A imprensa brasileira e o Oriente Médio

Imagem: Mohammed Abubakr
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Por OSNAN SOUZA*

Qualquer denúncia a massacres, violações, e outras atrocidades cometidas pelas tropas e governo israelenses é apresentada como apoio ao terrorismo, quando não antissemitas

 “Impressionante operação”, “Sucesso” e “triunfo tático” são alguns dos títulos que encabeçam as matérias de jornais brasileiros para se referir à ação de Israel que deixou milhares de feridos (muitos perderam a visão ou tiveram membros amputados) e dezenas de mortos — inclusive crianças — no Líbano, no dia 17 de setembro de 2024.

Além desse ar de louvor, o acontecimento é tratado com um toque de curiosidade: “o que são pagers?”; “Como foi a explosão dos pagers?”; “como Israel teria criado empresa de fachada para colocar explosivos nos pagers do Hezbollah?” — não somente militantes desse partido foram mortos e feridos de maneira indiscriminada. As chamadas comportam-se, ainda, como se as explosões fossem meros incidentes: “após pagers, ‘walkie-talkies’ do Hezbollah explodem em Beirute e no sul do Líbano; 20 morrem”.

Daí em diante, os títulos e abordagens só pioram. Verdadeiro vandalismo jornalístico. A ação israelense é, no limite, apresentada como um ataque. As ações do Instituto de Inteligência e Operações Especiais, o Mossad, e de outras divisões são retratadas como aventuras hollywoodianas. Procuramos, em vão, nesses textos e mesmos nas reflexões de colunistas e comentaristas — muitos dos quais se apresentam como campeões da luta pela democracia e contra o terrorismo — uma denúncia ou reprimenda contra tal ato de terrorismo. O termo inexiste na linguagem da grande imprensa brasileira quando se trata de caracterizar as ações de Israel, dos EUA e seus aliados. Na verdade, foi o grupo alvo do ataque o representado como extremista.

Perante milhares de indivíduos mutilados, crianças e mulheres perdendo mãos, braços e mesmo a visão, ambulâncias em alta velocidade, cenas de funerais, pânico social, mortes e ferimentos, jornalistas estão preocupados em falar sobre o uso e funcionamento de pagers e walk talks há algumas décadas. Para que houvesse uma condenação ao terrorismo na imprensa brasileira só se o ataque foi desferido por algum grupo armado do “Mundo Árabe” e se tivesse como alvos Israel, EUA ou a Europa.

Só haveria perplexidade e alarde se o presidente da República se posicionasse, como o fez em fevereiro deste ano, quando comparou, de maneira acertada, as ações de Israel em Gaza à atuação do Terceiro Reich. Lembremos que, já naquela altura, a mídia apresentava o massacre em curso contra o povo palestino como “resposta de Israel” — “Lula compara resposta de Israel em Gaza à ação de Hitler contra judeus”.

Até na imprensa de esquerda temos certa dificuldade em encontrar de forma mais aberta e frequente a justa utilização da categoria terrorismo para se referir a ações como a perpetrada no Líbano esta semana, não obstante os veículos se posicionem de maneira mais crítica e combativa. Eduardo Vasco nos lembra que quando um jovem afegão atacou com uma faca algumas pessoas na Holanda, em 2018, logo a ação foi caracterizada como terrorismo. Um ano antes, também foi apontado como terrorista o atropelo de seis pessoas em Paris.

Trata-se de um fenômeno mais complexo. O filósofo Domenico Losurdo apontou que a linguagem do império buscou apresentar todos os seus inimigos — os quais deveriam ser fisicamente aniquilados — como terroristas. Fala-se em terrorismo “apenas se o ataque for organizado a partir de baixo, apenas se seus perpetradores não tiverem poder”. É desse modo que procura argumentar a linguagem dominante. Essa linguagem, acentua Domenico Losurdo, constituiu-se ao longo do tempo não apenas a partir dos discursos políticos e da abordagem da grande imprensa comercial, mas até por historiadores e outros estudiosos que apresentaram de forma romântica e cheia de omissões as ações dos EUA e dos seus aliados no Ásia, África e América Latina.

Ao longo do século XX as tentativas da CIA de eliminar os rivais dos Estados Unidos, como Stalin, Lumumba, Sukarno e, repetidas vezes, Fidel Castro, nunca foram denunciadas como ações terroristas, mesmo quando se entendia “terrorismo individual” como o ataque a determinada autoridade política. Do mesmo modo, ao falar-se em “terrorismo de massa” só entra em cena o morticínio de 11 de setembro. Ignora-se a história. Mesmo compreendemos “terrorismo de massa” pelo desencadeamento da violência contra a população civil para atingir determinados objetivos políticos e militares, a aniquilação nuclear de Hiroshima e Nagasaki não é apresentada como tal.

