A longa batalha

Imagem: Anselmo Pessoa
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Por JULIAN RODRIGUES & LINCOLN SECCO*

O ultraliberalismo de Guedes e o neofascismo bolsonarista operam uma mudança radical no ritmo da destruição

Embora o genocídio de indígenas e africanos tenha nos legado estruturas opressivas de longa duração, dificilmente encontraremos tão curto período histórico em que um só governo seja responsável por tantas mortes. Segundo os dados oficiais a pandemia vitimou cerca de 150 mil pessoas até outubro de 2020.

Muitas ações do governo reproduzem práticas bem conhecidas da direita tradicional e dos neoliberais. Mas é necessário constatar que a fusão entre o ultraliberalismo de Guedes e o neofascismo bolsonarista operam uma mudança radical no ritmo da destruição. É como se voltássemos 100 anos o relógio da história.

Desmatamento, destruição da Amazônia e do Pantanal liberados; total desindustrialização (a participação da indústria no PIB regrediu às primeiras décadas do século 20); eliminação dos direitos trabalhistas, com o fim (de fato), da justiça do trabalho e dos sindicatos; desconstituição das políticas de saúde e educação, promoção do discurso de ódio contra os movimentos sociais, as mulheres, negros(as), indígenas, população LGBTI; guerra contra a ciência, a educação a cultura e artes; desmonte das universidades; propaganda ininterrupta de um conservadorismo moral, que incentiva o machismo, o racismo, a homofobia, a transfobia; disseminação do ódio, do obscurantismo; e negação da racionalidade, do diálogo, da alteridade e da diversidade.

O exercício contumaz da mentira, o autoritarismo e a manipulação “ religiosa” de falsos valores morais são a base da ação bolsonarista, cujo objetivo central reside no desmonte do próprio Estado, dos direitos humanos e das liberdades democráticas.

Mesmo nesse quadro, há dois problemas para os setores progressistas. O primeiro: apesar de toda essa lista de horrores, Bolsonaro recentemente expandiu seu apoio – foi da faixa de 30 para a faixa dos 40% de aprovação, ainda que as pesquisas possam ser afetadas pela metodologia (adaptada ao período de quarentena).O segundo é que a construção de uma alternativa democrático-popular, articulada a uma estratégia socialista, será impossível se continuarmos a operar nos mesmos marcos mentais do período anterior. Estamos em um novo ciclo histórico e político.

O primeiro problema

Bolsonaro lidera um governo neofascista e cabe extrairmos dessa definição as suas consequências. O fascismo, historicamente, nunca se caracterizou por um projeto político e ideológico preciso. Em situações de crise pode ou não transitar para um partido, governo ou regime. O bolsonarismo é uma modalidade de neofascismo. No Brasil, já estamos em uma fase avançada dessa escalada autoritária.

Passou o tempo das coalizões parlamentares amplas, das frentes políticas cheias de boas intenções, da defesa das atuais instituições degradadas (desde de 2016, estamos em um Estado de exceção).

Há uma tentação: enfrentar o bolsonarismo e recuperar apoio popular passaria por algum tipo de concessão ao conservadorismo, ao fundamentalismo neopentecostal. Ou seja: esconder todas as bandeiras feministas, antirracistas, a defesa dos direitos humanos, das liberdades democráticas, da diversidade. Recolocar no centro do debate os direitos materiais dos trabalhadores, as políticas sociais, o emprego, a renda, a comida, a saúde não é incompatível, pelo contrário com manter hasteadas as bandeiras. Não são “pautas identitárias”. São lutas por direitos: contra o genocídio da juventude preta e pobre, o feminicídio e a violência contra as pessoas LGBTI. Trata-se de liberdades democráticas, da defesa da vida e da igualdade. Decretar uma espécie de rendição e nos adaptarmos às “guerras culturais” da extrema-direita seria um erro histórico.

O próprio Bolsonaro encontrou uma faixa de ampliação do seu apoio popular no campo dos interesses materiais sem renunciar às suas batalhas ideológicas e ao seu programa neoliberal. Como perfeito fascista, induz todos os democratas a comemorarem qualquer aparente recuo tático em “respeito às instituições”. Enquanto isso, continuará avançando no seu projeto de destruição das liberdades e do Estado.

No entanto, paira uma incerteza. Não sabemos qual o grau de autonomia de Bolsonaro para ampliar o gasto público permanentemente. Seria possível constituir um novo cardápio de política econômica, que sem abandonar o arcabouço neoliberal, se distancie do fundamentalismo de mercado? Ou seja, ganhar apoio para um regime neofascista, mas com base em algum tipo de política social de massas?

As contradições entre o radicalismo fiscalista de Guedes e do “mercado” vis a vis o desejo de Bolsonaro em manter a expansão do gasto social tem atrasado e dificultado a implementação da “Renda Cidadã”, por exemplo. O braço de ferro entre os interesses das elites financistas e o instinto pragmático de sobrevivência do presidente não está decidido – e definirá a capacidade do governo de manter (ou não) o viés de alta de seus índices de aprovação e seu favoritismo eleitoral para 2022.

O segundo problema

Os governos petistas executaram um forte programa de políticas sociais e ampliação de direitos. Todavia, não desestabilizaram o neoliberalismo (nem incidiram sobre a estrutura do Estado). Ainda assim, a modesta ascensão social dos pobres e pretos gerou crescente indignação e ranger de dentes do andar de cima. E o incômodo cada vez maior dos EUA (que nunca admitiram o Brasil como líder regional, muito menos com influência mundial).

Quando sobreveio uma nova crise econômica, já em 2014/2105, a reação do governo petista foi totalmente distinta da de 2008 (“é uma marolinha”): em vez de abrir as torneiras dos gastos públicos resolveu nomear ministro da economia um sub executivo do Bradesco.

