A imanência da crítica – os sentidos da crítica na tradição frankfurtiana e pós-frankfurtiana

Joan Miró, Pássaro lunar, bronze, 2,28 m x 1,98 m x 1,45 m, 1944–1966.
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Por EDUARDO SOARES NEVES SILVA e por LUIZ PHILIPE DE CAUX*

Prefácio e Introdução do livro recém-lançado de Luiz Philipe de Caux

Prefácio [Eduardo Soares Neves Silva]

Não é de hoje que o termo crítica se colocou – talvez contra “sua” vontade, se um ato de autorreflexão fosse vontade – no centro do debate que justapõe de modo no mais das vezes precário um rol enorme de teorias, desde as distintas gerações, modelos, círculos ou tradições da teoria crítica frankfurtiana (variações terminológicas de enormes consequências) até o campo ainda mais heterogêneo de modos de pensar que tomam Kant, Hegel ou Marx como referência, um arco de indecisa amplitude que inclui de Foucault a Brandom, de Spivak a Bhaskar, de Badiou a Nancy.

O livro de Luiz Philipe de Caux, A imanência da crítica: Estudo sobre os sentidos da crítica na tradição frankfurtiana e pós-frankfurtiana, incide sobre esse debate com os olhos no uso estrito do termo crítica como referente de teorias cuja autocompreensão remete ao momento fundador da autonomeada teoria crítica da sociedade, que tem em Horkheimer e Adorno dois de seus proponentes e tem em Habermas, em Honneth e em subsequentes pessoas suas posições ou redescrições. Noto, e assim reitero o evocado pelo que acabo de escrever, que o sentido do que se estabelece nessa fieira já é parte do problema enfrentado na tese. Como nomear o coletivo de autocompreensões singulares que trazem consigo tanto a tarefa da autorreflexão como a de diferenciação por sobreposição, uma discreta e contida Aufhebung?

Desde o momento em que Habermas, ainda em 1973, postulou a diferença entre reconstrução e autocrítica, ou ao menos desde a historiografia seminal feita por Jay, no mesmo ano, vários foram os modos propostos para distinguir seja os sentidos da crítica nesses enfoques teóricos, seja os graus de parentesco ou afastamento entre a diversidade de proponentes. Muitos desses esforços estão diretamente condicionados por duas posições que se compreenderam, cada qual ao seu tempo, como distinções atreladas, no plano da justificação, ao diagnóstico de déficits.

Em Habermas, a explicitação inconsistente, deficitária, das bases normativas da crítica por Adorno e Horkheimer pode ser vista como razão suficiente para a reposição da tarefa da teoria: essa deve trazer à tona critérios normativos antecipados em arranjos institucionais e sociais já existentes, ao invés de apenas indiciados na negação determinada de uma totalização tão falsa quanto efetiva. Em Honneth, o foco vai de um a outro déficit: ao invés de somente normativo, incide também um sociológico. Desse modo, a redução do social ao imperativo da dominação sob condições capitalistas tanto coloca Adorno e Horkheimer aquém da apresentação das capacidades interpretativas dos sujeitos como entes morais, como também denota um amálgama estrutural-funcionalista cego ao específico agenciamento que se dá na dinâmica do reconhecimento.

Por seu turno, a via da separação “concretista” operada por Habermas entre os planos da reprodução material e da produção simbólica se enreda em entrave sociológico, cego à superveniência do conflito social sobre toda interação, fator precípuo do reconhecimento como gramática. Menos do que desenvolver o que acabo de resumir, interessa-me notar que qualquer autocompreensão marcada simultaneamente pelo par diagnóstico/déficit e pelo ato do indulto singular ou coletivo terá como consequência aquela diferenciação por sobreposição, isto é, a invenção de tradição ali intentada será sempre etapista, adote a expressão que adotar: geração, modelos, círculos, tradições. O peculiar, no caso, é que a teoria crítica da sociedade repõe esse risco, em cada variante, a partir da resposta à pergunta: “o que é crítica?”.

