Por ISAÍAS ALBERTIN DE MORAES*
A decisão da Arábia Saudita de não renovar o pacto do petrodólar com os EUA representa um marco histórico, com implicações vastas e complexas
1.
Recentemente, no dia 9 de junho de 2024, o príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman, anunciou que a Arábia Saudita não irá renovar o acordo de petrodólar com os Estados Unidos. O acordo, negociado em julho de 1974, estabeleceu uma aliança estratégica de longo prazo entre os dois países.
Desenvolvido por Henry Kissinger, então Secretário de Estado do Presidente Richard Nixon, e por William Simon, subsecretário, em parceira com a Casa Real Saudita, chefiada pelo Rei Faisal bin Abdulaziz Al Saud e o príncipe herdeiro Fahd bin Abdul Aziz al-Saud, estabeleceu dois grupos de trabalhos: cooperação econômica e necessidades militares da Arábia Saudita.
Na questão econômica, os EUA garantiram que a Arábia Saudita, na qualidade de presidente da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), determinasse que todos os países-membros fixassem o preço do petróleo em dólares. Isso fez com que todas as transações comerciais na área de petróleo, gás e outros combustíveis fossem realizadas exclusivamente na moeda estadunidense.
Na esfera militar, a Arábia Saudita e sua Casa Real, sunita, receberiam proteção dos EUA. A Arábia Saudita temia a superioridade militar do Irã, xiita, que ameaçava sua integridade territorial e a segurança dos membros da Casa Real Saudita. É um modelo de proteção, grosso modo, semelhante aos tratados de Washington com alguns países asiáticos como Japão e Coreia do Sul. Os EUA mantêm bases militares importantes na Arábia Saudita.
Bom, desde o dia 9 de junho, esse arranjo está em risco por diversos fatores e com possibilidades de causar impactos determinantes para economia política internacional. Sem exageros, essa mudança transformará significativamente o panorama econômico mundial, a geopolítica e o sistema internacional e com repercussões na América Latina.
O acordo de 1974 é uma das principais razões que fizeram do dólar a moeda dominante no mundo mesmo após o fim do Sistema Bretton Woods em 1971. Em suma, o Sistema Bretton Woods, estabelecido em 1944, vinculava as moedas ao dólar estadunidense que, por sua vez, estava lastreado ao ouro depositado pelas nações signatárias, como garantia da moeda, em Fort Knox.
O sistema durou até 15 de agosto de 1971, quando os EUA, de forma unilateral, acabaram com a convertibilidade do dólar em ouro, o que tornou o dólar uma moeda fiduciária. Essa decisão, referida como “Nixon Shock”, criou uma situação em que o dólar estadunidense se tornou moeda de reserva, usada por muitos países.
A partir de 1974, com o acordo com a Arábia Saudita, pode-se afirmar que o lastro para os novos dólares emitidos pelos EUA é a demanda gerada pela obrigação de denominar os contratos de compra e venda de petróleo, gás e outros combustíveis em dólares. O ouro metal foi substituído pelo “ouro negro”, o petróleo. Há 50 anos nascia uma das âncoras do sistema econômico-financeiro internacional e da hegemonia dos EUA, a “Era dos petrodólares”.
2.
Os petrodólares criam um ciclo de capital interessante no sistema internacional. Os países produtores de petróleo, membros da OPEP, vendem seu produto para os EUA e o resto do mundo em dólares, depois reciclam seus rendimentos em investimentos e ativos denominados também em dólares por meio dos bancos comerciais estadunidenses e europeus. Como todos os Estados precisam de petróleo, todos necessitam de possuírem dólares como moeda reserva, logo ao investir ou emprestar para economias emergentes ou centrais os petrodólares apoiam explicitamente uma dominação-dependência dos dólares perante outras moedas.
As entidades financeiras privadas e os próprios Estados tratam o dólar como um porto seguro para investimentos e poupança a longo prazo. Isso permite, por exemplo, que os EUA expandam sua base monetária (imprimam dólares) sem sofrer de pressão inflacionária no seu mercado interno na mesma dimensão que outras economias.
Em 2023, dados do Tesouro dos EUA demonstraram que as reservas de ouro em Fort Knox (avaliadas a preços de mercado) estavam estimadas em 270 bilhões de dólares enquanto o total de moeda estadunidense em circulação e depositadas no sistema bancário (conta corrente e poupança) somavam 21 trilhões de dólares. Em outras palavras, para cada dólar que pode ser lastreado ao ouro, há 77 dólares sem qualquer tipo de lastro, ou seja, fiduciários.
