A inflexão na guerra da Ucrânia

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Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL*

A contraofensiva ucraniana foi minuciosamente planejada pelos militares da OTAN, e acionada no dia da visita do secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, a Kiev

O conflito na Ucrânia já é, sem dúvida, o detonador (no plano dos fenômenos; enquanto no plano das estruturas pode ser considerado uma manifestação) de um amplo movimento sísmico na ordem geopolítica contemporânea, e seria agora até mesmo fastidioso reiterar a grandeza das ondas de choque que, a partir desse evento, começam a impactar as dimensões econômica, política e subjetiva no mundo todo, a começar, em especial, pela Europa, que nesse próximo inverno boreal vai se deparar com uma encruzilhada logística de grande amplitude, capaz até mesmo de tirá-la do relativo protagonismo que até então vinha ocupando mundialmente naquelas dimensões mencionadas. São alterações de grande envergadura e, sem nenhuma dúvida, estamos frente a um momento histórico, mesmo que ele ainda não possa ser precisamente dimensionado.

A guerra na Ucrânia nasceu, foi planejada, ideada e conduzida, por indução de um contexto que, em um texto de cinco meses atrás, chamei de hegemonia agonística dos Estados Unidos, a partir da ação política, no âmbito da cúpula do governo daquele país, de uma sólida facção palaciana neoconservadora que, a despeito de expectativas mais leigas, não está, de modo algum, vinculada ao trumpismo (eventualmente lhe é até mesmo antagonista – e hoje lhe é francamente antagonista), mas que penetrou pelo espectro bipartidário norte-americano, encontrando abrigo seguro no Partido Democrata, a partir dos governos de Bill Clinton.

Tal é o estado das coisas que essa facção, que algumas décadas atrás pôde ser relativamente isolada após os revezes diplomáticos da Guerra do Iraque (quando então buscava abrigo no Partido Republicano), já não mais pode sê-lo. Ela se metastizou, e hoje tornou-se a expressão dos interesses estratégicos do assim chamado “Estado profundo” daquele país.

O conflito que hoje ocorre na Ucrânia começou a ser planejado pela vanguarda desse grupo de interesse há pelo menos vinte anos. Seu precedente direto e laboratório de ensaio – inclusive diplomático e “jurídico”[1] (e que conformou o pano de fundo subjetivo que hoje engolfa a Europa) – foi o conflito nos Bálcãs, no começo da última década do século passado. A partir de então, as táticas militares, políticas e informacionais (a “guerra psicológica”) foram refinadas e avultadas, para cumprir o objetivo estratégico que, uma década depois, viria a conduzir a preparação do que hoje resultou ser a guerra na Ucrânia. Esse objetivo é simplesmente o desmantelamento da Rússia como nação[2] para, posteriormente, fazer o mesmo com a China. A Ucrânia é tão apenas a ponta de lança em um rosário de caos que encontrou no Iraque, no Afeganistão e na Líbia algumas de suas manifestações.

No entanto, nesse país eslavo, tal estratégia assume uma dimensão crucial. E cruciais são os seus desdobramentos e resultados. Para essa agenda, “perder a Ucrânia” é um golpe de cardinal magnitude, que dificilmente será revertido com uma outra frente de ataque, tipo Finlândia, já que os países da Ásia Central (antigo alvo preferencial das “revoluções coloridas”) começam a se conformar solidamente sob a teia (ou o guarda-chuva) institucional da aliança geopolítica sino-russa e já que a “frente interna” (pró-atlanticista), na Rússia, desmoronou com o governo Vladimir Putin, e recebeu agora seu golpe de misericórdia (pelo menos para as próximas décadas).

É esse aspecto dramático do caso ucraniano que explica a razão de o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken (personagem estelar da facção neoconservadora) estar em Kiev há uma semana, prometendo uma nova ajuda militar imediata de 675 milhões de dólares, além de outros 2 bilhões de compromisso a longo prazo, no momento em que se desenrolava uma nova “contraofensiva” das forças militares do país contra as forças aliadas da Rússia e das repúblicas do Donbass.

