Não, o resto não é silêncio

Imagem: Wendelin Jacober
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por EUGÊNIO BUCCI*

As palavras dóceis do governador de São Paulo comprometem a honradez de seus correligionários e vandalizam a história do PSDB

O resto é o “apoio incondicional” pronunciado em volume ultrajante pelo governador paulista, Rodrigo Garcia, do PSDB, diante de um presidente da República de cara fechada e seu séquito enfezado. Não, aquilo não foi um apoio, foi uma rendição completa e sobrenatural. Ao fim da tragédia, a cena continua, provando que existem palavras depois da morte política. Eis o resto do resto.

Assim estrebuchou o cadáver do tucanato paulista, estraçalhado, desfeito – e tagarela. Sua máscara mortuária saiu matraqueando para microfones, fotógrafos e cinegrafistas, seguindo um roteiro de humilhação prolongada. Não, o clima não era de campanha. Nada daqueles figurantes se amontoando em volta dos protagonistas de braços erguidos e de mãos dadas em euforias suprapartidárias, nada disso. O clima era de velório, quer dizer, de velório militar. Homens fascistas não choram, mas também não riem – quando se permitem mostrar os dentes, parecem prestes a latir.

Nos jornais de ontem, a imagem até que não foi tão funesta. Numa das fotografias, notava-se um esgar fazendo as vezes de sorriso no semblante do incumbente federal. A foto era uma ilusão, um flagrante menos soturno. Nos noticiários de TV, na noite de terça, deu para ver melhor o estado de espírito da turma que cercava o último dos tucanos. Nenhum dos circunstantes, em hora nenhuma, descontraiu o cenho. Ninguém sorria, nem mesmo o governador que recitava os termos de seu “apoio”. O presidente e todos os homens do presidente olhavam por cima dos holofotes, empertigados, com cara de poucos aliados. Estavam bravos. Em sua imaginação rarefeita, talvez desempenhassem o papel das tropas que pisam no território conquistado enquanto o representante dos vencidos assina a capitulação, “incondicional”.

Olhando para tão degradante espetáculo, mesmo quem nunca se identificou com o partido que se pretendeu, um dia, social-democrata sentiu um travo na alma. O PSDB governa São Paulo faz uma eternidade – os mais antigos contam que desde a década longínqua de 1990. Por suas fileiras passaram personalidades respeitáveis.

Agora, reduzido a isto, nada mais que isto, banca o morto-vivo convertido à sabujice, agarrado aos coturnos contra os quais se ergueu no passado. Mais insuportável ainda é pensar que muitos daqueles tipos perfilados em desalinho estavam armados. A maioria deles elogia ou já elogiou a ditadura militar. Um lá falou que iria restabelecer o AI-5. E há, também, o que prometeu fechar o Supremo Tribunal Federal. Pois lá no meio se via, incondicionalmente submisso, o chefe do Executivo paulista.

Sabemos que os líderes mais destacados do moribundo partido não seguiram a mesma trilha. Estes, coerentes, fazem oposição ao presidente da República e apoiam, agora no segundo turno, o candidato que pode derrotá-lo. O gesto do governador, entretanto, rebaixa qualquer dignidade. Suas palavras dóceis comprometem a honradez de seus correligionários e vandalizam a história da legenda com a qual chegou ao cargo que agora exerce.

Talvez ele mesmo não saiba, mas sua atitude constitui um atentado. Às vezes, a pior violência não é física, mas é aquela que se dá no plano do simbólico e fere de morte a memória que nos identifica. Os neonazistas que profanam cemitérios judaicos têm o objetivo de violar o que há de mais sagrado naqueles que mais odeiam. A rendição que pudemos testemunhar na terça-feira pode – e deve – ser entendida como um ato de profanação simbólica, mesmo que o ator em cena não se tenha dado conta do que fez.

A sujeição a que se prestou faz sangrar o orgulho legítimo das pessoas que integram ou integraram o PSDB, do mesmo modo que ofende quem, sem jamais ter se filiado ao partido, reconhece nele um patrimônio do campo democrático. Essa agremiação não merecia ver todo o seu passado confluir para o “apoio incondicional” ao seu oposto, não merecia se reduzir a um adulador fora de lugar misturado a usurpadores que não pertencem ao lugar que ocupam.

O Estadão de ontem, em reportagem de Leon Ferrari e Levy Teles (p. A13), trouxe a notícia de que, nas redes sociais, uma onda preconceituosa se levanta contra a gente nordestina. Em postagens exumadas do esgoto da xenofobia, vozes intolerantes atacam os eleitores da Região Nordeste, onde o presidente da República teve sua pior derrota no primeiro turno. Algumas mensagens xingam o Nordeste de “Cuba do Sul”. Uma delas pede para avisarem ao “presidente da Rússia que o Nordeste faz parte da Ucrânia”. Outras afirmam que “pobre é que nem lombriga” e há quem vaticine que “os burros do Nordeste” deveriam “morrer de fome”.

