A leitura de Marx no regime soviético

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Por JOSÉ RICARDO FIGUEIREDO*

A leitura de Marx desclassificada como a “mais instrumental”, a leitura comunista rotulada Diamat, foi a única que levou adiante revoluções que modificaram as relações de produção em direção ao socialismo

Juarez Guimarães apresentou a coletânea “O renascimento de Marx: principais conceitos e novas interpretações”, organizada por Marcello Musto, no artigo “O renascimento de Marx”, postado no site A Terra é Redonda. O articulista e prefaciador da coletânea insere-a num conjunto de obras demonstrando a “inteligência viva do marxismo após o fim da URSS”, agora elaborada “sem um paradigma central de referência”.

Juarez Guimarães observa a importância da publicação das obras completas de Marx e Engels pelo projeto em andamento MEGA2 para este renascimento de Marx, e destaca a participação das editoras brasileiras Boitempo e Expressão Popular neste processo. Segue-se a apresentação da coletânea, interessantíssima em sua diversidade de temas, desde questões clássicas do marxismo até as posições de Marx acerca de problemas hoje candentes, como o ecológico.

A expressão “renascimento de Marx” é compreensível, mas subentende sua morte. Muitos pretenderam que Marx morrera com o fim da URSS, sem dúvida uma derrota estratégica do socialismo, e com as reformas econômicas na China, que parecia adotar o rumo capitalista.

Mas os marxistas, por conhecerem história, sabiam que existem derrotas, retrocessos, bem como pode haver passos atrás para permitir outros a frente. Sabiam também, por conhecerem dialética, que aquele momento não era o propalado fim da história pela glorificação da democracia liberal, porque as contradições deste sistema permaneciam. Os fatos, ainda que surpreendentes e amargos, não negavam o marxismo. Por isso o marxismo se manteve vivo, nas obras citadas por Juarez Guimarães e outras, bem como na atuação política de uma corrente que resistiu e resiste à maré neoliberal.

Entretanto, o texto de Guimarães revela uma predisposição bem definida: “A primeira e maior contribuição deste livro é aprofundar e documentar uma leitura e interpretação da obra de Marx em autonomia e incontornável oposição ao chamado Diamat.”

O termo Diamat certamente abrevia a expressão dialética materialista, ou materialismo dialético, que se refere à concepção filosófica de Marx, fundada na apreensão da dialética de Hegel e sua reinterpretação sob a ótica materialista. Já o método específico das ciências sociais e da história, baseado em conceitos como modos de produção, classes e lutas de classes, é designado materialismo histórico. Estas expressões encontram-se na literatura soviética e também entre marxistas do Ocidente.

Se o renascimento de Marx exige “incontornável oposição” ao “Diamat”, está declarada qual morte está implícita em seu renascimento: a do Marx do tal Diamat.

Esta “incontornável oposição” ao “Diamat” é sintetizada em um parágrafo, que assim se inicia: “Nesta que foi a leitura mais instrumental da obra de Marx, que só se pode realizar em regime de dogmatização, de partido único e severa limitação ao livre debate, o Diamat fez sete operações de ruptura com a obra de Marx”.

Existem leituras de Marx de inspiração social-democrata, comunista, trotskista e outras, cada uma delas embasando as práticas políticas destas correntes. Neste sentido, todas estas leituras seriam “instrumentais”. Mas a expressão “mais instrumental” sugere aquela que recorreria a muitas distorções do marxismo, relacionadas ao “regime de dogmatização, de partido único e severa limitação ao livre debate”.

Entretanto, a leitura de Marx desclassificada como a “mais instrumental”, a leitura comunista rotulada Diamat, foi a única que levou adiante revoluções que modificaram as relações de produção em direção ao socialismo, não só na URSS como na Iuguslávia, na China, em Cuba, no Vietnã. Ao mesmo tempo, esta leitura comunista soube apoiar processos reformistas avançados, de teor democrático, anti-fascista, de independência nacional. Portanto, a leitura “mais instrumental” de Marx foi, de fato, e continua sendo, instrumental para todas as experiências socialistas revolucionárias e avançadas.

Juarez Guimarães passa a listar as “sete rupturas” do “Diamat” com a obra de Marx. A primeira seria “o centramento e a descontextualização da noção de ‘ditadura do proletariado’, entendido como um regime autocrático de partido único e de planificação estatal burocraticamente centralizada”.