Nada é gratuito. O cenário que está por trás dessa pretendida “contraofensiva” representa uma inflexão de grau no conflito ucraniano, que parece ter chegado até mesmo a surpreender taticamente (mas não mais que taticamente) os russos. Em síntese: com o cenário do conflito já quase decidido, em termos operacionais, em favor da Rússia, os Estados Unidos decidiram dobrar as apostas e ir para o tudo ou nada, antes que o tudo desmorone, na esperança de manter uma guerra duradoura de desgaste à Rússia.

A grande mídia, evidentemente, controlada pela máquina empresarial do Ocidente, noticiou com alarde o recente avanço “arrasador” das tropas ucranianas no norte do país, na porção leste do oblast de Kharkov. Seu contexto e seus detalhes é o que revelam a dimensão daquela inflexão da guerra. Vejamos, no entanto, o que aconteceu nas recentes operações de “contraofensiva” ucraniana.

Desde o início do conflito, a Rússia e as repúblicas do Donbass operam com um contingente militar sabidamente menor que aquele que possui o exército ucraniano. Para a Rússia, a guerra tem um aspecto legal interno, que se adéqua ao direito internacional. Por isso a chamam de “operação militar especial”. Tal como no caso do conflito sírio, a Rússia foi chamada pelo poder constituído de um país – no caso, as repúblicas do Donbass, que a Rússia reconheceu – para prover apoio contra uma agressão militar que já vinha se sustentando. Quem está travando a guerra na Ucrânia é uma fração das forças militares profissionais permanentes da Rússia, que, ao longo do conflito, foram “rotacionadas”, para prover experiência de combate real a todo seu contingente.[3]

Com um efetivo menor, as operações passam a ter uma certa feição, exigem a preponderância da lógica do movimento, como também da diversão tática para “segurar” tropas inimigas em frentes diferentes daquelas dos “pontos quentes” ou das operações decisivas. E sem uma declaração formal de guerra, evita-se atacar a infraestrutura logística básica da Ucrânia, à diferença do que os Estados Unidos, por exemplo, sempre começam fazendo em suas guerras. A Rússia, visivelmente, apostou por não confrontar a população civil ucraniana, apesar da maciça campanha de propaganda realizada pela máquina de guerra psicológica ocidental. Esse tipo de operação com contingente limitado exige também maciça superioridade aérea e de artilharia de longa distância, o que a Rússia dispõe sobejamente.

Por tudo isso, fica razoavelmente claro que a Rússia sempre pretendeu que a Ucrânia entrasse em um acordo, e esta última dava sinais de estar se dirigindo a isso, até o momento em que o então primeiro ministro do Reino Unido, Boris Johnson, resolveu ir a Kiev pessoalmente no início de abril – uma visita reiterada outras vezes – e conquistar do presidente ucraniano a garantia da continuidade da guerra a qualquer custo; custo que seria amplamente subsidiado pelos países da OTAN. Esse subsídio catapultou os ganhos pessoais dos gestores do poder na Ucrânia, com o desvio e venda no mercado negro do armamento fornecido pelo Ocidente; algo que hoje começa a preocupar até mesmo os políticos norte-americanos.

Por outro lado, a continuidade da guerra a qualquer custo alimenta também a obsessão ideológica fundamentalista dos setores neonazistas que controlam o governo ucraniano.

No entanto, a partir de então, com os desdobramentos no terreno, qualquer eventual acordo para a Ucrânia passaria a custar progressivamente mais caro. Era a mensagem russa. E isso acabou implicando na implantação maciça de infraestrutura civil russa no sul da Ucrânia, com o significado implícito: “agora estamos aqui para ficar”. A maior e mais intragável derrota para os neonazistas é que a população civil escape do seu círculo de fogo de verdades. Se isso ocorre, os “desertores” transformam-se automaticamente em inimigos. Trata-se, efetivamente, de uma lógica de gangue.

A superioridade do equipamento militar da Rússia em uma guerra de posição desgastante garantia que o tempo operasse a seu favor. Tanto o armamento, mesmo enviado pelo Ocidente, quanto o contingente militar treinado da Ucrânia começou a escassear, e a vitória russa era quase que uma questão de inércia. Só o que não se sabia era o tamanho e o desenho dela.

