Por MARCOS DANTAS*
É necessário retirar das plataformas o poder de decidir o que se pode postar ou não, conforme seus difusos e opacos “termos de uso”
1.
Nos últimos anos, boa parte da sociedade e suas lideranças políticas e intelectuais responsáveis tiveram a atenção despertada para um aparente novo problema que uns denominam “desinformação”, outros “desordem informacional”, a maioria chama apenas de “fake news“. Trata-se da difusão, através das assim chamadas “redes sociais”, de mentiras, teorias conspiratórias, discursos de ódio, manifestações obscurantistas ou anti-científicas de toda ordem, que além de promoverem crescentes comportamentos anti-sociais, o pior deles violências contra indivíduos por quaisquer banais motivos, atingindo principalmente mulheres e grupos mais vulneráveis, estão afetando profundamente o presente e o futuro das sociedades democráticas.
A causa real de todo esse problema é o esfrangalhamento do tecido social e, com ele, de certo ordenamento político e cultural hegemônico até alguns anos atrás nas sociedades capitalistas liberal-democráticas, por força do reordenamento neoliberal, promovido e patrocinado, paradoxalmente, por essas mesmas democracias, reordenamento que levou à fragmentação do mundo do trabalho e à emergência de ressentimentos sociais catalisados, através das “redes”, por financistas bilionários e agitadores oportunistas filiados a ideologias fascistas, obscurantistas, retrógradas.[1] Entendido isso, as “redes sociais” não são “causa” mas apenas meio, bastante eficiente, utilizado por essa neodireita para arregimentar e mobilizar aqueles ressentimentos e ódios a favor de suas causas nazi-fascistas e fundamentalistas.
São meios eficientes porque estão técnica, política e economicamente organizadas de tal modo que servem como luva às causas reacionárias.[2] Controladas pelo capital financeiro e podendo operar globalmente, a partir dos Estados Unidos, à margem de qualquer regulação efetiva,[3] essas “redes”, propriedades de corporações como Alphabet, Meta, Telegram, lucram bilhões de dólares anualmente, graças, em grande parte. ao impulsionamento dos discursos de ódio ou obscurantistas. Enquanto não se adotarem medidas – que só podem ser de cunho regulatório – que afetem diretamente os modelos de negócios dessas corporações, outras medidas não passarão de dipirona no tratamento de sepse: sem dúvida, baixar a febre é necessário, mas insuficiente.
Este artigo, porém, não tem por objetivo debater o problema mais geral, mas um ponto específico. Recentemente, surgiu uma nova expressão na confusão semântica que caracteriza o debate: “integridade da informação”. Este conceito parece ter nascido no início deste século, no campo da Engenharia, conforme podemos depreender de um artigo publicado no sítio da IEEE – Institute of Electric and Electronic Engineers, em 2003.[4] A definição do conceito é bem de Engenharia:
“A integridade da informação é a fiabilidade ou credibilidade da informação. Mais especificamente, é a exatidão, a consistência e a fiabilidade do conteúdo, do processo e do sistema de informação. Trata-se de uma questão que preocupa todas as organizações empresariais, governamentais e sociais. As falhas de informação têm sido vistas até agora como um problema universal e generalizado, apesar de custarem à economia muitos bilhões de dólares. O espaço do conceito considera várias perspectivas, entre as quais: prevenção, monitorização e correção de erros de informação; auditoria e controle de segurança; concepção, desenvolvimento e operação de sistemas de informação para uma maior integridade; e requisitos de integridade da informação de indústrias específicas, tais como instituições financeiras, cuidados de saúde, defesa e transportes.”