A categoria “terrorismo” tem sido utilizada — inclusive, com muita veemência nos nossos dias — para justificar a legitimar massacres de milhares de indivíduos no Oriente Médio. Ao recorrer a tal terminologia, tenta-se desumanizar não só os grupos armados em combate, mas toda a população vitimizada pelos bombardeios. Na verdade, as mortes de civis apresentam-se como algo aceitável, se se tratar de uma consequência de uma “caça aos terroristas”.

Não esqueçamos da fala de Jorge Pontual: “atacar terroristas do Hamas é um direito que Israel tem. Se eles estavam em uma ambulância, infelizmente era isso que Israel tinha que fazer: alvejar esses seus inimigos”.

Há ainda outro problema em cena. Não é lúcido apontar os jornais como órgãos homogêneos. Em certa medida, há polifonias mesmo dentro de um mesmo veículo. Vê-se contrapontos, debates, etc. Contudo, quando os assuntos são economia (sobretudo quando as medidas liberais estão em pauta) e geopolítica, o nível de heterogeneidade das discussões diminui de maneira assustadora. Nesse sentido, desde que o conflito em Gaza voltou a tomar conta dos noticiários, após a ação militar do Hamas em solo israelense, há, com efeito, uma série de críticas à “maneira como Israel age” na guerra. Fala-se, inclusive, “violações” e “crimes de guerra”.

No entanto, o alvo das críticas, na maioria das vezes, é a posição de “extrema direita” de Benjamin Netanyahu. É como se fosse esse indivíduo uma mutação no tempo-espaço na história de Israel e no modo como esse Estado vem agindo em relação aos palestinos e a outros grupos no Oriente Médio.

Voltemos, portanto, a Domenico Losurdo: “o uso terrorista da categoria terrorismo atinge seu pico na Palestina”. É justamente no conflito israelo-palestino que são caracterizadas como “ataques terroristas hostis” as ações de garotos que atiram pedras nos tanques, o que leva o filósofo italiano a provocar: “mas se o menino palestino que protesta contra a ocupação atirando pedras é o ‘terrorista’, devemos considerar o soldado israelense que o elimina como campeão da luta contra o terrorismo?”.

Ainda nos últimos dias, Danny Danon, o embaixador israelense da ONU, chamou de “Terrorismo Diplomático” a resolução da Assembleia Gral, elaborada pelos palestinos e assinada por 124 países, a qual exige que Israel ponha fim à “sua presença ilegal no Território Palestino Ocupado” em 12 meses.

Tudo o que não convergir com os interesses imperialistas de Israel parece ser terrorismo. Qualquer denúncia a massacres, violações, e outras atrocidades cometidas pelas tropas e governo israelenses é apresentada como apoio ao terrorismo, quando não antissemitas. Assim foi quando o chefe do Poder Executivo brasileiro denunciou as atuações de Israel em Gaza, assemelhando-as às do hitlerismo. Naquela ocasião, o genocídio contra o povo judeus — de fato, um grande trauma — foi apresentado como algo único, singular e incomparável a qualquer outro fenômeno, sem paralelo na História. Isso num país — num continente! — no qual houve a aniquilação de milhares e milhares de povos nativos e séculos de escravidão de africanos e afrodescendentes.

Ao chamar atenção para os “interesses manipuladores que podem muito bem ter um papel na formação de conceitos ou na utilização da memória”, Dominick LaCapra aponta para o Oriente Médio, no conflito israelo-palestino. O historiador reflete como Benjamin Netanyahu tem tentado traçar um paralelo direto entre a ameaça representada pelo Terceiro Reich aos judeus no período que antecedeu o Holocausto e a “ameaça contemporânea” representada pelo Irã a Israel. Além disso, em seu discurso numa conferência sionista de 2015, Benjamin Netanyahu culpou os palestinos por iniciarem o genocídio durante o Holocausto, afirmando que “Hitler não queria exterminar os judeus na época, ele queria expulsar os judeus”.

A grande imprensa brasileira, apenas para a surpresa dos incautos, não obstante critique “o líder da extrema-direita israelense” — como se o problema se resumisse a isso —, tem ratificado as suas perspectivas, legitimados as suas ações. Isso se evidencia nos títulos de reportagens que romantizam e banalizam milhares de mortes no Líbano, nos analistas de política internacional convidados para os programas, sempre com visões pró-Israel, e ao demonizar grupos e países que não se alinham aos Estados Unidos.

Hoje, com os bombardeios se intensificando e a carnificina se ampliando com quase 500 mortos num único dia, o teor das reportagens começam a mudar um pouco. Mas ainda sem nenhuma condenação a Israel — muito menos ao terrorismo.

*Osnan Souza é mestre em história social pela Unicamp.


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