A live do suicídio

Foto de Christiana Carvalho
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Por Ubiratan Pereira de Oliveira*

A live do presidente serviu para sabotar o combate à pandemia e à prevenção ao suicídio

O presidente Jair Bolsonaro utilizou-se da sua live do dia 11 de março para tentar fazer valer mais uma vez seus argumentos negacionistas e pouco embasados cientificamente em relação a pandemia, lockdown, vacinas, e etc. Em um esforço messiânico de justificar seu posicionamento contrário às medidas de isolamento e distanciamento social, leu uma carta de um suposto suicida, atribuindo a motivação do ato às medidas restritivas dos governos de Salvador e da Bahia, respectivamente.

Na transmissão, o presidente também faz menção à um suposto suicídio ocorrido em Fortaleza e argumenta que a depressão e o suicídio poderão matar mais que o próprio vírus da COVID-19. Ato contínuo, o filho do presidente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, reproduziu em uma rede social a carta lida durante a live, colocando também imagens do suposto suicida, inclusive já sem vida. Depois de muitas críticas e denúncias, o post foi apagado. Não ficou claro se pelo autor, ou por violar as regras da rede social, que exclui, muitas vezes tardiamente, conteúdos de exposição de casos de suicídio.

O Conselho Regional de Psicologia do Distrito Federal emitiu nota de repúdio às atitudes do presidente Bolsonaro condenando o mau uso político da carta, além de denominar o gesto com antiético e imprudente. Também afirma que a atitude vai na direção contrária às orientações relativas a não publicização de cartas e imagens de pessoas que cometem suicídio, cujo objetivo é de evitar o contágio e a imitação, já verificado em diversos estudos e contextos históricos.

Em novembro de 2020, época em que o presidente travava uma guerra ideológica contra a “vacina chinesa”, um efeito adverso grave ocorrido com um dos participantes da fase de testes da Coronavac, fez a ANVISA suspender os estudos. A morte de um voluntário, virou ironia sarcástica em mais um capítulo de aberração verborrágica em que o presidente Jair Bolsonaro atribuiu como uma vitória a si mesmo. Pouco depois, foi confirmado que a morte do voluntário teria sido por suicídio, não tendo nenhuma relação com a fase de testes da vacina.

O maniqueísmo político dos contextos citados, minimizam a complexidade que perpassa a temática do suicídio na sociedade contemporânea, além de suscitar questões legais e éticas relacionadas à divulgação de forma inconsequente e desrespeitosa dos casos de suicídio. Somado a isso, é preciso sim pensar o impacto da pandemia, do isolamento, do luto, das depressões e de todo e qualquer sofrimento ou transtorno psíquico impulsionado ou causado pelo estado permanente de medo, de impotência, de consternação e perplexidade que tem atravessado os sujeitos, seja pelo vírus, seja pela incapacidade na gestão do enfrentamento da pandemia.

Os indicadores de suicídio nem sempre são fáceis de quantificar. Por mais que a Organização Mundial de Saúde (OMS) e demais autoridades sanitárias estabeleçam monitoramento contínuo, as informações nem sempre são padronizadas e os desenhos territoriais devem ser lidos de acordo com as especificidades locais, observando as metodologias em relação à quantificação de mortes por suicídio e as tentativas de pôr fim a própria vida.

Ainda assim, tem sido referência mundial os indicadores publicizados pela OMS, que acabam norteando a realização de estudos locais e as diretrizes de prevenção ao suicídio e de promoção à saúde mental de forma geral. Na publicação divulgada em 2019, Suicide in the world: global helth estimates, a OMS aponta uma redução de 9,8% na taxa de suicídio no mundo, no período de 2010 a 2016. Esta tendência não é acompanhada nas Américas, onde se verifica um crescimento na ordem de 6% em dados gerais.

No ano de 2016, o Brasil, registrou 13.467 mortes por suicídio, um aumento aproximado de 14% em relação ao indicador da OMS para o ano de 2012, quando o país registrou 11.821 mortes. Em relação à violência autoprovocada, o Ministério da Saúde aponta que entre 2011 e 2018, foram registradas quase 340.000 notificações. Os indicadores além de sujeitos a subnotificação, consolidam números de anos anteriores a consolidação dos dados estatísticos, o que pode trazer alguma inconsistência se quisermos traçar um retrato de momento em relação a problemática do suicídio.

Apesar de alguns estudos e dados pontuais publicados, não é possível ainda termos indicadores mais amplos, fidedignos e universais que permitam uma análise quantitativa do aumento do número de suicídios na pandemia. No entanto, a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) tem apontado que a pandemia aumentou de forma significativa os fatores de risco para o suicídio. A alta incidência de transtornos mentais, as perdas constantes decorrentes da COVID-19, o impacto referente à necessidade de isolamento social, são aspectos que poderão refletir no aumento dos casos de suicídio.