Há riscos que devemos correr, há riscos a evitar e há alguns raros que demandam outro modo de ver. Quando as pesquisas que resultaram neste livro começaram, ainda como trabalho de doutorado realizado por Luiz Philipe de Caux sob minha orientação, o que de imediato se afigurou claro para seu autor é que não há carência de teoria crítica como teoria da crítica. A autorreferencialidade no tratamento da questão de fundo que supostamente dá unidade a tantos modos de pensar – a saber, uma orientação à autorreflexão, comportamento prático em relação à teoria – está na base, portanto, da série infindável de debates que, ironicamente, constituem uma variante metafilosófica do tratamento de uma questão relativa à realização da filosofia.

Mas como enfrentar o tema dos sentidos da crítica na tradição frankfurtiana sem incorrer nos mesmos dilemas? A saída encontrada por de Caux é deslocar o foco: ao invés do sentido do termo crítica, que sugere de chofre uma teoria da crítica, a pergunta é pelos sentidos assumidos pela crítica, ou seja, o aposto ao termo. Esse deslocamento, marcado por uma interpretação muito consistente do Adorno tardio, encontra uma crítica “imanente” positiva, uma crítica imanente negativa e uma crítica imanente “em geral”, distinções minuciosamente desenvolvidas pelo autor, com grandes consequências para a nossa posição, a de pessoas que lidam com teoria crítica. Ou seja, o modo de ver aberto nos inclui como parte do problema, parte do impasse, parte de uma solução possível. Tal rumo percorre o livro e, desde já, convido à leitura.

Como último comentário, observo que se o caso é conceber o ato de uma crítica imanente negativa ou, nos termos propostos por de Caux, apontar à dialética os limites de seu nexo de imanência e, com isso, compreender-se como negação da identidade, negação da imanência, então a pergunta se refaz: se essa negação exige que se passe ao objeto, como conclui o autor, podemos perguntar: qual objeto?

Parece-me que há duas tendências contemporâneas de resposta a essa última pergunta, não a que Luiz Philipe de Caux se faz, mas a que ele lança para que, entre tantas pessoas, também eu a faça. A primeira dessas tendências encontra seu objeto no mesmo lugar – em alguns casos, o mesmo objeto – deixado por Marx. Uma tradição de crítica, sobretudo um método, se esboça a partir dos traços que vão de Adorno a Marx, e desse a vários marxismos heterodoxos, e desses às teorias da crise, e dessa à teoria do valor, e daí às análises da reprodução da forma de vida humana em face da lógica da decomposição que marca nosso momento na breve, ainda infinita existência do capitalismo. Outra tendência, bem mais incipiente, toma o mesmo objeto, mas por outro método. Com os olhos no problema do sentido da crítica imanente negativa, há quem veja um método materialista que é o de Marx, mas também não o é. Um método imanente voltado ao que é residualmente o objeto da crítica possível, um objeto mínimo, quase indiscernível no turbilhão que toma o contemporâneo como ponto de chegada.

Tal método, que de Caux corretamente identifica, é tardiamente o método de Adorno, desde sempre o método de Benjamin. Em outro lugar, caracterizei esse ponto de convergência entre os traços anteriores e a fidelidade a si de Benjamin a partir do problema da submersão no objeto. Em um livro com tantos conceitos, argumentos e enigmas, ser esse um daqueles nos quais Luiz Philipe de Caux concorde com o que penso, ora, eis o que chamo de um feliz encontro.

Introdução [Luiz Philipe de Caux]

Resenhando, no ano da morte de Adorno, uma compilação de artigos de Horkheimer e o então novo livro de Habermas, Conhecimento e interesse, ambos publicados no ano anterior (momento, portanto, marcante para a constituição retrospectiva da teoria crítica frankfurtiana como uma tradição de pensamento), Rüdiger Bubner diagnosticou uma espécie de impasse inerente ao conceito mesmo de uma teoria crítica. Por um lado, está em seu próprio conceito que ela não pode deixar de ser crítica de si mesma, precisa incluir a “autocrítica da teoria crítica”; por outro, é para ela igualmente uma determinação fundamental que ela não possa, voltada apenas para si mesma, esvaziar-se de conteúdo, num “dogmatismo da pura crítica enquanto tal”.