Apesar de estarmos aqui tratando de problemas que são basicamente de natureza social e cultural, também política, esse conceito foi recentemente assumido como chave para o enfrentamento da pandemia mundial de desinformação e mentiras. Como observam Kamya Yadav e Samantha Lai, “desinformação é apenas um sintoma de um problema muito maior” – e esse problema se encontra nos contextos sociais onde a informação é produzida e circula.[5]
Trazendo para esses contextos, aquele conceito não só contém os muitos vícios de conceitos oriundos do assim chamado “Norte Global” (outrora entendido como “países imperialistas”…) de onde se espraiam como novas verdades paradigmáticas para o “Sul Global” (outrora entendido como “países colonizados ou dependentes”…), como carece de maior rigor, ou qualquer rigor. O fato é que, súbito, a partir de 2023, o “mundo” passou a falar de “integridade da informação” como se fosse algo assim tão natural quanto o sol ou a chuva…
Em setembro de 2023, Canadá e Holanda lançaram uma Declaração sobre a integridade da informação nas redes (“online”), imediatamente assinada por cerca de 20 outros países, inclusive o Brasil. Segundo esse documento:
“O termo ‘integridade da informação’ é definido na presente Declaração como um ecossistema de informação que produz informação exata, fidedigna e fiável, o que significa que as pessoas podem confiar na exatidão da informação a que acedem enquanto estão expostas a uma variedade de idéias. Ao utilizar o termo ‘integridade da informação’, queremos oferecer uma visão positiva de um ecossistema de informação mais alargado que respeite os direitos humanos e apóie sociedades abertas, seguras, protegidas, prósperas e democráticas”.[6]
Parece óbvio que continuamos com o problema de definir o que seja “informação exata, fidedigna e fiável”. Citemos um exemplo no limite: “Deus existe?” Para um ateu, não passa de crença; para uma pessoa religiosa, é uma verdade, é informação fidedigna e fiável.
O debate sobre “integridade da informação” ganhou maior dimensão no encontro pré G-20, realizado em São Paulo, nos dias 30 de abril e 1º de maio. Promovido e organizado pela Secretaria de Políticas Digitais da Secretaria-Ministério de Comunicação Social do governo brasileiro, com apoio também do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), o “Diálogo G20 – Integridade da Informação”, soma-se a outros eventos que estão acontecendo neste momento, preparatórios da grande reunião do G-20 no Rio de Janeiro, em novembro próximo. Foi sem dúvida um encontro de grandes dimensões e muito provável impacto no debate futuro, dada a qualidade e quantidade de acadêmicos e militantes presentes. O Brasil pôs os dois pés nessa discussão.
Dito tudo isto, este artigo está focado apenas no discutível conceito de “integridade da informação”. Visto não estar claro o que pode significar e, muito provavelmente, tem diferentes significados para diferentes atores ou formuladores, este artigo pretende apenas contribuir para a busca de maior rigor conceitual, se possível.
2.
Já que o conceito nasceu na Engenharia, vamos retomá-lo a partir de lá: examinemos melhor a Teoria da Informação aplicável ao caso, através de exemplos bem didáticos.
Para iniciar uma partida de futebol, o juiz propõe um jogo de “cara e coroa” aos capitães das duas equipes. A moeda só permite essas duas escolhas. Não importa se, ao cair no chão, a moeda mostre a face “cara” ou a face “coroa”: de duas escolhas possíveis, obteve-se um resultado. Quando, entre duas escolhas possíveis obtém-se um resultado (não importa qual), diz a Teoria da Informação que se obteve 1 bit de informação.
Agora, consideremos um semáforo. Em princípio, seu objetivo é dar a motoristas e pedestres duas opções: “pare” ou “ande”. Essas duas mensagens poderiam ser expressas por apenas uma lâmpada: acesa (“pare”) ou apagada (“ande”). Um bit de informação. Porém, as chances de erros num sistema assim, considerando sua finalidade, são elevadas. Se a lâmpada estiver apagada por causa de pane no sistema elétrico? Para evitar erros, são introduzidas três lâmpadas com cores diferentes e uma regra básica: apenas uma lâmpada pode acender de cada vez (L – ligar), enquanto outras duas ficam apagadas (D – desligar). Não importa, neste caso, qual lâmpada está acesa e quais estão apagadas: cada uma delas fornece 1 bit de informação, logo, a cada instante, ou a cada nova mensagem, o semáforo fornece 3 bits de informação: L/D/D; D/L/D; D/D/L.