Ora, sempre esteve clara a concepção de ditadura de classe, isto é, a dominação política e ideológica da classe economicamente dominante em cada modo de produção, independente do regime político ser mais ditatorial ou mais democrático. Num país vivendo uma revolução socialista, a noção de ditadura do proletariado é evidentemente contextualizada e central.

Entretanto, mais do que de qualquer leitura de Marx, a natureza sócio-política do regime soviético decorreu das condições em que se deu a revolução nascida em outubro de 1917. O esgotamento do povo russo com a Primeira Grande Guerra havia sido a principal causa da revolução, mas os revolucionários tiveram que enfrentar invasões militares de vários países até 1924. A estatização das indústrias foi conseqüência natural do seu abandono pelos proprietários ingleses e franceses. A estatização plena da economia se deu com a coletivização forçada das terras, para enfrentar a especulação mercantil, quando a industrialização se fazia urgente, porque o risco nazista se agigantava com a ascensão política e, depois, eleitoral de Hitler.

Mas a soviética não foi a única forma de socialismo. Os comunistas iuguslavos experimentaram um socialismo auto-gestionário, de mercado. Os comunistas chineses sempre mantiveram um setor capitalista, amplamente desenvolvido e estimulado após as reformas de 1978. O regime soviético era interpretado como uma forma da ditadura do proletariado, assim como o regime iuguslavo era outra forma, e o chinês ainda é outra forma.

A segunda ruptura do “Diamat” com a obra de Marx seria “a autocompreensão do marxismo como uma espécie de uma magna e autoproclamada ciência geral, aplicada às sociedades e ciências da natureza, verdadeira incorporação do dogmatismo como método”.

Ora, não se trata de “ciência geral”, nem de dogmatismo. As dialéticas hegeliana e marxista são concepções filosóficas. As melhores filosofias buscam abrangência e coerência interna. Não é coerente, por exemplo, um pensamento filosófico dualista, materialista em assuntos de ciências físicas e biológicas, mas idealista em ciências humanas, ou que seja dialético em ciências humanas e mecanicista em física.

A concepção monista é conscientemente adotada pelos fundadores do marxismo. Engels enfatiza a generalidade da concepção dialética em Dialética da Natureza, empregando exemplos de várias áreas da ciência de seu tempo. Marx ofereceu-se para redigir o prefácio de um livro de Charles Darwin, pelo tanto que a teoria da evolução significava para a afirmação do materialismo e da dialética. O que é taxado dogmatismo é, portanto, abrangência e coerência, absolutamente conformes com o pensamento filosófico de Marx.

A terceira traição do Diamat ao marxismo seria “uma concepção rigidamente determinista e evolucionista da história, como uma sucessão de modos de produção”.

Argumentando sobre a centralidade dos modos ou regimes de produção para a superestrutura política e ideológica, Marx e Engels declaram que sua concepção se baseia em algo “de que só se pode abstrair na imaginação”: a forma como os homens produzem suas condições de vida. Com este sentido, a história de qualquer sociedade é necessariamente a história de uma sucessão de modos de produção.

Talvez Juarez Guimarães se refira à polêmica quanto a uma suposta universalidade da tipologia e sequência de modos de produção do comunismo primitivo para o escravismo, depois o feudalismo, o capitalismo e o socialismo. Esta sequência, implícita no Manifesto Comunista, é reafirmada por Friedrich Engels em várias obras, e se popularizou porque Engels foi o grande divulgador do pensamento de Marx, com textos abrangentes e didáticos.

Mas, no Prefácio da Para a crítica à economia política, Marx oferece outra tipologia e sequência de regimes de produção das grandes civilizações: asiático, antigo, feudal e burguês moderno. Os termos antigo e burguês moderno se identificam ao escravismo e ao capitalismo respectivamente; a novidade é o regime asiático, tema que não é desenvolvido ali.

Há menções esparsas em O capital. São citadas as obras monumentais como as egípcias, a divisão de trabalho simples de aldeias indianas, e o paralelismo entre as formas de renda auferidas pelas monarquias asiáticas e pelo senhor feudal: renda em trabalho, em produto e, se houver suficiente desenvolvimento mercantil, em dinheiro.

O conceito de modo asiático de produção só começaria a ser conhecido com a publicação póstuma de um manuscrito, que seria denominado Formações econômicas pré-capitalistas, nos anos 1930 na URSS, e nos anos 1950 no Ocidente. Ali Marx cita três possíveis desenvolvimentos a partir do comunismo primitivo diretamente para civilizações asiáticas, escravistas ou feudais. Assim, rompe-se a idéia de evolução única de todas as sociedades.