Mas eis que, antes de começar o outono boreal, os planejadores ocidentais resolvem dar novo alento à guerra a qualquer custo. Fazê-la é tão simplesmente parte do negócio da hegemonia agonística norte-americana. Seu objetivo estratégico, como supõe a doutrina Rumsfeld-Cebrowski, é antes de mais nada sustentá-la, não necessariamente ganhá-la. E, nesse caso, o que interessa vai bem mais além das fronteiras (atuais ou antigas) da Ucrânia. A rigor, a Ucrânia pouco importa. O que interessa é tão apenas quebrar a Rússia, mesmo que os resultados factuais demonstrem exatamente o contrário ou que o seu custo seja… a Europa. Nesse caso, haveria que se perguntar se isso é um custo ou se, para os Estados Unidos, é um ganho colateral.

No começo deste mês de setembro assistiu-se ao que o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, vinha trombeteando como a “grande contraofensiva”. E, se não importam os custos, aqui os custos parecem consideráveis. A primeira frente de ataque foi lançada nas estepes do sul do país. Apenas recrutas ucranianos, em um ataque frontal em campo aberto, sem nenhuma supremacia aérea. Algo em torno de uma divisão de exército foi dizimada. Nem um palmo de terreno foi reconquistado, mas isso visava fixar tropas russas no limite sudoeste da porção por elas controlada e manter a atenção das reservas táticas da Rússia voltadas para aquele extremo. Parece ter sido, mais que tudo, uma diversão tática, mas que custou milhares de mortos e mutilados e uma enormidade de perda em equipamento.

A segunda frente foi minuciosamente planejada pelos militares da OTAN, e acionada tão logo as ações na primeira frente se esgotaram, ou seja, no dia 8 de setembro, dia da visita de Blinken a Kiev. Dessa vez, ela apontava para o outro extremo do território em disputa, o leste da província (oblast) de Kharkov, no norte do país. Nessa faixa, os levantamentos de inteligência da OTAN indicavam que as linhas russas de defesa eram mais leves e rarefeitas, sem muita blindagem e sem muito armamento antiblindagem, e discretamente concentraram para atacá-las uma grande quantidade de efetivo militar, blindados e artilharia de ponta da OTAN.

Esse equipamento militar mais sofisticado requer vários meses de treinamento para sua plena operação. Durante os últimos meses, soldados da Ucrânia eram enviados para países europeus para treinamento e, quando retornavam, seus efetivos se viam inusitadamente aumentados em mais um terço no número de combatentes. Formalmente seriam “mercenários”, mas, dada a complexidade do material bélico a que foram postos para manusear, tudo indica que são tão apenas militares da OTAN com uniformes ucranianos. A guerra na Ucrânia parece começar a assumir uma feição semelhante à guerra do Vietnã, onde a Ucrânia corresponderia ao antigo Vietnã do Sul. Eis aí a sinalização do ponto de inflexão: agora a guerra começa a ser mais clara e explicitamente, inclusive no nível tático, uma guerra da OTAN contra a Rússia.

Em um artigo publicado no dia 12 de setembro no Consortium News, o analista militar Scott Ritter sintetiza: “o exército ucraniano que a Rússia enfrentou em Kherson e na região de Kharkov era diferente de qualquer outro oponente ucraniano que ela já tinha enfrentado. A Rússia não estava mais lutando contra um exército ucraniano equipado pela OTAN, mas sim contra um exército da OTAN tripulado por ucranianos”.

A resposta a essa segunda frente no norte foi um desafio para as forças russas. Algo muito semelhante ocorrera na mesma região em maio de 1942, naquela que foi provavelmente a maior derrota do exército soviético para os nazistas na Segunda Grande Guerra. De modo muito semelhante aos movimentos que ocorreram agora no início de setembro, as tropas soviéticas foram cercadas pelo norte e pelo sul por corpos de exército nazistas na altura de Izyum (mesmo local da atual operação), ao final da faixa mais larga do rio Oskol. Stálin se recusou a autorizar que o marechal Timoshenko recuasse, só o autorizando quando já era muito tarde. Os soviéticos perderam cerca de 210 mil homens e 1.000 tanques.