Esse sistema, porém, contém mais estados possíveis do que aqueles que realmente transmite: três lâmpadas totalmente apagadas (D/D/D), todas as três lâmpadas acesas (L/L/L), três diferentes combinações de duas lâmpadas acesas e uma apagada (L/L/D; D/L/L; L/D/L). Quaisquer dessas demais combinações transmitirá uma única mensagem: erro. Ou seja, para garantir a segurança da mensagem a ser transmitida, ou se quiserem a “integridade da informação”, foi necessário introduzir um excesso de mensagens possíveis sobre as realmente necessárias ou, de fato, válidas (“pare”/”ande”). A este excesso dá-se o nome de redundância.
O senso comum costuma confundir redundância com duplicação. Esta é apenas uma das formas possíveis de redundância. Também, por isto, confunde-se redundância com algo um tanto inútil; desperdício. Nada mais equivocado. A redundância é absolutamente necessária para garantir a “integridade”, ou “fiabilidade”, ou “exatidão”, de qualquer código pelo qual se pretenda transmitir alguma informação. A língua pela qual nos comunicamos, por exemplo, é plena de redundâncias, delimitadas pelas regras de sintaxe, semântica e estilísticas. Informação sem redundância é como semáforo quebrado…
No caso do semáforo, um motorista, ao ver a luz vermelha com duas apagadas, recebeu 3 bits de informação. Passados alguns minutos, o estado do sistema muda, acende amarelo, duas outras lâmpadas apagadas: outros 3 bits. Em alguns segundos, o amarelo passa a verde, sempre com outras duas lâmpadas apagadas: mais 3 bits. O motorista, ao todo, no tempo que permaneceu recebendo e obedecendo às mensagens do semáforo, processou 9 bits de informação. Como, porém, vimos, o semáforo poderia transmitir mais informação do que as realmente válidas, ao todo ele transmitiria 24 bits (3 x 8 estados possíveis). Esta seria a informação total contida no sistema.
Sabendo-se que a taxa de redundância R de um código qualquer é dada pela fórmula R = (Hm – Hr)/Hm para Hm = informação máxima; Hr = informação real, no caso do semáforo, substituindo-se Hm por 24 e Hr por 9, obteremos uma taxa de redundância de 62,5%. Graças a essa taxa de redundância, o código do semáforo pode garantir a “integridade”, “fiabilidade”, “exatidão” de mensagens que, no todo, só devem conter 9 bits de informação.
Admitamos, porém, que por alguma súbita falha eletro-mecânica, o semáforo disparasse loucamente todas as suas lâmpadas, apagando-as todas ao mesmo tempo, num instante seguinte acendendo todas, ou combinando duas acesas e alguma apagada, também as três combinações válidas. É fácil imaginar a confusão que se estabeleceria no trânsito, neste cruzamento com um semáforo assim maluco…
Matematicamente, aplicada a fórmula acima, teríamos R = (24 – 24)/24 = 0/24 = 0. Se a redundância é nula, ou se a informação pudesse ser total, estaríamos num estado caótico, conforme a prática confirma.
Não há informação válidaque não contenha alguma taxa maior ou menor de redundância. A redundância resulta de coerções impostas aos códigos, graças às quais podemos identificar e distinguir as mensagens válidas, ou “fiáveis”, das inválidas, ou inexatas. Se estamos falando de sistemas tecnológicos, essas coerções, conforme alguma programação bem definida, são de natureza física, ou química: sinal elétrico que deve, ou não, ser acionado; molécula orgânica que deve, ou não, interagir com outras. Mas se estamos falando de sistemas sociais, coerções também são necessárias em qualquer sociedade humana, até nas originárias.