O gesto crítico por excelência é o do voltar-se da teoria para si mesma, e todavia ela não pode, nisso, perder de vista o objeto. Vale dar a palavra a Bubner: “O impulso crítico, que guarda numa forma modificada a antiga pretensão da filosofia à verdadeira racionalidade e se propõe a realizá-la ao menos negativamente junto a todos os fenômenos ideológicos que já não correspondem àquela pretensão, não pode em nenhuma circunstância deter-se perante si mesmo e permitir, como uma excessão aberta a seu próprio caso, uma redução ao status inocente de uma mera teoria de uma disciplina específica ao lado de outras; pois justamente a teoria crítica possui como conteúdo essencial a reprovação, em toda autocompreensão assim isolada e restringida da teoria, de um conceito encurtado de racionalidade, e, com isso, ao mesmo tempo da função de encobrimento ideológico e a da obstrução da liberdade humana. O conceito crítico de teoria só é capaz de convencer se não separar em lugar algum a crítica e a teoria, inclusive nele mesmo. Pois a solidificação não se faz tangível apenas nas teorias consideradas pela crítica da ideologia, mas também o procedimento infinito de reflexão crítica em relação a tais teorias pode se tornar dogmático. O processo de reflexão pode se autonomizar de tal modo que as explicações teóricas dessa espécie se movem para a margem como comentários exteriores, ao mesmo tempo que ocorre uma proteção contra as experiências de fato realizadas, ainda que a teoria crítica reivindique justamente a práxis”.[i]

Se este é um risco inerente à teoria crítica, não se trata para ela, naturalmente, de procurar uma espécie de meio termo entre a Cila da carência de reflexão (i.e., da “teoria tradicional”) e a Caríbdis da autorreflexão autonomizada: a teoria crítica não quer ser uma teoria reflexiva ma non troppo. Recuperando em parte a consideração de Bubner, Marc Sommer propõe para a teoria crítica a seguinte determinação, numa formulação tão simples quanto acertada: “O adjetivo crítica significa, na teoria crítica, autorreflexão, a crítica da teoria a si mesma”.[ii]

Se a autorreflexividade é constitutiva da teoria crítica, ela não admite uma demarcação de limites para além dos quais toda reflexão é excesso prejudicial. E, no entanto, ela sempre ameaça confundir-se, sobretudo quando se transforma em tradição institucionalizada, com uma autotematização que esquece daquilo em razão do que o tematizado existe. Esse risco atravessa, até o presente, a história da dita teoria crítica da sociedade frankfurtiana, entendendo-se por isso aquele fio de continuidade – de que natureza seja – que de algum modo liga os teóricos que atuam e atuaram junto ao Instituto de Pesquisa Social. Mas mesmo a indicação do impasse não é senão um movimento de autorreflexão da teoria. Ele pode ser considerado bem-sucedido se for capaz de distinguir a autorreflexão que preserva e aperfeiçoa a relação da teoria com o seu conteúdo daquela falsa autorreflexão que, na verdade, não é mais que uma forma de autorreferencialidade que esvazia a teoria.

Que crítica queira dizer, para a teoria crítica, autorreflexão da teoria, isso é o que já Horkheimer indicava com sua fórmula de que a teoria crítica é crítica da teoria tradicional. Ora, aquilo de que Bubner adverte é justamente que, quando o processo de reflexão da teoria se autonomiza, a reflexão abole a si própria e aquilo que era a teoria crítica se torna uma “disciplina específica ao lado de outras”: uma teoria tradicional. Se isso acontece, por seguir se oferecendo institucionalmente como guardadora de lugar da crítica filosófica da sociedade, essa teoria se torna, enquanto teoria tradicional, a teoria privilegiada à crítica. Pois se trata então de corrigir, pela reflexão, a autonomização da reflexão. A reflexão autonomizada não é um excesso de reflexão, mas ela mesma uma reflexão interrompida.

Este livro se dedica ao exame e à crítica do modo como uma específica determinação da crítica é tratada reflexivamente no interior da mencionada tradição frankfurtiana: sua determinação como crítica imanente. Ele compara, basicamente, dois grandes modelos autodesignados de crítica imanente. De início, me associo à discussão mais contemporânea sobre a determinação da crítica a partir de três autores que tomo por representativos deste cenário. Como Adorno referiu-se a Husserl no livro que a ele dedica, convém dizer que tratar deste conjunto de autores “é o ensejo, não a meta”.[iii] As brechas e contradições dessas teorias por assim dizer “menores”, que tendem provavelmente a encontrar pouca repercussão, explicitamalgo sobre esse “destino” da crítica.

