A matemática das fake news

Imagem: Max Mishin
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Por LUIS FERNANDO VITAGLIANO*

As esquerdas estão hoje em um dilema existencial. Se combatem a viralização com propostas reais ou se usam das mesmas estratégias da direita neoliberal

O compartilhamento social dos dados pessoais na internet é hoje apropriado por empresas como insumo valioso para o capitalismo contemporâneo, seja para processar informações e gerar serviços, seja como elemento de propaganda. Diretamente os dados permitem que o público seja atingido pela propaganda digital pela presença do anúncio nos círculos mais íntimos do indivíduo.

Mas, nada se compara a viralização, é o mais sofisticado processo de comunicação atual, as estratégias que resultam em “viralizar” ganharam enorme valor de mercado, devido a reprodução amplificada e imediata da propaganda. Mas, a viralização era um efeito perverso da comunicação digital, geralmente as campanhas virais têm um teor negativo, pejorativo, difamatório que foi apropriada pela comunicação oficial dado sua capacidade de atingir as pessoas.

Em 2023, por exemplo, montagens de conversas em redes sociais da jovem Jessica Canedo com o influenciador Whindersson Nunes e uma história inventada de romance entre os dois viralizou e foi considerado motivo do suicídio da garota. A menina foi duramente criticada nas redes sociais. Atacada por gente que não a conhecia, insultada e difamada por algo que não fez. Sua saúde mental frágil não resistiu.

É um tipo de postagem promovida por um site que queria ampliar o tráfego das suas redes. Obviamente que quem postou a notícia maliciosa não tinha dimensão do tamanho que ia chegar, nem das consequências em curso. Os conteúdos virais têm esse elemento de imprevisibilidade que está presente nas campanhas de marketing: nem todo conteúdo feito para viralizar é capaz de cumprir sua expectativa. E na tragédia da menina Jéssica: duas coisas chamam bastante a atenção para investigação social: em primeiro lugar, a velocidade com que as notícias se espalham num contágio exponencial; e, em segundo lugar, o efeito que tem as postagens das redes sociais na psiquê humana.

Acrescenta-se a isso o fato de que a internet não é elemento neutro. Se foi construída como espaço de compartilhamento de dados para pesquisas, se tornou outra coisa ao longo do tempo e hoje é uma ferramenta plenamente integrada a econômica de mercado neoliberal. Segundo essa perspectiva, a internet é uma ferramenta de defesa do individualismo e que permite atacar fortemente as saídas coletivas, públicas e democráticas da política.

A internet parece ser um espaço democrático, mas é movida pelo dinheiro do Capital e mobilizada pelo valor do individualismo. Por isso, a direita neoliberal, conservadora tem mais facilidade com as redes sociais, por exemplo, que as esquerdas que defendem projetos coletivos e públicos que combatem a chamada liberdade irrestrita e irresponsável do estado de natureza da internet como querem os CEOs do Vale do Silício.

Portanto, as viralizações dependem necessariamente de dois elementos: primeiro, o algoritmo neoliberal que alavanca ideias da direita e sufoca os ideais de esquerda e em segundo lugar: o engajamento de pessoas reais, compartilhando, postando, discutindo e atentas nos aparelhos digitais. Sem a atenção das pessoas os algoritmos são meios de transmissão opacos, robôs sem capacidade de dialogar com as pessoas; sem o impulsionamento dos algoritmos as campanhas virtuais são lentas e, principalmente, sem pagar por impulsionamento, as postagens de esquerda são morosas, mesmo que com capacidade de engajamento, se estiverem em desacordo com a programação, viralizam pouco.

Não é difícil perceber, com alguma medição, que os conteúdos de maior viralização, são formados por campanhas difamatórias. Sociologicamente se explica por nossa atração pelos circos dos horrores, o que acaba criando uma cultura onde as estratégias de degradação, da fofoca, da notícia ruim, mesmo que falsa, são consideradas perfeitamente legitimas por empresas que não esperam construir espaços coletivos e saudáveis nos ambientes virtuais, mas que as pessoas se sintam curiosas para ler, assistir e ouvir questões polêmicas.