Conhecidos tabus, como o do incesto ou o da proibição, entre os povos semitas, da carne de porco como alimento, são exemplos de coerções sociais que se mostraram necessárias ao processo de humanização do ser humano, seja à humanidade como um todo, seja a algum de seus muitos diversos agrupamentos culturais, ante os desafios com os quais se defrontaram ao longo de nossa evolução como ser social.
3.
Podemos definir a desordem informacional na sociedade como um estado social no qual a taxa de redundância da informação socialmente válida tende a zero.
Por informação socialmente válida vamos definir aquela que o sistema social, através de suas instituições legítimas, define como válida. É óbvio que poderíamos entrar aqui numa enorme e inconclusa discussão sobre “instituições legítimas”, “validade” etc. Grupos revolucionários põem em questão a legitimidade das instituições e, se ou quando vitoriosos, determinam outras e distintas regras de “validade”. Estamos aqui tratando das instituições formais ou mesmo informais cuja legitimidade foi conquistada através das revoluções culturais e políticas que se alastraram da Europa para o resto do mundo, a partir dos séculos XVII e XVIII, sem ignorar as importantes contribuições teóricas, políticas, artísticas, oriundas da América Latina, África e Ásia, muitas vezes críticas, transformadoras, enriquecedoras daquelas instituições, mas sem negar, no limite, aquelas raízes.
Um exemplo óbvio, mas nem de longe o único, é o marxismo, inclusive os regimes políticos que engendrou, originário na esquerda iluminista européia mas muito transformado e enriquecido por pensadores e lideranças políticas cujas práticas teóricas e políticas se deram na América Latina, África ou Ásia.
Num exemplo simples e muito sintomático, até poucas décadas atrás ninguém contestaria ser a Terra um planeta esférico, não importasse a condição política, ideológica, social, étnica, até mesmo religiosa, de diferentes grupos de indivíduos; não importasse se europeu, sul ou norte americano, asiático ou africano, desde que dotado de uma mínima base de escolaridade e cultura, por maiores que fossem suas diferenças outras. Essa é uma informação que organiza não apenas a instituição científica enquanto tal, mas apoiado nela, o ensino básico, a cultura cotidiana, inclusive as crenças, mesmo as religiosas, já há alguns séculos.
De repente, surgem grupos sociais defendendo que a “terra é plana”. Ora, de um ponto de vista informacional, tal afirmação e esforços feitos para comprová-lo (até agora, por óbvio, infrutíferos e mesmo com trágicos resultados) seriam como lâmpadas de semáforo que deveriam permanecer apagadas para que os códigos sociais funcionassem com segurança e validade. Se a taxa de redundância decresce, começam a acontecer casos, como sabemos, de professores(as) desafiados(as) nas escolas de ensino básico por crianças ou seus pais contestando, não raro com violência verbal e ameaças físicas, a validade da forma esférica da Terra, daí toda a validade do ensino científico conforme nossa Civilização o concebe e o convalida desde pelo menos os tempos de Colombo e Galileu.
Por motivos sociais ou culturais já sugeridos acima, que não podemos aprofundar nesse texto, mas que não podem ser ignorados, é fato que, de duas ou três décadas para cá, um amplo conjunto de códigos básicos que organizavam nossa vida social, portanto também recalcavam como redundantes (no conceito acima apresentado) um amplo conjunto de outras mensagens possíveis, passaram a ser questionados. Emergiu um novo regime informacional, porém a latere do que definimos como civilizado, que vem pondo em questão, não apenas as instituições políticas democrático-liberais formais, mas conquistas civilizatórias que pareciam estar consolidadas para sempre, desde os princípios de direitos humanos até os avanços da ciência e seus impactos na educação, na saúde pública e na nossa vida cotidiana.