O que mantém o sistema da Era dos petrodólares é o acordo entre EUA-Arábia Saudita de 1974 e que pode ser quebrado em breve. Os motivos para que o príncipe herdeiro saudita não renove o arranjo são diversos, mas destacam-se: (i) aumento da influência econômica da China, (ii) ampliação do bloco BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), (iii) redução da produção de petróleo pela OPEP+; (iv) Guerra Rússia-Ucrânia/Otan; (v) tensões diplomáticas entre EUA-Arábia Saudita (assassinato de Jamal Khashoggi).
A possível queda do sistema petrodólares é palpável e os EUA sabem disso. O candidato a Casa Branca nas eleições deste ano e ex-presidente dos EUA, Donald Trump, afirmou, em abril de 2024, que seus conselheiros econômicos estão esboçando um plano para eventuais sanções contra países que se afastarem do dólar como moeda de troca comercial e de reserva. O projeto prevê a imposição de multas, controles de exportação, cobranças por manipulação cambial e tarifas.
Nas palavras de Donald Trump: “Eu não permitiria que os países deixassem de usar o dólar porque, quando perdermos esse padrão, será como perder uma guerra revolucionária. Isso será um golpe para o nosso país”.
Os formuladores de política econômica e das relações internacionais do Partido de Donald Trump, o Republicano, estão cientes de que o fim da Era dólar no sistema econômico-financeiro internacional é um xeque-mate a hegemonia dos EUA. Se realmente a Arábia Saudita e demais membros da OPEP começarem a negociar o petróleo em diferentes moedas, os EUA ficariam restritos com suas opções para manter sua força bélica, com uma corrida armamentista com a Rússia, e seu empenho econômico, em uma guerra comercial com a China.
3.
As saídas para os estadunidenses são: (i) expandir ainda mais sua base monetária (imprimir dinheiro), que levaria a uma inflação intensa, crise fiscal e colapso da economia. (ii) Buscar novas referências de riquezas para lastrear o dólar diferentemente do ouro. Não há espaço para voltar a acumular ouro, pois nos últimos anos Rússia, Índia e China aumentaram expressivamente suas reservas de ouro, logo saíram na frente. Muitos economistas e políticos Republicanos estão conjecturando um padrão dólar-bitcoin.
(iii) Conduzir política e economicamente as principais economias do mundo na construção de um novo Sistema Bretton Woods, algo que os BRICS, puxados pela China, parecem mais dispostos a concretizarem. (iv) Forçar a dolarização de outras economias, sobretudo em sua área de influência direta: a América Latina.
Até o momento, tudo indica que, nos EUA, os Democratas estão perdidos entre essas estratégias enquanto os Republicanos já optaram pelo confronto de blocos econômicos, preferindo a tática de forçar claramente a adesão parcial ou total ao dólar de economias mais fracas. O método é desestabilizar social, política e economicamente as nações-alvos por meio de artifícios de guerra híbrida, incluindo apoiar a direita populista e neofascista, para depois, com a atrofia dos mecanismos de comando dos sistemas econômicos e políticos dessas nações, recomendar como tábua de salvação, talvez, a dolarização de suas economias.
Na América Latina, já há três economias dolarizadas: Panamá, El Salvador e Equador. Não foi por acaso que Javier Milei, atual Presidente da Argentina e representante dessa “nova direita” na América Latina, defendeu enfaticamente, durante sua campanha, a total independência do Banco Central e a dolarização da economia argentina.
Ele estava dando voz ao projeto dos EUA, especialmente dos Republicanos, que visa manter o dólar como moeda de reserva ou até mesmo forçar a total dolarização das principais economias da América Latina: Brasil, México e Argentina. A população desses países, no geral, ainda não entendeu o que está em jogo com o começo do fim da Era dos petrodólares. O mundo e a vida, como nós conhecemos, mudarão completamente.
É no mínimo irônico que o elemento decisor para a sinalização de uma nova Era na economia internacional e na geopolítica, sinalizando a construção de um novo sistema econômico-financeiro multipolar, passe pela definição de um monarca, o príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman. A decisão da Arábia Saudita de não renovar o pacto do petrodólar com os EUA representa um marco histórico, com implicações vastas e complexas.
À medida que o equilíbrio de poder econômico e político global se ajusta a essa nova realidade, o mundo enfrenta uma era de incertezas e oportunidades. A compreensão e a adaptação a esses novos desafios serão cruciais para todas as nações, especialmente aquelas na América Latina, que podem ser as próximas peças nesse xadrez geopolítico e econômico em constante evolução.
*Isaías Albertin de Moraes, economista, é doutor em Ciências Sociais e professor visitante do Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas (CECS) da UFABC.
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