Foi a esse tipo de vaga furiosa que o governador de São Paulo entregou suas forças fracas e tristes. Agora, finalmente, assume que o partido dele é o Brasil: o Brasil que nega a si mesmo, o Brasil que odeia o Brasil. Chegamos, então, ao Brasil dividido acima de tudo. Uma barulheira, uma estridência infernal. Os rabugentos a quem o governador ofertou seu “apoio incondicional” devem achar que silêncio é coisa de comunista. Ele talvez concorde.

*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de A superindústria do imaginário (Autêntica).

Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.

 

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Celso Frederico Igor Felippe Santos José Machado Moita Neto Airton Paschoa Daniel Brazil Marcelo Guimarães Lima Lincoln Secco Ricardo Abramovay Leonardo Avritzer Tales Ab'Sáber Bernardo Ricupero Walnice Nogueira Galvão Afrânio Catani Luiz Werneck Vianna Luis Felipe Miguel Luiz Bernardo Pericás Luiz Eduardo Soares João Lanari Bo Rafael R. Ioris Manchetômetro Alysson Leandro Mascaro José Luís Fiori João Feres Júnior Rodrigo de Faria Luiz Marques Ronaldo Tadeu de Souza Ladislau Dowbor Eliziário Andrade Anselm Jappe Jorge Branco Claudio Katz Eugênio Bucci Alexandre de Freitas Barbosa Henri Acselrad Eduardo Borges Denilson Cordeiro Fábio Konder Comparato André Singer Rubens Pinto Lyra Alexandre de Lima Castro Tranjan Alexandre Aragão de Albuquerque Julian Rodrigues Paulo Sérgio Pinheiro Marjorie C. Marona Jean Marc Von Der Weid Andrés del Río Bento Prado Jr. Plínio de Arruda Sampaio Jr. Marcos Silva Thomas Piketty Ronald León Núñez Michael Löwy Kátia Gerab Baggio Liszt Vieira Yuri Martins-Fontes Everaldo de Oliveira Andrade Remy José Fontana Francisco Pereira de Farias Vinício Carrilho Martinez João Carlos Loebens João Paulo Ayub Fonseca Paulo Fernandes Silveira Luís Fernando Vitagliano Ricardo Fabbrini Carla Teixeira Atilio A. Boron João Sette Whitaker Ferreira Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Tarso Genro Mário Maestri Jorge Luiz Souto Maior Ricardo Musse João Adolfo Hansen Benicio Viero Schmidt Matheus Silveira de Souza Vladimir Safatle Andrew Korybko Paulo Nogueira Batista Jr José Geraldo Couto Bruno Machado Milton Pinheiro Vanderlei Tenório Gabriel Cohn Chico Alencar Caio Bugiato Heraldo Campos Bruno Fabricio Alcebino da Silva Paulo Capel Narvai Gilberto Maringoni Leonardo Boff José Dirceu André Márcio Neves Soares Berenice Bento Elias Jabbour Slavoj Žižek Antonio Martins Celso Favaretto Sergio Amadeu da Silveira Manuel Domingos Neto Flávio Aguiar Lorenzo Vitral José Costa Júnior Marcos Aurélio da Silva Lucas Fiaschetti Estevez Gerson Almeida Priscila Figueiredo José Raimundo Trindade Leonardo Sacramento Jean Pierre Chauvin Luciano Nascimento Valerio Arcary Fernão Pessoa Ramos Armando Boito Otaviano Helene Antonino Infranca Sandra Bitencourt Daniel Afonso da Silva Paulo Martins Chico Whitaker Luiz Carlos Bresser-Pereira Francisco Fernandes Ladeira Fernando Nogueira da Costa Eleonora Albano Maria Rita Kehl Francisco de Oliveira Barros Júnior Marcelo Módolo Eleutério F. S. Prado Daniel Costa Luiz Roberto Alves Boaventura de Sousa Santos Henry Burnett Renato Dagnino Marcus Ianoni Valerio Arcary Michael Roberts Gilberto Lopes Dennis Oliveira Michel Goulart da Silva Leda Maria Paulani Carlos Tautz Marilia Pacheco Fiorillo Luiz Renato Martins Antônio Sales Rios Neto Dênis de Moraes Salem Nasser Érico Andrade João Carlos Salles Juarez Guimarães Ronald Rocha Ari Marcelo Solon Ricardo Antunes Samuel Kilsztajn Eugênio Trivinho Flávio R. Kothe Annateresa Fabris Marilena Chauí José Micaelson Lacerda Morais Osvaldo Coggiola Tadeu Valadares Mariarosaria Fabris

NOVAS PUBLICAÇÕES