Por exemplo: a vacinação universal, um comportamento social (código social) que parecia consolidado (no Brasil, com certeza!), passou a ser alvo de maciço ataque por parte de crenças outras, cujo resultado, do ponto de vista informacional, como temos visto, seria comparável a motoristas e pedestres passarem a ignorar, desprezando confusões e riscos, as mensagens válidas do semáforo, mesmo que as autoridades legitimas não autorizassem tal comportamento denegador da redundância legalmente estabelecida.
O processo de desordem informacional que estamos vivenciando foi favorecido, em boa parte, pela leniência das próprias democracias liberais, talvez por demais confiantes na solidez definitiva de suas instituições. Porém, para isso, sem dúvida, contribuição decisiva foi dada pela “ágora informacional” que se constituiu sobre a infra-estrutura da internet. É sempre necessário distinguir a internet propriamente dita, um sistema sócio-técnico organizado conforme determinações lógicas de Engenharia, da camada que opera sobre ela, organizada por grandes corporações de fundo financeiro, para distribuir conteúdos conforme a lógica do mercado capitalista. Ainda que as duas camadas possam ter elos imbricados, é nesta camada superior que se concentram os grandes e graves problemas políticos e culturais.
Esperava-se que as “redes” servissem para aprofundar o debate iluminista, para finalmente consolidar a ambição de uma “esfera pública” popular, porém comprometida com a razão, a justiça e a democracia: as únicas lâmpadas que deveriam acender no semáforo da sociedade. Porém o que se viu foi a liberação generalizada, através das “redes”, de ressentimentos, frustrações, idiossincrasias, raivas, até então sem espaços para se manifestarem além dos socialmente muito limitados em conversas nos botequins, reuniões familiares, papos de barbeiro ou cabeleireira. “A internet deu voz a milhões de imbecis”, bradou Umberto Eco. Revelou-se para todos e todas nós, um “outro mundo”, não aquele que desejávamos possível conforme o slogan dos Fórum Social Mundial, mas um que parecia impossível, até inimaginável.
De um ponto de vista informacional, as “redes” permitiram reduzir as taxas sociais de redundância ao limite de zero. Todas as instituições que viemos construindo ao longo dos últimos cem, ou duzentos, ou mesmo trezentos anos estão postas em questão. Trata-se portanto de saber se vamos seguir permitindo avançar esse processo de destruição da Civilização, ou se vamos reafirmar, talvez mesmo endurecer, as redundâncias sociais que permitiram o avanço da nossa sociedade até o estágio em que nos encontramos.
Cabe relembrar Karl Popper: “não se pode ser tolerante com intolerantes”.
4.
Qualquer palavra é relativamente polissêmica. A palavra “coerção” normalmente é entendida num sentido negativo, como alguma obrigação indesejada, imposta. Mas, vimos, não há sociedade, nem mesmo as originárias, que não estejam organizadas graças a coerções, leis explícitas ou tácitas, que nos permitem conviver uns com os outros.
Para dirigir nossos veículos de passeio ou trabalho, obedecemos às coerções das leis de trânsito, entre elas obter uma licença especial que nos autoriza a conduzir veículos. Medicamentos não chegam nas farmácias sem antes passarem pelas investigações coercitivas dos órgãos reguladores, obedecendo às coerções de leis específicas. Empresas grandes ou pequenas estão submetidas às coerções fiscais e monetárias, também as relacionadas ao meio ambiente e à justiça social, direitos trabalhistas etc., sempre conforme leis debatidas, aprovadas e implementadas por instituições políticas legítimas, como o Congresso e os demais poderes democráticos. A lista não cessaria.
De seu emprego social genérico, a palavra “coerção” ganhou sentido preciso na Cibernética: trata das regras que organizam um código qualquer. Nossa língua só funciona como meio de comunicação porque submete-se a muitas coerções sintáticas, semânticas, estilísticas. São as coerções que determinam o que pode ser informação válida e o que é redundância indicativa de erro, num sistema informacional qualquer.