Assim, do ponto de vista político, quem quer construir saídas saudáveis, políticas democráticas e coletivas, tem maior dificuldade de uso do repertório de ferramentas digitais, vai enfrentar baixa audiência e certamente a viralização não é uma opção. Se chamarmos essas campanhas de viralização como fake news, precisamos considerar que são propositadamente informações inverídicas, propositadamente impulsionadas e criadas para gerar engajamento. Tamanho é a potência dessa estratégia que, quanto mais absurdo, mais chances têm de viralizar.

Medir o efeito é importante. Existe uma charada clássica da matemática que parte da premissa de que as amebas em um balde dobram de população a cada segundo. Em 40 segundos o balde está cheio, em quantos segundos o balde estava pela metade? Geralmente os desavisados ou não iniciados em crescimento exponencial vão dizer 20 segundos. Mas, não. Se a população dobra a cada segundo, a resposta correta é 39 segundos: se o balde está cheio aos 40 segundos, estará pela metade no segundo anterior, porque no segundo seguinte, ao dobrar, ocupará o balde todo.

Essa anedota matemática ilustra bem um fenômeno que é importante hoje nas redes sociais: a velocidade com que uma notícia, postagem, foto ou vídeo pode se propagar quando corre em velocidade exponencial. É parte também da teoria viral. A viralização depende de dois fatores que estão presentes nas teorias matemáticas: o tempo ou velocidade de reprodução em exponencial (x²) e, o tamanho da comunidade – sua infinitude ou finitude de processos.

No debate sobe populações que crescem em velocidade exponencial, é preciso considerar determinadas condições para esse crescimento, e quando se considera as condições de crescimento, temos o crescimento logístico, onde a velocidade de reprodução diminui na medida em que o limite daquela população é atingido, formando um gráfico com curva ascendente de crescimento no seu início e uma tendencia a estagnação na medida em que se aproxima do teto de uma população.

O crescimento exponencial de um vírus de internet depende da população que o compartilha. Aprendemos com a Pandemia de COVID-19 que o limite que atinge uma população a partir da taxa de contágio, depende obviamente de contato e depende também de imunização. A famosa imunização de rebanho é quando toda a população é atingida e já sofreu os efeitos da doença. Portanto, aqueles que se contaminaram e tiveram efeitos colaterais e se curaram, tiveram mais resistência a COVID posteriormente. O problema é que entra outra variável estatística no estudo das epidemias: a taxa de letalidade.

A COVID-19 tinha uma taxa de letalidade alta no início da pandemia, em torno de 3%. Portanto, se todos os Brasileiros fossem atingidos pela COVID em 2020, como propunha aquele governo, significa que cerca de seis milhões de brasileiros poderiam morrer da doença. Chegamos perto de 1 milhão, o que significa que provavelmente as medidas protetivas defendidas pela ciência impediram que cerca de cinco milhões de pessoas fossem poupadas de uma morte prematura.

Além disso, nossos sistemas de saúde, saturados com os cuidados com a COVID, dispensavam recursos que eram importantes para tratar de outras doenças. Não era só biologia, mas economia e sociologia que estavam em questão porque os leitos hospitalares, os tratamentos paliativos, os tipos de internação e os cuidados com outros tratamentos, tudo entra na conta e a torna mais complexa.

Mas, as estatísticas aplicadas a previsão de contaminação são usadas para diminuir os efeitos danosos dos vírus. As estratégias de atuação são várias para enfrentar uma epidemia, e são diferentes das pandemias. Mutatis mutandis, as campanhas nacionais no Brasil são pandemias de larga escala, enquanto as eleições municipais que se aproximam são campanhas contra epidemias que se aglutinam em vários focos de diferentes formas de manifestar-se.