Surge uma apresentação do regime asiático: são sociedades que preservam aldeias comunistas, autônomas na agricultura e no artesanato, mas tributárias a um estado. A terra é comum, e o estado tem com freqüência papel produtivo, particularmente em obras de irrigação. Porém, a estrutura sócio-econômica que vinha sendo caracterizada como asiática é estendida aos celtas na Europa e às civilizações pré-colombianas na América.

Essa publicação gerou polêmica. Houve tentativas de compatibilização entre as formulações de Marx e Engels, algumas interpretando o modo asiático como a última etapa do comunismo primitivo, outras, como forma asiática de feudalismo. Mas o debate, dentro e fora da URSS, consolidaria a idéia de um modo de produção específico. Como a expressão modo asiático não caracteriza uma relação de produção, e ainda se mostra geograficamente incorreta, foi proposta a alternativa “modo tributário”.

As mais conhecidas pirâmides no mundo estão no Egito, e não é sem surpresa que se vê estruturas muito assemelhas na América Central ou no Sudeste Asiático, sempre associadas a povos praticantes do modo de produção tributário. Esta coincidência cultural entre povos que não se comunicavam exemplifica a relevância do conceito de modo de produção, em que Marx aponta fundarem-se as características essenciais da superestrutura política e ideológica de uma sociedade.

O determinismo econômico é enfatizado em várias obras de Marx e Engels. É relativizado por ambos, quando falam em “determinação em seus aspectos gerais”, ou em “determinação em última instância”. Mas sempre reiteram a base materialista de seu método em ciências sociais: as relações de produção, o aspecto social dos modos de produção. Portanto, negar o determinismo econômico sobre a superestrutura, reconhecendo apenas uma influência recíproca de múltiplos fatores na sociedade, numa dialética amorfa e inconclusiva, é ignorar um pilar fundamental da ciência social de Marx.

A quarta heresia antimarxista do pensamento comunista, segundo Guimarães, seria “uma anatemização dos direitos humanos como burgueses através de uma linguagem classista”.

Ora, os direitos humanos, tal como consagrados nas revoluções estadunidense e francesa são, evidentemente, ligados àquelas revoluções burguesas; expressam os avanços e os limites dos direitos humanos sob a égide daquela classe. A luta social estendeu expressivamente estes direitos, desde o século XIX e particularmente após a derrota nazi-fascista na Segunda Grande Guerra, mas o movimento neoliberal desde os anos 1980 impôs retrocessos graves aos direitos dos trabalhadores. Como se vê, é impossível falar de direitos humanos concretamente sem empregar “uma linguagem classista”, isto é, sem considerar as relações de classe.

A quinta traição comunista soviética contra o marxismo seria “a territorialização e uma ruptura com o internacionalismo através da previsão de uma construção possível do socialismo num só país”.

Ora, o socialismo só estará consolidado se e quando for mundialmente dominante, mas as transformações sociais não são simultâneas no mundo. Houve a revolução russa, e não houve outras de imediato. O que se poderia esperar dos dirigentes revolucionários, além de tentar fazer internamente o que fosse possível na direção do socialismo?

O sexto pecado filosófico soviético seria “a adoção de uma cultura centrada no produtivismo em ruptura com a crítica ecológica da predação orgânica aos modos de reprodução do capitalismo”.

Tanto a satisfação das demandas populares como a segurança militar sempre exigiram a máxima produtividade na URSS, tanto que sua crise política derivou em grande parte da queda da taxa de crescimento. As reformas liberalizantes de Gorbachev tiveram início em 1985, quando a taxa de crescimento anual caíra para 3,5%, muito baixo para os padrões soviético. A autorreforma foi desastrosa e criou o caldo de cultura da queda do regime em 1991.

Mas a questão é muito geral. Por conta de ganhos de produtividade, o artesanato feudal foi suplantado pelo capitalismo da manufatura na Holanda, este pelo capitalismo da grande indústria concorrencial na Inglaterra, e este pelo capitalismo monopolista na Alemanha, nos EUA e no Japão. Da mesma maneira, a ascensão da China hoje se funda num rápido aumento de produtividade pela absorção e desenvolvimento próprio de tecnologias modernas.