A internet, por sua história, se expandiu pelo mundo sem maiores coerções, além daquelas estritamente técnicas. Nem mesmo as coerções determinadas pelas fronteiras jurisdicionais de cada país, foram respeitadas em sua expansão inicial. A partir dos Estados Unidos, assumiu-se que as mensagens que por ela transitariam não deveriam estar submetidas a maiores coerções (no sentido cibernético), além das naturalmente próprias dos elásticos códigos linguísticos.
Pela primeira vez na história dos meios de comunicação eletro-eletrônicos, um sistema tecnológico de emprego comercial e cultural, com ampla penetração na vida cotidiana de toda a sociedade, foi posto à margem de coerções regulatórias públicas já nas suas origens. No que concerne ao tráfego de conteúdos, assumiu-se que a taxa de redundância deveria situar-se no limite de zero.
Sublinhe-se que, por mais amplas que sejam as condições de liberdade de expressão na imprensa e na radiodifusão, sempre, em qualquer democracia, elas estão submetidas a códigos coercitivos explicitados em lei ou tacitamente aceitos nos comportamentos de seus profissionais: jornalistas, artistas, comunicadores etc. Um exemplo simples: praticamente nenhum jornalista ou convidado a uma entrevista, falando para uma câmara de televisão ou microfone de rádio, empregará alguma palavra de baixo calão. Um código não escrito mas socialmente estabelecido impõe esse limite.
As organizações de comunicação social constituem elas mesmas, com suas hierarquias profissionais e seus habitus comportamentais, sistemas coercitivos que, porém, por isto mesmo, são sistemas reprodutores de informação legítima, naquele conceito acima definido. Mesmo assim, nem de longe trata-se de um sistema altamente redundante pelo qual transitaria apenas um único padrão de mensagem. Sim, sabemos das muitas também legítimas críticas que são feitas a certos padrões informacionais predominantes nessas organizações, determinados por seus interesses políticos e econômicos.
É verdade que certos campos de mensagens, principalmente os da Esquerda, embora também válidos naquele conceito apresentado mais acima, encontram muitas dificuldades para atravessar os canais das organizações dominantes. Mas, ficando nos exemplos brasileiros e sem fazer juízo de valor, também não dá para ignorar as diferenças de padrão informacional entre uma Rede Globo ou Band, ou entre uma rádio CNN e uma Jovem Pan. Ao contrário: cabe mesmo perguntar, apesar de seus filtros hierárquicos, se Band, Jovem Pan e outras similares também não estariam situadas mais para perto do campo da desordem informacional do que a Globo ou CNN. Implica dizer, como reivindicam movimentos críticos desde a entrada em vigor da Constituição de 1988, que um projeto regulatório não pode ignorar também a regulação dos meios “tradicionais”.
As organizações que se estabeleceram sobre a internet não tiveram nenhum interesse de determinar coerções formais ou informais que fossem proximamente similares às que condicionam as atividades na imprensa e radiodifusão “tradicionais”. Essa ausência de maiores redundâncias resultou nesse cenário que, agora, motiva investigações e debates sobre “desordem informacional” ou “integridade da informação”.
Peço licença para fazer referência a um exemplo pessoal. Certa vez, num post no Twitter, empreguei a palavra “suicidar”. O envio do post foi imediatamente bloqueado, e minha conta foi imediatamente suspensa. O Twitter alegou que eu violara seus “termos de uso”. Obviamente, eu usei aquela palavra em algum sentido metafórico, num contexto de debate político, não no seu significado denotativo, muito menos dirigida a alguma pessoa. Mas o algoritmo não percebe essas sutilezas. Tive que, literalmente, reconhecer o “erro” para ter minha conta de volta, ou precisaria entrar numa disputa administrativa, cujo tempo de duração e o resultado eram, para mim, totalmente incertos (redundância quase nula).