A luta de classes explodiu junto com o pacto do período anterior. Radicalizou-se a oposição burguesa – bem como as operações golpistas geradas no conluio da operação Lava Jato com os EUA. E o governo petista, vitorioso em 2014, adotou o programa dos adversários. E nem mesmo isso evitou o golpe. Pelo contrário, o governo progressista perdeu o apoio que havia garantido sua vitória – piorou muito a vida do povo, desempregou-se em massa, rompeu-se o acordo sacramentado nas urnas.

Há setores da esquerda que acreditam que a reconstrução do país passará pela reedição da tática de 2002 – carta aos brasileiros, moderação programática, acordos por cima, um certo keynesianismo moderado.

Outros setores giraram ainda mais à direita. Querem implantar um programa pretensamente progressista sem – e contra o PT -, junto à direita liberal. Creem que basta encomendar a alguns economistas um plano e teremos a pauta de retomada da industrialização, do desenvolvimento, dos direitos sociais, da cultura etc. Inscrever na lei antigos e novos direitos trabalhistas (adequados a novas formas de exploração); adotar políticas de estimulo à indústria e criar um ambiente macroeconômico favorável ao desenvolvimento causarão maior conflitividade social.

É um engano achar que toda (ou a maior parte) da sociedade está interessada no desenvolvimento do país. Amplas parcelas da própria população se contrapõem, por interesse ou ideologia, à mudança nas alíquotas do imposto de renda, à tributação de lucros, dividendos e grandes fortunas – e até compram a ideia de que a retomada da indústria depende do achatamento dos salários e direitos trabalhistas. Alterar a forma de financiamento da dívida pública e adotar uma política fiscal anticíclica não é um item numa folha de papel e exige um confronto violento com a mídia corporativa, o grande capital, as camadas médias rentistas etc.

Com a vitória fascista em 2016-2018, a política mudou de endereço e está nas ruas e nas redes. Os meios digitais, o discurso apelativo, irracional e a mobilização permanente modificaram o chão da política institucional. Não será com reuniões fechadas de veneráveis lideranças vetustas, chefes de poderes desacreditados e tradicionais caciques sem índios que a esquerda enfrentará o bolsonarismo.

A solução?

Lula se recolocou fortemente no jogo a partir do discurso de 7 de setembro: ênfase na soberania, anti-privatismo, antagonismo às políticas de Bolsonaro no meio à pandemia, forte preocupação com a questão cultural, meio ambiente – e tendo o antirracismo como eixo. Ele se apresentou para liderar um projeto nacional. Não se trata de debater personalidades. Lula encarna trinta anos de lutas sociais e a construção de um partido, uma central sindical e uma miríade de movimentos sociais. Outra liderança petista só terá chances se contar com o seu apoio. Lula representa a possibilidade de máxima polarização com o bolsonarismo.

Mas ele não indicou uma ruptura e apontou para um “novo contrato social”. Ao mesmo tempo, finalizou o discurso com demarcação classista e enterrou de vez as já natimortas frentes amplas. Como consequência, enfraqueceu alternativas moderadas para 2022 dentro e fora do PT. Mas o seu futuro eleitoral é uma incógnita e depende do STF que já deu sucessivas provas de covardia cívica (a antecipação da aposentadoria de Celso Mello é a mais recente delas). A Lava Jato reage e se debate. A esquerda parece ainda não absorver a centralidade da luta pelos direitos políticos de Lula.

Em aberto

Bolsonaro sustentará a crise e será chega favorito em 2022? Nada indica que a “direita liberal” vá gerar, de fato uma alternativa. Pelo contrário, houve uma acomodação. Tanto do “centrão” no Congresso (que melhorou a governabilidade), quanto dos neoliberais na mídia. A Folha de S. Paulo, por exemplo, faz editoriais cada vez mais à direita e até defende a volta às aulas; mas ao contrário do que se imagina, ela (assim como a Veja e assemelhados) não são um índice seguro de reação da maioria do andar de cima.

A Folha nunca teve ideologia definida e agiu sempre de acordo com os negócios de curto prazo. Ao contrário de O Globo e do Estadão, que apoiaram no atacado o golpe de 1964, a Folha o fez no varejo e garantiu apoio “logístico” às sessões de tortura. Enquanto O Globo fez uma autocrítica hipócrita, a Folha defendeu a “ditabranda”. A Globo mantem as cutucadas em Bolsonaro na pauta ambiental, mas diminuiu em muito o tom geral de “oposição” ao governo.

Entre as lideranças políticas dessa corrente neoliberal “democrática” quem se apresentaria em 2022? Doria trocará a reeleição pela incerta disputa presidencial? Huck se viabiliza? Ciro Gomes teria apoio de setores como o DEM? Ciro tenta ser algo como antipetismo de centro entre os tucanos e a esquerda. Antes dele, Heloisa Helena e Marina Silva cativaram esse eleitorado. Entretanto, não é suficiente para quebrar a polarização esquerda – direita.

O PCdoB e o PSB, mais próximos de Ciro do que do PT, sustentariam uma candidatura própria (Flavio Dino) ou embarcariam na canoa do liberalismo de centro? Resta a alternativa à esquerda (o PSOL), mas que talvez ainda precise de algumas eleições para viabilizar uma candidatura.

Quaisquer que sejam as respostas para os movimentos de curto prazo da política, uma aposta nos parece certa: devemos sustentar uma batalha político-cultural-ideológica de médio e longo prazos contra o neofascismo.

*Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de Gramsci e a revolução (Alameda).

*Julian Rodrigues é militante PT-SP; professor, jornalista, ativista de Direitos Humanos e LGBTI.

 

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