O anti-produtivismo desta crítica ao “Diamat” seria justificado pela questão ecológica. Um informado contraponto a esta crítica pode ser lido no artigo “Como os soviéticos venceram a desertificação”, de Ricardo Cavalcanti-Schiel, publicado no site A Terra é Redonda. Narra um importante projeto agro-ecológico do tempo de Stalin, bem como mostra que a ação ecológica não precisa fundar-se sobre um anti-produtivismo, pois o reflorestamento ali descrito garantia produtividade agrícola.

Aliás, a perspectiva ecológica se torna utópica se fundada em um anti-produtivismo. A preservação de nossas florestas, por exemplo, depende de que o governo disponha de recursos para fiscalização e investimentos ambientais, assim como depende de que o povo tenha alternativas à de empregar-se nas velhas práticas de desmatamento, mineração predatória etc. E tudo isso depende de crescimento econômico. A perspectiva ecológica precisa apontar caminhos para as formas de crescimento.

A sétima traição soviética, “enfim”, seria “a ruptura com os fundamentos humanistas onipresentes na obra de Marx, que o identificam como o atualizador radical desta tradição na história, como o interpretou Antonio Gramsci.”

Esta acusação de “ruptura com os fundamentos humanistas de Marx” é muito grave e muito vaga. Nela cabe tudo de ruim, mas ela nada esclarece. Por isto, mais do que as acusações específicas anteriores, esta soa como a tradicional visão anticomunista, de um mundo soviético obscuro e opressivo, projetada sobre a teoria marxista ali considerada.

Na URSS havia saúde e educação públicas e gratuitas de qualidade. Não havia desemprego. Entre vários direitos, as fábricas possuíam creches para as mães trabalhadoras. Eram muito valorizadas as artes, os esportes, as ciências, a cultura em geral. Qual argumento para acusar os teóricos marxistas fiadores desta sociedade de “ruptura com os fundamentos humanistas de Marx”?

Não se trata aqui de negar que tenha havido dogmatização, simplismos, deturpações em nome do marxismo na URSS. Fala-se, por exemplo, de um atraso na genética soviética por razões ideológicas. Lamenta-se a difusão da psicologia mecanicista de Pavlov e a desconsideração para com a psicologia transformadora de Vygotsky. Os exemplos devem ser muitos, particularmente os diretamente políticos.

Mas vê-se o “renascimento” de Marx, se orientado por esta “incontornável oposição à Diamat”, não subentende apenas a morte de qualquer coisa relacionada à URSS, mas também as de conceitos centrais do marxismo. Este Marx renasceria amputado em sua virilidade científica e política.

Não é novidade esta predisposição contra formulações soviéticas do marxismo, nem que esta chegue a negar o próprio. Destaco uma polêmica, intensa nos anos 1960 e 1970, acerca dos modos de produção no Brasil, e nas Américas em geral, inspirada no questionamento da tipologia e sequência tradicional de Friedrich Engels e no aparecimento do conceito de modo asiático.

Os marxistas brasileiros enxergavam em nossa história o comunismo primitivo, entre índios e quilombolas, o escravismo, formalmente extinto em 1888, o feudalismo, ainda vigente naquelas décadas no latifúndio coronelista, e o capitalismo, em desenvolvimento principalmente nas grandes cidades. Em decorrência, defendiam a reforma agrária pelo parcelamento da terra aos que nela trabalhavam como uma transformação revolucionária daquela sociedade.

Porém, a caracterização feudal ou semifeudal do latifúndio de então foi atribuída à influência deletéria do que se denominou stalinismo, e Juarez Guimarães denomina Diamat. Procedeu-se à abolição do feudalismo na historiografia. Uma linha entenderia que toda nossa colonização foi feita sob o capitalismo, pela destinação mercantil da produção de nosso latifúndio. Outra linha interpretaria o escravismo mercantil das colônias modernas como um modo de produção distinto do escravismo da antiguidade, e que transitara para o capitalismo sem passagem pelo feudalismo.

Os interessados encontrarão este debate, “renascido”, em A Terra é Redonda, em seis artigos que retratam suas principais correntes. São eles: “A colonização das Américas em debate”, de Mário Maestri, “A formação histórica brasileira em debate”, meu, “Em busca de um Brasil feudal perdido”, de Maestri, “Em busca do conceito de modo de produção”, meu, “Sobre a dinâmica da colonização européia”, de Ronald León Núñez, e “Sobre a escravidão mercantil moderna”, meu.

*José Ricardo Figueiredo é professor aposentado da Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp. Autor de Modos de ver a produção do Brasil (Autores Associados\EDUC). [https://amzn.to/40FsVgH]


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