Já agora tratou-se de evacuar a região sem levantar maiores suspeitas. Existe a possibilidade de que tenha havido inexplicável retardo por parte dos serviços de inteligência russos em diagnosticar a situação, e a retirada russa, apesar de organizada, mostrou-se não como uma iniciativa plena no jogo, mas como uma reação induzida pela situação. Prova disso é que as forças russas deixaram de minar o terreno ao saírem, o que favoreceu o rápido avanço dos ucranianos dirigidos pela OTAN.

Estes então retomaram todos os territórios do oblast de Kharkov sob anterior controle russo, e já há relatos de que as milícias neonazistas começam a realizar retaliações e execuções daqueles civis que eles consideram “colaboradores” (até mesmo simples funcionários públicos ou professores que passaram a dar suas aulas pelo planejamento escolar russo). Cerca de 30 mil civis foram evacuados pelos russos, na tentativa de impedir o que ocorrera em Bucha, nas proximidades de Kiev, no início de abril, onde as forças ucranianas, como agora se sabe, executaram os civis que consideravam “colaboradores” e puseram a culpa nos russos, em um show midiático armado e capitalizado pela propaganda de guerra da OTAN.

Falta, no entanto, mais uma frente na lógica da “contraofensiva” ucraniana deste início de setembro. Ela parece estar sendo desdobrada neste exato momento. A sincronia dos outros dois movimentos sugere que eles foram planejados para “puxar” as reservas táticas russas para os extremos do território controlado. A evacuação russa da porção a oeste do rio Oskol – rio que se tornará brevemente intransponível com o avanço do outono – foi realizada, com toda certeza, para realocar as tropas que ali estavam para um ponto mais sensível, qual seja, aquele da possível terceira frente.

Há algumas semanas os ucranianos vêm desminando os terrenos da frente sul (ou sudeste), entre Vasylivka (na margem leste do Dnieper, logo ao sul de Zaporozhye) e Ugledar (ao norte de Mariupol). A intenção parece clara nessa frente: tentar abrir um corredor até o litoral do Mar Negro, para cortar as linhas de suprimento por terra para a Criméia e atacar a ponte que liga a Criméia à Rússia, assestando assim um golpe na logística russa. Essa parece ser a frente principal. Por uma razão: os planejadores militares da OTAN já perceberam, assim como outros analistas independentes, que a próxima fase dessa guerra vai ser definida, fundamentalmente, pelas capacidades e habilidades logísticas.

Para efetivar de forma ótima o ataque dessa segunda frente sul (ou sudeste), as bem equipadas tropas “ucranianas” que realizaram a operação da frente norte, em Kharkov, precisavam ser rapidamente deslocadas para o sul. São pouco mais que 200 quilômetros, e isso seria logisticamente exequível, mesmo com o controle aéreo russo. Eis então que, pela primeira vez, na noite do dia 11 de setembro, a Rússia realiza um ataque contra a infraestrutura básica da Ucrânia: a rede de fornecimento de energia elétrica no leste do país. E eis então que todas as ferrovias da região, que funcionam com locomotivas elétricas, param. Se alguma tropa ou equipamento pretendia ser transportado, ficou imediatamente travado. Uma vez travado, tornou-se alvo fácil. Nessa situação, com o pleno controle do espaço aéreo pelos russos, pelo menos 800 combatentes ucranianos teriam sido mortos em uma noite.

Após sua separação da União Soviética, a Ucrânia jamais construiu uma única usina ou centro de distribuição de energia. Creio que não é preciso mais que esse índice para apontar para o significado das suas capacidades logísticas. Muito provavelmente, as ferrovias ucranianas congelarão nesse inverno.

Já as tropas russas que saíram do norte, precisam percorrer uma distância consideravelmente maior e em mais tempo para chegarem ao sul. Mas, a essas alturas, as reservas táticas da Rússia, especialmente o 3º Corpo de Exército, implantado em Rostov do Don, já foram mobilizadas para dar o primeiro combate àquela que é provavelmente a última das frentes da “contraofensiva” ucraniana, e em condições muito diferentes daquelas da frente frágil de Kharkov, melhor inclusive que a situação logo a leste de Izyum, em Krasnyi Lyman, que os aliados tomaram no final de maio e onde agora bloquearam com sucesso o avanço da frente norte da “contraofensiva” ucraniana.