Associar as eleições com a epidemiologia é uma discussão necessária sobre os efeitos das redes sociais nas escolhas eleitorais e que tem possibilidades de medição e de combate. Se temos esse conhecimento a respeito da Biologia e entendemos como a reprodução de um organismo biológico funciona, por que não podemos aplicá-lo a manifestação de organismos virtuais?

As esquerdas estão hoje em um dilema existencial. Se combatem a viralização com propostas reais ou se usam das mesmas estratégias da direita neoliberal para combater as campanhas de desmoralização em curso nas redes sociais. É um dilema existencial porque define que esquerda teremos na Era Digital. Se a opção for por usar das mesmas ferramentas da direita, vai perder a capacidade da defesa do coletivo, de valores caros ao espaço público e as filosofias de transformação das sociedades contra as apropriações individualistas. Não sejamos ingênuos: viraliza quem defende valores e interesses individualistas.

Veja por exemplo do debate sobre a ideia de socialismo. Nas redes sociais existe uma campanha sistemática e mentirosa contra o socialismo. Socialista é ladrão, vai se apropriar da sua casa, dos seus bens, não gosta de trabalhar e não sabe fazer nada, só roubar. Fazer propaganda do medo sobre isso é fácil. E, o que mais ocorre como resposta a isso não é um contra-argumento questionando essas correlações, mas uma negativa em torno de ser socialista. Obviamente se a imagem de socialismo estiver ligada ao banditismo e a incompetência, nenhuma político vai querer sua imagem associada a isso. Também com isso o debate coletivo sobre a apropriação privada dos meios sociais de produção não vai ser discutida, e o porquê 4 bancos no Brasil tem o direito cobrar juros anuais de 450% da população passa a ser uma discussão de direito individual e não de modelo de desenvolvimento.

Ao negar uma imagem de uma campanha difamatória, você é afetado pelo vírus. Provavelmente os ataques ao socialismo aumentam. Provavelmente o ataque a alguém de esquerda vai continuar. Na negação da imagem, o que sobra é a ausência de propostas coletivas de atuação, o que novamente permite o sucesso do neoliberalismo que boicota a ação coletiva.

Para assumirmos outro caminho para a esquerda (de existir mesmo com a campanha difamatória nas redes sem recorrer às mesmas ferramentas e mantendo a postura combativa), não se trata unicamente de apanhar nas redes e manter a dignidade e tentar ganhar votos em outros territórios: é preciso ganhar as redes criando narrativas capazes de serem debatidas e compartilhadas e se defendendo com vacinas virtuais. Para cada notícia falsa, para cada campanha de difamação, para cada estratégia de viralização é possível criar vacinas.

As vacinas têm características próprias, não são peças publicitarias ou narrativas como muitos têm usado erroneamente a ferramenta nas redes. A engenharia de uma vacina exige boa métrica do vírus e alguma criatividade no desarme da mensagem central do vírus. São ações cirúrgicas, não são caras individualmente e conseguem discutir imagem que o vírus tenta colar.

Seguimos com o exemplo dos ataques ao socialismo: quais peças que podem ser criadas nas redes para redefinir essa imagem? Não é na negação, nem uma campanha narrativa, explicando o que é a questão com vídeos longos e enfadonhos. Combater a formação de uma imagem é diferente de discutir e formar uma narrativa. Aproveitar-se das imagens prontas feitas pelos vírus, encaixar-se. Um comediante, em resposta a Pablo Marçal foi cirúrgico: Jesus não distribuiu varas, deu o peixe.

Hoje, a engenharia das vacinas digitais tem várias possibilidades de ação com resultados bastante satisfatórios. É obvio que campanhas virais, mesmo com vacinas tem algum efeito. É um espaço em disputa; dá trabalho. Mas com boa estratégia, é possível minimizar os efeitos deletérios das fake news ao ponto da vantagem da direita ser abafada e nos voltarmos para fatores que sejam decisivos em uma disputa eleitoral, como o debata das propostas para as pessoas reais; que nos permite voltar a disputar a narrativa e o protagonismo político.

*Luis Fernando Vitagliano é cientista político e professor universitário.


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