A poesia de Ana Marques Martins explora o fim do verso não por subtração, mas por prosaísmo, transformando a crise da lírica em lírica da crise
Por Vladimir Safatle*
Talvez existam dois tipos de poetas que fazem a língua naufragar. E deveríamos sim procurá-los porque é possível que esta seja uma das funções centrais da poesia atualmente, uma das últimas que lhe restou, a saber, fazer a língua naufragar. Isto é algo que a poesia herdou da música, esta consciência tácita de que a linguagem não teria como ficar imune ao esvaziamento e ao endurecimento em um sistema de convenções, de que tal esvaziamento era um projeto político: o projeto de retirar da linguagem suas margens, seu ritmo de implosões, em suma, a incomunicabilidade que habita em seu fundamento. E, como a música, tratava-se de fazer a incomunicabilidade atravessar o solo da linguagem a fim de se constituir como expressão.
Mas há de se lembrar também das coordenadas históricas que cerca uma operação dessa natureza atualmente. Em um país construído através de acordos extorquidos, consensos que não passavam de silenciamentos forçados e violências não reconhecidas, havíamos mesmo de esperar que, em algum momento, sua poesia começasse a se voltar para o desejo de fazer o silêncio imposto pela linguagem naufragar. O tópos da linguagem esgotada não é simplesmente a expressão de alguma forma de crise da lírica mas, se me permitem uma inversão, de uma lírica da crise que nos aparece como forma de, ao mesmo tempo, evidenciar os limites impostos por nós por uma ordem falsa e tomar dessa ordem o domínio sobre as palavras.
Mas como se disse antes, talvez existam dois tipos de poetas que fazem a língua naufragar. Um faz da língua matéria a ser recomposta, recusa-se a falar como normalmente se fala, faz a língua se chocar contra sua própria gramática, contra suas normas. Tal poeta escreve como quem disseca palavras, como quem expõe seus hematomas. Ele decompõe o ritmo da fala e recompõe em ritmos estranhos à fala habitual. Seus poemas são, muitas vezes, a exploração milimétrica da escritura.
Talvez um dos últimos grandes poetas desse tipo tenha sido Paul Celan. Diante dos traumas históricos do holocausto e do desaparecimento, a vida que pulsa depois pulsa sempre exigindo silêncio às formas da linguagem prosaica. Por isto, ela faz a poesia tocar os pontos de decomposição da língua, tocar o fim do verso para liberar a palavra e sua composição originária.
No entanto, há poetas que parecem dispostos a fazer operação quase inversa. São as que querem pegar a língua em seu ponto de trivialidade, como quem diz: “é bom portanto usar palavras emprestadas nem que seja para lembrar que só temos palavras de segunda mão”. São as que assumem um ritmo que mais se assemelha à prosa, que tocam o fim do verso não por subtração, mas por prosaísmo. Poetas que parecem estarem a falar, como quem conta algo que normalmente se conta, mas apenas para descrever uma forma inesperada de colisão, para falar do “modo como os seus sonhos parecem os pensamentos de pessoas que sobreviveram a um desastre de avião”. Deste grupo faz parte Ana Marques Martins.
A poesia de Ana Marques não está apenas disposta a expor a fragilidade da linguagem prosaica, e assim não sair dela a fim de fazer de tal fragilidade sua força. Ela parece querer dar voz às formas com que os limites da vida prosaica parecem desenhados para serem ironicamente pervertidos: “Não sei viajar não tenho disposição não tenho coragem mas posso esquecer uma laranja sobre o México desenhar um veleiro sobre a Índia pintar as ilhas de Cabo Verde uma a uma como se fossem unhas”.
Neste gesto em que o mapa já não representa o mundo, em que o sistema de representações entra em colapso e naufraga a partir do momento em que a representação engole ironicamente o representado, a falta de coragem e de disposição acaba por se transmutar em outra forma de viagem. “Uma alegria haver línguas que não entendo delas foram varridas as lembranças todas / nelas o sentido passa entre as palavras / como a luz entre as plantas”.
No abandono das limitações da língua como condição de veículo de comunicação, no naufrágio de sua comunicação, não saber outras línguas se torna uma alegria porque falar se transmuta em uma relação de mal-entendidos que é a única condição para desembocar em algo:
ando nas ruas pensando como é possível
tantas pessoas falando
nada em voz alta
quando me dirigem por equívoco
a palavra sorrio como se pedisse desculpas
depois fico tentada a correr atrás daquela pessoa
e devolver-lhe a palavra que ela deixou
cair por descuido
Essa poesia, em um momento de inflacionamento da primeira pessoa do singular, surpreende por falar tão pouco sobre o Eu. Ela se sente muito mais a vontade quando fala sobre “você”, sobre coisas, sobre a linguagem, sobre o próprio poema. Quando se trata de dizer sobre a queda de si, ela prefere falar sobre a natureza das mesas. Pois:
mais importante que ter uma memória é ter uma mesa
mais importante que já ter amado um dia é ter uma mesa sólida
uma mesa que é como uma cama diurna
com seu coração de árvore, de floresta
é importante em matéria de amor não meter os pés pelas mãos
mas mais importante é ter uma mesa
porque uma mesa é uma espécie de chão
que apoia os que ainda não caíram de vez
Ao invés da psicologia das frustrações e dos sentimentos de devastação amorosa, melhor conter-se (e toda essa poesia é habitada por uma contenção que dá sua singularidade) e voltar os olhos às coisas, a descrição das coisas, da marca que deixamos nas coisas quando transformamos uma mesa em cama diurna ou, ainda, em uma espécie de chão que nos apoia enquanto ainda não caímos de vez.
Essa mesa que é uma espécie de chão diz muito mais do que qualquer relato de si. E não poderia ser diferente com alguém que compreendeu que: “um poema não é mais do que uma pedra que grita”. Pois como já se disse antes, chegará um momento em que as pedras falarão, depois que nossa língua deixar de existir.
*Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da USP