A “reconquista” do leste de Kharkov pelos ucranianos e suas consequências prováveis para a população civil local produziram um baque considerável na opinião pública russa, a ponto de muitos atores políticos começarem a aventar a ideia de uma mobilização de reservistas, coisa que o realismo do Kremlin tratou logo de negar de forma contundente. Essa “reconquista”, no entanto, pode acabar se mostrando como uma vitória de Pirro.

Assim como no caso da frente das estepes do sudoeste (a primeira frente), tudo o que a superioridade aérea e de artilharia russa mais precisa é que as forças ucranianas “saiam da toca”. A conquista tática relâmpago que as forças ucranianas efetuaram em Kharkov foi feita à custa de uma considerável quantidade de recursos. Se os equipamentos são, teoricamente, repostos pela OTAN, os efetivos militares treinados já não o podem ser com tanta facilidade. Estima-se que as perdas ucranianas na frente norte possam ter sido similares à das estepes do sul (ou sudoeste).

Os próximos dias darão o tom do ritmo operacional antes de começar o outono e a progressiva complicação logística no terreno a partir de então. Esta, portanto, pode ser a batalha decisiva dessa guerra. Daí a grandeza da aposta militar, não apenas da Ucrânia, mas de todo o Ocidente político, que vê suas mais caras e cúpidas ambições liberais começarem a congelar por falta de gás.

*Ricardo Cavalcanti-Schiel é professor de antropologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

 

Notas


[1] Há uma sintonia de escala (que é a lógica dos valores liberais) entre a pretensão de governança jurídica mundial engendrada pela hegemonia geopolítica norte-americana em estado agonístico (ou o que a diplomacia daquele país quis chamar de “ordem internacional baseada em regras”) e a governança jurídica mundial pretendida pelo neoliberalismo. A propósito desta última, vejam-se os trabalhos de Yves Dezalay e Bryant Garth, em especial a coletânea Global Prescriptions. The Production, Exportation, and Importation of a New Legal Ortodoxy (Ann Arbor: University of Michigan Press, 2002). A discursividade identitarista e a assim chama “revolução woke” são parte constitutiva da subjetividade desse mesmo movimento.

[2] A ideia da nação (e não do Estado ― como gosta de crer certa perspectiva analítica “anarquista” da antropologia) como expressão do Uno (gr. holos) parece ser uma construção cultural que assumiu especial relevância para o protagonismo histórico da Europa (e do Ocidente, por extensão) nos últimos cinco séculos. Como pretendo desenvolver (para certos aspectos) em um ensaio em preparação, a conformação dessa específica construção cultural está intimamente ligada à emergência histórica do Novo Mundo. Aqui, para o horizonte não apenas da agenda política neoconservadora norte-americana como também dos projetos globalistas do Fórum Econômico Mundial (de Davos) ― como, por exemplo, o Great Reset ―, o que interessa é a desarticulação desse sentido de convergência do nacional (e, por extensão, da regulação pública) e, em especial, do nacional incorporado em seus competidores geopolíticos diretos. Essa talvez seja a última fronteira para o pensamento liberal “finalista” (ou seja, aquele que prenuncia o “fim da história”). Apesar das aparências, a perspectiva logo antes expressa não está necessariamente em sintonia com as interpretações do pensador russo Alexander Dugin, para quem a tradição (como conteúdo íntimo da nação) é imutável como expressão da contingência do ser, configurando-se como seu transcendente. À diferença da Rússia de Dugin, na América Latina, a tradição (ibérica ― para além do legado diagnosticado por Richard Morse) pode também nos ser exacerbadamente perversa. Para infelicidade de Dugin, a tradição não é otimamente seletiva. Só nos resta o horizonte ontológico (marxista? ameríndio?) da transformação, qual seja, a recusa do fim da história. Sem isso, independentemente dos liberais (ou exatamente a propósito deles), o fim da história já está marcado. E não será nem liberal nem “duginista”. Ele se chama colapso climático.

[3] Além das forças militares profissionais russas, constituiu-se em junho o 3º Corpo de Exército, constituído de voluntários russos, exclusivamente para os combates na Ucrânia, e que pode agrupar entre 15 mil e 60 mil combatentes. É chamado de 3º Corpo porque assumiu-se o 1º Corpo como o dos combatentes voluntários da República de Donietsk e o 2º como o dos combatentes voluntários da República de Lugansk.

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