O primeiro capítulo interpreta o contexto de discussão destes três filósofos, Celikates, Stahl e Jaeggi, cada um deles autor de um livro recente sobre a determinação da crítica, como um ponto de esgotamento de uma específica via de reflexão autonomizada da teoria crítica, ponto no qual ela perde todo contato com o conteúdo da crítica. A sua análise é ensejo, portanto, para perseguir retrospectivamente aquela via de reflexão autonomizada. Indo no encalço deste fio cuja ponta se descobre, exploro no segundo capítulo o modo como Axel Honneth (do qual aqueles podem ser considerados epígonos, mesmo quando lhe são críticos em maior ou menor grau), reintroduziu e sintetizou, num mesmo gesto, a ideia de que a teoria crítica é uma tradição estruturada como uma sequência de níveis de reflexão sobre si mesma, de um lado,e, de outro, a pretensão de que a crítica precisa e pode ser imanente a seu objeto. De certo modo, portanto, os resultados críticos alcançados no primeiro capítulo se estendem e afetam certas operações filosóficas fundadoras da noção honnethiana de crítica imanente.

O primeiro capítulo adianta uma indicação que será seguida nos seguintes. A análise das teorias da crítica daqueles três autores descobre nelas pressuposta uma teoria do objeto da crítica. Elas indicam, portanto, a necessidade de uma inversão no modo de colocar a questão: não começar pela definição do que é a crítica imanente, mas sim a do que é a imanência da crítica. De fato, essa nova posição do problema é como que deduzida da antiga. Ela se mostra como o modo consequente de lidar com o que o problema anterior deixa na sombra. Ora, o que se mostra no terceiro capítulo é que ela corresponde ao modo como Adorno pensara a questão originalmente – e originalmente também porque ele é o primeiro a tematizar o conceito de crítica imanenteda sociedade enquanto tal.

Que a filosofia é “seu tempo apreendido em pensamentos”,[iv] que ela tem um “núcleo temporal”,[v] isso não significa que a filosofia hegemônica de um tempo carregue a sua verdade. Ela pode carregar justamente sua inverdade. Postular o contrário seria acreditar ingenuamente em seu progresso. “Tampouco a filosofia está imunecontra a recaída – seja por um cientificismo de poucas luzes, seja por renegar a razão – nesse tipo de retrocesso que, semdúvida, não é melhor que a crença no progresso, maliciosamente escarnecida”.[vi]

Tento mostrar neste livro, de fato, que há duas grandes concepções autodesignadas de crítica imanente, uma positiva (representada em sua forma mais coerente por Honneth) e uma negativa (por Adorno), mas também que esta última, rejeitada por Honneth como apenas o primeiro e mais elementar “nível de reflexão” da teoria crítica, pode ser lida antes como uma crítica imanente da própria noção de crítica positiva – não como uma teoria irrefletida, portanto, mas antes como o grau mais elevado de reflexão.

*Eduardo Soares Neves Silva é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federasl de Minas Gerais (UFMG).

*Luiz Philipe de Caux é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

 

Referência


Luiz Philipe de Caux. A imanência da crítica: os sentidos da crítica na tradição frankfurtiana e pós-frankfurtiana. São Paulo, Edições Loyola, 2021, 480 págs.

 

Notas


[i] Bubner, Rüdiger. Was ist Kritische Theorie? Philosophische Rundschau, 16 (3/4), 1969, pp. 215.

[ii] Sommer, Marc Nicolas. Was ist kritische Theorie? Prolegomena zu einer negativen Dialektik. Zeitschrift für kritische Theorie, 21. Jg., H. 40/41, 2015, p. 171.

[iii] AGS 5, p. 9/ MTC, p. 29.

[iv] HW 7, p. 26.

[v] DA, p. 13 / DE, p. 9.

[vi] AGS 10.2, p. 636 / PS, p. 59.

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