Com um sistema mais rigoroso e eficiente de notificações de suicídios, o Japão anunciou que somente em outubro de 2020, o país registrou mais de 2.000 mortes por suicídios, o que teria nesse mês, superado o número de mortos por COVID-19. O caso do Japão deve ser analisado em maior profundidade, sendo inadequado fazermos comparações que não levem em consideração as diferenças culturais e demais especificidades. No entanto é significativo observar a importância deste indicador, ainda mais quando se observava anteriormente uma tendência de queda nos números sempre alarmantes de suicídio no país asiático. Outro fator importante e que precisa ser analisado, é que neste mês específico, o Japão não enfrentava nenhuma medida restritiva ou lockdown, em decorrência da pandemia.

Mas, voltemos ao discurso de conveniência de Bolsonaro. Ao tentar de forma grosseira relacionar o propalado aumento de suicídios em decorrência não do contexto mais amplo da pandemia, mas especificamente das medidas restritivas de isolamento social, o presidente esquece de outro indicador, que é importante aprofundarmos.

Os últimos estudos epidemiológicos publicados em 2017 e 2019 pelo Ministério da Saúde (MS), apontam as armas de fogo como o terceiro maior meio utilizado nos óbitos por suicídio no Brasil. Nos dois boletins epidemiológicos citados, o MS chega a enfatizar a recomendação da OMS em relação à restrição dos meios mais utilizados pelos suicidas, como agrotóxicos/pesticidas e armas de fogo, como métodos que diminuem a incidência de suicídio, sendo consideradas estratégias de prevenção universais. Outro fator que gera um necessário debate é a alta letalidade de uma tentativa de suicídio quando o meio utilizado é uma arma de fogo, além da impulsividade que pode acompanhar alguém que tenha um acesso facilitado à arma e que esteja em situação de vulnerabilidade psíquica.

O fato é que o Brasil caminha na direção oposta à diretriz apontada pela OMS e reconhecida pelo próprio Ministério da Saúde. Vários decretos publicados pelo governo Bolsonaro flexibilizam o acesso à uma arma de fogo e podem em um futuro próximo, aumentar de forma significativa o número de suicídios no Brasil. Estudos realizados em diversos países apontam esta correlação, basta dizer que nos EUA, além de ser o meio mais utilizado por quem comete suicídio, o país concentra a maior taxa de suicídio do mundo por arma de fogo.

O atual cenário de desmonte das políticas exitosas de saúde mental, que pressupõe diversos serviços e estratégias de atenção em níveis de complexidades diferenciados através da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), torna ainda mais desolador este quadro. Os ataques aos serviços substitutivos e demais dispositivos da reforma psiquiátrica, observados desde 2015, se intensificaram no atual governo, que além de diversos retrocessos, propôs um “revogaço” de um conjunto de 100 portarias que regulamentam a política nacional de saúde mental.

O documento O suicídio e a automutilação tratados sob a perspectiva da família e do sentido à vida, publicado em 2019 pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, reorienta a temática que deixa de ter a dimensão de um problema de saúde pública e passa a ser dimensionado em outros aspectos, como no plano espiritual, familiar e educativo. Em nenhum momento é citada a Rede de Atenção Psicossocial ou qualquer dispositivo, serviço ou estratégia nela inserida, responsáveis pelo acolhimento das vítimas de automutilação e/ou tentativas de suicídio.

Além de pensar em estratégias de prevenção ao suicídio, que vão além de um dizer universalizante, também é importante pensar na assistência e/ou em dispositivos que possam acolhem aqueles que possam apresentar ideação suicida ou algum tipo de transtorno que possa aumentar o fator de risco para o suicídio. É sempre um terreno sutil e de difícil caminhada, já que o fator de risco no caso do suicídio pode ser um indicativo, mas não responde de forma absoluta. Em diversos casos, não há transtorno, mas há uma motivação singular de cada sujeito, onde a ausência de espaços de escuta, pode potencializar um ato suicida.

Por fim, os fatos aqui relatados demonstram que a suposta preocupação do presidente Jair Bolsonaro ao alertar que as medidas restritivas seriam responsáveis pelo aumento de casos de suicídio, além de minimizar a questão, serve de cortina de fumaça na tentativa de esconder a ausência de políticas efetivas por parte do governo federal, não só em relação ao combate à pandemia, como também em relação à prevenção ao suicídio de uma forma geral. Nos últimos 7 dias (de 07 a 13 de março) morreram por COVID-19 quase 13.000 brasileiros, quase o mesmo número de mortes por suicídio no ano inteiro em 2016. Um dado não menos importante, mas que tende a aumentar, principalmente pela ausência de políticas de prevenção eficazes e de assistência à saúde mental daqueles que decidem pôr fim à própria vida.

*Ubiratan Pereira de Oliveira, psicólogo, foi vereador e foi secretário municipal em João Pessoa.

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