.
Se será o caso de forrar ou alimentar,
se será para a alma ou para o corpo.
Refinada ou comunitária,
celebratória ou trivial,
uma vez sobre a mesa
ela olha — as ovas de caviar também
nos olham, silenciosas e doces.

Todo prato se sente digno de ser provado
antecedido ou não por uma prece,
vindo dessa ou daquela cozinha.
O malfeito
não se sabe malfeito. O primoroso
nada sabe de si, não se acha superior.
Uns e outros desconhecem
as circunstâncias de sua produção
a qualidade de seus componentes.
Por isso
vitelos tenros como os amores piscam
indistintamente para todos
caso todos pudessem lhes aparecer ao redor.
Jazem, estão deitados.
Esperam
sabem tanto ou nada sabem quanto os feijões
(são como crianças de quatro anos).
Uns e outros ignoram a qualidade
dos aparelhos de jantar, ignoram se serão
provados com talheres ou com a mão.
Não fosse a moldura dos continentes
espalhavam-se sobre a toalha ou a madeira
espalhavam-se sobre a terra e continuariam esperando.
Em algumas culturas, sabemos,
é o que ocorre e dá no mesmo.

Certos comensais se sentem especialmente convocados —
“Essa sobremesa estava olhando para mim!” —
uma parte disso é verdade; outra é uma projeção psíquica
porque não há ser especial nesse caso,
nenhuma comida tem preferência de comensal.
Onde é posta, fica. Destampada, estará
disponível. Revirada, aceita.
Se cospem no prato onde a comeram,
isso magoará o cozinheiro, não a ela,
que cumpriu o seu papel.
Parece óbvio e é.
Mais que óbvio
é da natureza desse objeto nu e específico
de fome e de desejo.
“O melhor cozinheiro é a fome”,
esse destruidor de cultura,
esse fundador de cultura.

Se avançarem diretamente sobre as baixelas,
não haverá de se importar,
ao contrário muitas vezes de quem a serve.
Está para isso, para ser servida.
“Sirva-se!”, “Deixe que eu te sirva.”
Observe-se como ela, objeto diretíssimo,
ficou elíptica nessas frases, melhor dizendo
se fundiu ao verbo.
“Já estou servido, obrigado.”
Comida — estar sendo,
ter sido.

 

Poética

Coisa engraçada é um poema;
coisa mais engraçada ainda
é ele sair de bobeira
porque você estava ciscando
ou sonhando. Ou você estava
exausto. Não prestava pra mais nada
prático ou teórico, por assim dizer.
Para escrever um artigo, ir ao banco,
à feira, ao meeting, às favas.
Pra “discutir política” — exausto!

Os pulsos formigam, pendem.
Por sorte você digita; a caneta pesaria.
Você não está sofrida nem alegre,
você está mais especialmente para nada.
Então entra em cena a sua fraqueza
produtiva material, resistente a séculos.
Seu espírito palmilhado cede, lasseia,
baixa o dorso no pasto da língua,
lambe veios finos de água.
Não, ninguém aqui está para suar.

*Priscila Figueiredo é professora de literatura brasileira na USP. Autora, entre outros livros, de Mateus (poemas) (Bem te vi).

 

Nota


[i] Lendo o poema, uma amiga, Jussara Magalhães, me advertiu que a interpelação insistente do guarda talvez tivesse ocorrido por temer que a cachorra engolisse junto com o alimento coisas impróprias às vezes aí embutidas, como vidro. De fato, quando criança ouvi muitas dessas histórias, que depois mais tarde julguei serem invenções dos adultos para nos impedir de chegar perto dos doces ofertados nesses rituais. Em todo caso, fui pesquisar um pouco sobre o assunto, e, num artigo, por exemplo, de Norton F. Corrêa, sobre o despacho de batuques no Rio Grande do Sul, explica-se que o uso de vidro moído, entre outros estratagemas, se deveria à intenção de irritar ao deus estragando seu prazer de comer, de modo a fazê-lo se vingar da pessoa cujo nome está escrito no bilhete colocado próximo da comida, nome que é de um inimigo do oficiante, e não deste, o ludibriador. Em todo caso, o poema já estava pronto quando apareceu essa outra possível explicação para o desespero do vigia, e, se falhei em levantar todas as hipóteses para ela, seu efeito em mim, a reflexão sobre o dilema que desencadeou, assim como minha resistência antes é que me parecem ser o mais importante no que escrevi.

 

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