Esse episódio revela que (i) os algoritmos das plataformas podem, num tempo no limite de zero, bloquear mensagens que não estariam de acordo com os códigos da plataforma; (ii) esses códigos, ou seja, esses particulares sistemas de coerções, são determinados por uma empresa privada, eventualmente, mas não necessariamente, com base em códigos sociais mais amplos. Não são determinados por alguma legislação de natureza pública, nem são em nada transparentes.
Trata-se portanto de estabelecer, por lei e regulamentos, princípios que determinarão as taxas de redundância relativas aos conteúdos que poderão ser postados ou não, nas plataformas. Evidentemente que, aqui, a expressão “taxa de redundância” é uma metáfora: matemática nenhuma poderá medir isso… O que medirá isso é o projeto de sociedade que queremos construir e a necessidade de defendê-lo de outro projeto que quer nos destruir.
É necessário retirar das plataformas o poder de decidir o que se pode postar ou não, conforme seus difusos e opacos “termos de uso”. Ao contrário, estes é que deverão amoldar-se a leis e regulamentos estabelecidos por poderes públicos legítimos. Porém, é sumamente necessário tornar as plataformas um ambiente política e culturalmente sadio para a democracia e a civilização. As coerções necessárias não devem ser tímidas diante da necessidade de reenviarmos para o espaço das redundâncias, os eventos informacionais que pretendem e vêm, infelizmente, conseguindo desorganizar a sociedade inteira: obscurantismo, negacionismo, racismo, xenofobia, intolerâncias diversas, pregações de ódio etc. São também mensagens possíveis como as três lâmpadas apagadas de um semáforo. Porém, diante dos códigos da democracia liberal e da Civilização, não passam de erro. Como tal, que retornem ao socialmente inevitável excedente sociocultural redundante de onde não deveriam nunca ter tido a chance de se manifestarem.
É hora de concertar o semáforo social para que voltem a brilhar apenas as luzes da razão!
*Marcos Dantas é professor titular aposentado da Escola de Comunicação da UFRJ. Autor, entre outros livros, de A lógica do capital-informação (Contraponto).
Notas
[1] Nancy Fraser, “The End of Progressive Neo Liberalism”, Dissent, 2/01/2024, https://www.dissentmagazine.org/online_articles/progressive-neoliberalism-reactionary-populism-nancy-fraser/; Marcos Dantas, “Dois anos de desgoverno – bolsonarismo e capitalismo lúmpem”, A Terra é redonda, 19/04/2024, https://aterraeredonda.com.br/dois-anos-de-desgoverno-bolsonazismo-e-capitalismo-lumpem/
[2] Giuliano da Empoli, Os engenheiros do caos, São Paulo, SP/Belo Horizonte, MG: Vestígio, 2019; Max Fisher, A máquina do caos: como as redes sociais reprogramaram nossa mente e nosso mundo, São Paulo, SP: Todavia, 2023.
[3] Marcos Dantas, “Para desbloquear o debate sobre bloqueio de perfis na internet”, Jornal GGN, 3/08/2020, disponível em https://jornalggn.com.br/cidadania/para-desbloquear-o-debate-sobre-bloqueios-de-perfis-na-internet-por-marcos-dantas/
[4] E. Geisler, P. Prabhaker and M. Nayar, “Information integrity: an emerging field and the state of knowledge,” PICMET ’03: Portland International Conference on Management of Engineering and Technology Technology Management for Reshaping the World, 2003., Portland, OR, USA, 2003, pp. 217-221 https://ieeexplore.ieee.org/document/1222797
[5] Kamya Yadav e Samantha Lai, “What Does Information Integrity Mean for Democracies?”, Lawfare, 22/03/2024, https://www.lawfaremedia.org/article/what-does-information-integrity-mean-for-democracies
[6] Canada and the Netherlands launch the Global Declaration on Information Integrity Online, https://www.government.nl/latest/news/2023/09/20/canada-and-the-netherlands-launch-the-global-declaration-on-information-integrity-online
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